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HAMAS, UM GUIA PARA INICIANTES - Khaled Hroub (parte II)

  • Foto do escritor: Clandestino
    Clandestino
  • 16 de abr.
  • 79 min de leitura

HAMAS E OS PALESTINOS

 

 

A POPULARIDADE DO HAMASQuão popular é o Hamas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza?

A vitória esmagadora do Hamas nas eleições de 2006 para o Conselho Legislativo Palestino (CLP) é uma medida clara de sua popularidade. A plataforma eleitoral do movimento, chamada “Plataforma para a Mudança e Reforma”, junto com quatro candidatos independentes apoiados pelo Hamas, obteve quase 60% dos votos, com uma participação de 78% dos eleitores habilitados. A vitória surpreendeu a todos, inclusive os próprios membros do Hamas. No entanto, ao se examinar mais profundamente, a porcentagem de votos conquistada pelo Hamas excede amplamente seu real poder, e isso merece uma análise mais cuidadosa.

Durante muitos anos antes das eleições do CLP de 2006, os resultados do Hamas em todos os tipos de eleições – incluindo eleições estudantis, associações profissionais e municipais – variavam entre 35% e 45%. As oscilações na quantidade de votos recebidos pelo Hamas em diferentes momentos correspondiam ao ambiente político vigente no período de cada eleição. Quando havia mais esperança de avanços nas negociações de paz com Israel, o “programa de resistência” do Hamas tendia a gerar mais dúvidas, resultando em uma queda no número de seus apoiadores. Por outro lado, quando aumentava a frustração com negociações infrutíferas, agravada pela humilhação contínua dos palestinos por parte de Israel, em tais contextos carregados o Hamas tendia a conquistar mais apoio em qualquer eleição realizada.

O nível de frustração e raiva entre o eleitorado palestino na época das eleições do CLP de 2006 foi sem precedentes. A combinação da arrogância e agressão militar israelense incontroláveis contra os palestinos, somada ao fracasso da Autoridade Palestina liderada pelo corrupto Fatah, proporcionou ao Hamas um apoio extra além de sua base de eleitores mais fiéis.

Portanto, os 60% de votos conquistados pelo Hamas nas eleições do CLP não refletiam uma força consolidada e inequívoca, mas sim a união de dois segmentos distintos do eleitorado, que podem ser chamados de “apoio genuíno” e “apoio condicionado”. A popularidade genuína e sólida do Hamas é o apoio constante que ele recebe independentemente das flutuações da situação política, seja no nível do conflito com Israel ou dos assuntos internos palestinos. A base firme de apoio ao Hamas varia entre 30% e 40% de todo o eleitorado palestino. Qualquer apoio adicional a esse percentual decorre, efetivamente, da reação pública contra os erros e fracassos dos rivais do Hamas, da frustração pública ou indignação diante das humilhações contínuas por parte de Israel e, de forma ainda mais grave, da corrupção interna.

Essa avaliação do apoio ao Hamas foi em parte confirmada quatro meses após sua vitória nas eleições do CLP, quando enfrentou seu primeiro teste crítico de popularidade. Candidatos apoiadores do Hamas disputaram as eleições para o sindicato estudantil da Universidade de Bir Zeit, a maior e mais politizada instituição de ensino superior palestina na Cisjordânia. Historicamente, a Universidade de Bir Zeit foi um reduto de grupos palestinos seculares e de esquerda. A partir do início dos anos 1990, o Hamas começou a disputar com força a liderança do sindicato estudantil. Nas eleições de abril de 2006, em uma acirrada batalha eleitoral contra a plataforma do Fatah, o Hamas conquistou o maior número de cadeiras, obtendo 23 dos 51 assentos em disputa no conselho estudantil, deixando o Fatah com apenas 18 cadeiras, e os dez restantes foram divididos entre outros grupos.

A vitória do Hamas em Bir Zeit, com 45% dos votos, é um indicador muito mais preciso de seu poder real no terreno do que os inflados 60% conquistados nas eleições do CLP em 2006, e também é historicamente coerente.

 

Quanta influência o Hamas exerce entre os seis milhões de palestinos que vivem fora da Palestina (no mundo árabe, Europa e Estados Unidos)? 

Ao contrário da situação na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, há pouca presença visível do Hamas nas comunidades palestinas no exterior, com exceção dos campos de refugiados no Líbano e na Síria. Embora essa situação possa ter mudado após a vitória do Hamas nas eleições para o Conselho Legislativo Palestino (CLP), é certamente difícil fazer uma avaliação precisa da popularidade do Hamas fora da Palestina. Houve poucos processos eleitorais fora da Palestina com a participação de grupos ligados ao Hamas, cujos resultados poderiam oferecer indicações confiáveis de apoio e influência do grupo entre os palestinos ao redor do mundo.

Em geral, as orientações políticas das comunidades palestinas expatriadas variam de acordo com seu local e condições de residência. Pode-se dizer, de maneira provisória, que quanto mais próxima da Palestina e mais difíceis forem as condições de vida de uma comunidade palestina, maior a probabilidade de ela apoiar o Hamas. Além disso, quanto mais expostos os palestinos que vivem em vários países estão à influência de movimentos islamistas locais, maior tende a ser seu apoio ao Hamas. Assim, o Hamas é notavelmente popular nos campos de refugiados no Líbano, Síria e Jordânia. Esses são os lugares mais próximos da Palestina, onde não apenas as “notícias quentes de casa” circulam em detalhes diariamente, como também esses próprios países sentem, inevitavelmente, as pressões constantes do conflito. Na Jordânia, em particular, onde a maioria da população é palestina ou de origem palestina, e a influência dos islamistas jordanianos é dominante, a popularidade do Hamas se equipara aos níveis da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Como indicador indireto, muitos palestinos que supostamente apoiam o Hamas votam tipicamente na Irmandade Muçulmana da Jordânia, cuja média de assentos no Parlamento jordaniano varia entre 30% e 35%. A questão palestina e o apoio à luta contra Israel normalmente estão no topo de qualquer plataforma eleitoral dos islamistas jordanianos.

Em contraste, palestinos que vivem nos Estados Unidos, Europa e em outros lugares distantes da Palestina são relativamente menos favoráveis ao Hamas. Ainda assim, não há evidências concretas que possam ser usadas para identificar tendências gerais quanto ao grau de apoio desses palestinos ao Hamas, ou mesmo ao Fatah. Muitos palestinos vivem nessas regiões desde muito antes da fundação do Hamas, levando estilos de vida seculares e não religiosos. É razoável sugerir que a prática dos ensinamentos religiosos – frequentemente indicativa de apoio ao Hamas – é visivelmente menor entre os palestinos que vivem na Europa e nos EUA do que entre os que vivem na Palestina ou em países árabes. Assim, a popularidade do Hamas nessas comunidades é inferior à registrada nas comunidades mais próximas da Palestina.

 

Quanta influência o Hamas exerce sobre os palestinos que vivem dentro do território israelense propriamente dito?

Dentro de Israel propriamente dito – ou seja, fora da Cisjordânia e da Faixa de Gaza – vivem cerca de 1,2 milhão de palestinos, o que representa mais de 20% da população israelense. Eles permaneceram em território que passou a integrar as novas fronteiras de Israel durante e após a guerra de 1948 e se tornaram oficialmente cidadãos israelenses. Grande parte foi deslocada de suas casas e vilarejos originais, conseguindo se reinstalar em áreas menos desejáveis dentro de Israel, e desde então sofre com intensa discriminação, apesar da cidadania nominal. Em termos de educação, realização profissional, carreira e liberdades, estão em desvantagem em relação ao restante da sociedade israelense. Sua lealdade é constantemente colocada em dúvida, e eles são frequentemente vistos pelos israelenses como uma "quinta coluna", atuando em favor do inimigo. Sua identidade se vê dividida entre ser oficialmente cidadão de um Estado que foi fundado sobre suas próprias terras e sua própria identidade palestina.

Impedidos de servir no exército ou ocupar altos cargos no governo, os “árabes de Israel”, como são geralmente chamados, nunca receberam os mesmos privilégios políticos, linguísticos e legais que os demais cidadãos israelenses. São vistos com profunda desconfiança pelos israelenses. No entanto, os palestinos em geral os consideram parte inseparável do povo palestino. Vivem em cidades e vilarejos quase exclusivamente “palestinos”, com pouca interação com a população judaica majoritária.

Fora uma minoria de palestinos-israelenses que se uniram a partidos políticos israelenses importantes, os membros politicamente ativos dessa comunidade criaram seus próprios partidos, com tendências de esquerda, nacionalistas ou islamistas. Esses partidos disputam espaço entre si em prefeituras locais para representar e defender legalmente os direitos dos palestinos em Israel, sem o uso da violência. Desde meados da década de 1980, um forte movimento islamista surgiu entre os “árabes israelenses”, desafiando todos os outros partidos árabes. Esse fenômeno ocorreu quase ao mesmo tempo em que o Hamas emergia na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. A afinidade religiosa entre esses movimentos é, sem dúvida, forte, mas eles operam de maneiras diferentes. Os líderes e membros do “movimento islamista” em Israel atuam dentro da legalidade israelense, enquanto o Hamas atua nos territórios ocupados e é abertamente contrário à existência de Israel. Não há vínculos organizacionais entre os dois.

O “movimento islamista” em Israel oferece apoio político e moral ao Hamas. Durante as décadas de 1980 e 1990, foi acusado de canalizar fundos para instituições de caridade ligadas ao Hamas. O apelo e as ações do Hamas trouxeram consequências mistas para o movimento islamista em Israel. Por um lado, o Hamas inspirou seus membros a se mobilizarem com mais força contra as autoridades israelenses e a fortalecer os ideais islamistas dentro de suas bases. Por outro lado, os atentados suicidas perpetrados pelo Hamas em cidades israelenses, que mataram civis, os afetaram negativamente, pois, pegos no fogo cruzado – figurativamente e às vezes literalmente – sentiram-se incapazes de apoiar publicamente o Hamas. No auge dos atentados suicidas, líderes das duas alas do movimento islamista – que já havia se dividido – condenaram publicamente as ações do Hamas.

De modo geral, o Hamas tem pouca influência política tanto sobre o “movimento islamista” em Israel quanto sobre a população palestina como um todo dentro do país. Apoiar abertamente o Hamas pode trazer sérias consequências legais e de segurança para os árabes de Israel, de modo que até mesmo qualquer apoio emocional costuma ser mantido em segredo. O máximo que o Hamas pode esperar dos islamistas dentro de Israel é apoio às suas instituições de caridade e mobilização contra a desarabização de Jerusalém. Como esses islamistas – e os árabes israelenses em geral – são cidadãos oficiais do Estado de Israel, podem circular livremente por Jerusalém, o que lhes permite organizar protestos contra as medidas israelenses que visam apagar o caráter árabe da cidade e de seus espaços.

 

 

 

HAMAS E OS MOVIMENTOS PALESTINOS SECULARES

Qual é a visão do Hamas sobre a OLP e qual é sua relação com ela?

A OLP (Organização para a Libertação da Palestina) foi criada em meados da década de 1960 e, desde então, evoluiu para incorporar o movimento nacional palestino. Trata-se de uma entidade secular que funciona como guarda-chuva de todas os grupos palestinos – de esquerda, de direita e de centro – tendo o movimento Fatah como sua espinha dorsal e - dirigente. Criada antes da guerra de 1967 e da ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza por Israel, a OLP foi originalmente fundada para “libertar a Palestina”: isto é, o território sobre o qual Israel foi estabelecido após a guerra de 1948.

Entretanto, no início da década de 1980, o objetivo da OLP passou a ser a libertação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, com o intuito de estabelecer um Estado palestino, o que implicava o reconhecimento do Estado de Israel. Em 1988, a OLP reconheceu Israel e, entre 1991 e 1993, participou de negociações de paz com o país, na esperança de alcançar seu “novo” objetivo de criação de um Estado palestino. Quando a Autoridade Palestina foi estabelecida nos territórios palestinos em 1994, conforme os Acordos de Oslo, a OLP tornou-se oficialmente a representante suprema de todos os palestinos, dentro e fora da Palestina (especialmente porque a situação dos refugiados permanecia sem solução). No entanto, a Autoridade Palestina lida apenas com os palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza.

O Hamas passou a competir com a OLP desde o seu surgimento, em 1987. Rejeitou a natureza “secular” da organização e condenou suas concessões contínuas a Israel. Em contraste com a convicção posterior da OLP de que os objetivos palestinos só seriam alcançados por meio de um acordo negociado com Israel, o Hamas defendeu uma abordagem de resistência, justificada pela evidente inutilidade das negociações de paz.

Devido à secularidade da OLP e à sua abordagem vista pelo Hamas como “capitulacionista”, o Hamas recusou-se a integrar a OLP. Por causa dessa inflexibilidade, o Hamas sempre foi acusado de atuar à margem do esforço nacional coletivo, prejudicando-o. Além disso, foi acusado de minar a OLP por não reconhecê-la como a única e legítima representante do povo palestino. Como a OLP lutou arduamente contra atores regionais – como Israel, Jordânia e Síria – para conquistar o status de “única e legítima representante dos palestinos”, acusou o Hamas de minar, ainda que indiretamente, a legitimidade e representatividade palestinas.

Por sua vez, o Hamas sempre foi inflexível quanto a reconhecer a OLP como a única representante dos palestinos. O máximo que admitiu foi que a OLP é “uma representante”, e não “a representante” do povo palestino. O Hamas também sugeriu que poderia integrar a OLP se fosse representado por 40–50% da cúpula dirigente da organização. O grupo continuou expressando sua disposição de discutir sua adesão à OLP, mas sempre com condições consideradas totalmente inaceitáveis pelo Fatah, a força central da OLP.

O movimento Fatah tem plena consciência do desafio representado pelo Hamas. Enquanto a OLP/Fatah seguiu a via das negociações de paz a partir de 1988, o Hamas percorreu paralelamente o caminho da “resistência”. Com a erosão contínua da legitimidade da OLP devido ao fracasso das negociações, o Hamas tornou-se mais forte e mais intransigente em sua recusa de integrar a OLP.

Finalmente, em 2005, Hamas, Fatah e outros grupos palestinos concordaram com o princípio da reestruturação da OLP, de modo que o Hamas pudesse se integrar à organização. Quando o Hamas venceu as eleições de 2006, deu o maior golpe ao Fatah e à OLP, desafiando como nunca antes o status de “única e legítima representante do povo palestino”.

No programa de governo de seu gabinete, o Hamas recusou-se, mais uma vez, a reconhecer a legitimidade exclusiva da OLP, o que enfureceu o Fatah e muitos outros palestinos que argumentavam que a OLP está acima das disputas entre grupos. O Hamas, no entanto, mostrou-se disposto a formar um governo de unidade nacional e convocou o Fatah, outros grupos e membros independentes do recém-eleito parlamento a se unirem a ele. Todos rejeitaram a proposta do Hamas, em parte por causa de sua posição em relação à OLP.

 

A rivalidade do Hamas com o movimento Fatah terminará inevitavelmente em uma guerra civil palestina?

A rivalidade entre o Hamas e o Fatah levou os palestinos à beira de uma guerra civil em diversos momentos entre 1994 e 2000. Os líderes do Hamas, especialmente o sheikh Ahmad Yassin, eram veementemente contra tal desfecho, e muitos palestinos lhes atribuem o mérito de absorver e neutralizar grande parte das provocações e repressões que o Hamas enfrentava por parte do Fatah e da Autoridade Palestina.

A principal questão que provocou o atrito entre os dois partidos foi a insistência do Hamas em continuar com seus ataques militares contra alvos israelenses justamente quando a Autoridade Palestina, liderada pelo Fatah, tentava concluir acordos de paz graduais com Israel. A ala armada do Hamas era vista pela Autoridade Palestina como um grupo descontrolado com armas ilegítimas, que deveria ser subordinado às forças de segurança palestinas criadas pela própria Autoridade Palestina.

Após as eleições de 2006 e com o Hamas assumindo o controle da Autoridade Palestina, o Fatah tentou derrubar o governo do Hamas e passou a desempenhar o papel que antes era do próprio Hamas quando este estava na oposição. Enquanto o Hamas buscava ganhar tempo e acalmar a situação na Faixa de Gaza e na Cisjordânia para provar sua competência como governo, o Fatah passou a agir como o agente desestabilizador, papel antes exercido pelo Hamas.

As alas militares do Fatah sempre foram difíceis de controlar, até mesmo pela própria liderança do movimento. Com grandes estoques de armas e grupos armados que operam de forma caótica, sem foco ou objetivos claros, a possibilidade de a situação palestina descambar para uma guerra civil se tornou maior do que nunca.

 

Qual é a visão do Hamas sobre a esquerda palestina e qual é sua relação com ela?

A esquerda tem uma longa e nostálgica história na Palestina, com o primeiro partido comunista palestino sendo fundado em Jafa, em 1921. Teve também um papel pioneiro ao inspirar partes do movimento de esquerda árabe em geral. Nas décadas após a criação de Israel, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, a esquerda palestina esteve na linha de frente da luta. Suas relações com os islamistas palestinos e a Irmandade Muçulmana, nesse período, eram extremamente ruins. Os islamistas eram vistos como uma força social retrógrada que nada contribuía para a luta contra Israel.

Quando o Hamas foi fundado no final dos anos 1980, a esquerda palestina ficou dividida entre dar boas-vindas à decisão dos islamistas de finalmente se engajarem na confrontação ativa com Israel ou temer o crescimento evidente de seu poder.

Neste cenário de desconfiança histórica e falta de base ideológica comum, o Hamas e as organizações da esquerda palestina desenvolveram relações bastante limitadas. Elas se basearam principalmente na rejeição coletiva da disposição do Fatah (e da OLP) em participar da Conferência de Paz de Madri em 1991 e, posteriormente, dos Acordos de Oslo em 1993/1994. Hamas e outros grupos palestinos formaram uma aliança contra o Fatah e incentivaram a intifada popular em curso como alternativa de resistência à abordagem “capitulacionista” do Fatah.

Essa aliança, contudo, nunca passou do estágio de emissão de comunicados conjuntos, sem ações políticas ou militares concretas em comum. Intrinsecamente, a esquerda palestina rejeitava o conteúdo religioso do Hamas e pressionava por uma ênfase mais laica na luta contra Israel. No fim, a desconfiança e as diferenças ideológicas sobrepuseram-se ao pragmatismo e aos objetivos comuns.

Uma das questões centrais que sempre afastou o Hamas da esquerda palestina foi sua recusa absoluta em reconhecer a OLP como a única representante legítima do povo palestino. As organizações de esquerda viam essa recusa como um indicativo da intenção futura do Hamas de controlar exclusivamente a liderança palestina. Por sua vez, o Hamas se frustrou com a esquerda, pois sempre que o Hamas se chocava com o Fatah, a esquerda permanecia neutra ou apoiava implicitamente o Fatah. O Hamas considerava essa postura hipócrita, acusando a esquerda de apenas fingir apoiar uma aliança com ele contra a capitulação política do Fatah. Já a esquerda acusava o Hamas de miopia política e de se engajar em batalhas desnecessárias ou provocações de campo.

Após as eleições de janeiro de 2006, a relação entre o Hamas e a esquerda palestina se deteriorou ainda mais. Nenhum dos três pequenos grupos de esquerda que conquistaram sete cadeiras no total no Conselho Legislativo Palestino aceitou integrar o governo do Hamas. O Hamas os culpou por frustrar seus esforços de formar um governo de coalizão nacional.

Em março de 2006, Mousa Abu Marzouq, vice-chefe do Bureau Político do Hamas, criticou publicamente a Frente Democrática para a Libertação da Palestina por sua recusa em integrar o governo. Ele previu que esse grupo desapareceria completamente da cena política palestina se não reconhecesse as “novas realidades”. Uma dessas “novas realidades”, segundo Marzouq, era a “escolha islâmica” feita pelo povo palestino ao eleger o Hamas – uma escolha que contrariava a exigência da Frente Democrática de que o Hamas declarasse como objetivo de seu governo a “secularização da sociedade palestina”. Marzouq afirmou ser ilógico que a Frente Democrática fizesse tal exigência tendo conseguido eleger apenas um parlamentar (de um total de 132), especialmente considerando que o próprio Hamas, com sua ampla maioria, não havia proposto a “islamização da sociedade palestina”.

 

Qual é a visão do Hamas sobre os cristãos palestinos e qual é sua relação com eles?

Na sua conduta em relação aos cristãos palestinos, o Hamas tem demonstrado uma sensibilidade extraordinária. Consciente de que suas opiniões sobre não muçulmanos e a forma como os trata estariam sempre sob escrutínio devido ao caráter religioso do movimento, o Hamas conseguiu estabelecer relações cordiais com os cristãos palestinos. Levando em conta que a grande maioria dos cristãos palestinos leva um estilo de vida bastante secular, têm havido, em geral, poucas áreas de atrito potencial com o Hamas. Foi a convergência na causa nacionalista, e não as divergências nas crenças religiosas, que orientou essa relação.

Em seus documentos oficiais, o Hamas se refere com calor aos sacrifícios dos cristãos palestinos, que demonstraram firmeza lado a lado com seus compatriotas muçulmanos diante da ocupação israelense e de suas atrocidades. O Hamas faz referência, com profundo orgulho, ao fato de que muçulmanos, cristãos e judeus (antes da criação de Israel) viveram por muito tempo em coexistência pacífica na Palestina – e o Hamas pretende manter essa tradição. Além disso, a especificidade da situação palestina obrigou o Hamas a adotar uma postura consensual e cooperativa em relação a outros palestinos, independentemente de sua filiação religiosa ou política.

Na prática, no entanto, muitos cristãos se sentiram desconfortáveis com a ascensão crescente do Hamas. A atmosfera religiosa que se forma paralelamente ao crescimento político do Hamas, sem dúvida, cria um clima um tanto inquietante para os cristãos – assim como para muçulmanos seculares. Algumas análises e pesquisas sustentam que a ascensão do Hamas na Palestina gerou pressões adicionais sobre os cristãos palestinos, contribuindo para o aumento da taxa de migração deles para o exterior. No entanto, de modo geral, não houve fricções religiosas ou confrontos sectários na Palestina durante a existência do Hamas que pudessem ser diretamente atribuídos ao movimento.

A rivalidade do Hamas com outros grupos palestinos tem sido quase exclusivamente de natureza política. Sua principal preocupação sempre foi com o movimento Fatah, que é predominantemente muçulmano. Com os outros dois principais – embora menores – grupos, a Frente Popular para a Libertação da Palestina e a Frente Democrática para a Libertação da Palestina, o Hamas desenvolveu relações mais próximas. Ambos são liderados por cristãos, e esse fato nunca afetou a posição do Hamas em relação a esses grupos de esquerda.

Na campanha eleitoral de 2006 para o Conselho Legislativo Palestino, o Hamas apoiou dois candidatos cristãos independentes – um em Gaza e outro em Belém. Quando teve de formar um gabinete, incluiu um cristão entre seus ministros. Embora não existam regras organizacionais que proíbam a entrada de cristãos no Hamas, o movimento não conseguiu atrair nenhum cristão para seu quadro de membros. Esse fracasso é motivo de constrangimento para o Hamas, pois é o único movimento palestino cuja filiação é exclusivamente composta por muçulmanos – não por imposição, mas por realidade prática.


 

HAMAS E O 'ISLAMISMO INTERNACIONAL'

 

 

 

HAMAS E OS PAÍSES MUÇULMANOS

Quais são as relações do Hamas com outros países árabes e muçulmanos?

As relações do Hamas com os diferentes países árabes e muçulmanos variam de acordo com diversos fatores. Essas relações existem em dois níveis: o nível oficial, mais cauteloso, e o nível popular, geralmente mais caloroso e de apoio. Na região árabe, os Estados que adotam uma postura declaradamente contrária a Israel, mesmo que apenas no discurso, estão naturalmente mais próximos do Hamas. Esse grupo inclui o Irã, a Síria, o Sudão, o Líbano e a Líbia, onde o Hamas conseguiu estabelecer vínculos oficiais e mantém escritórios próprios. O Irã está no topo desse grupo, apoiando o Hamas abertamente tanto política quanto financeiramente, e o movimento goza de quase pleno status diplomático em Teerã. Nos demais países, o Hamas mantém escritórios e porta-vozes, atuando no campo político e midiático.

Um segundo grupo de Estados inclui o Egito e os países do Golfo – Arábia Saudita, Qatar e Kuwait. Esses países são conhecidos por sua política não revolucionária, mas procuram manter uma relação razoável com o Hamas como forma de contrabalançar o que percebem como a influência potencialmente ameaçadora do Irã e da Síria sobre o movimento. O Egito, em especial, busca manter laços fortes com o Hamas, tendo mediado diversas vezes, desde o final dos anos 1990, negociações entre o Hamas e Israel para alcançar uma “trégua”. O interesse do Egito está na manutenção da calma e da segurança na Faixa de Gaza, que faz fronteira com seu território, e em conter o avanço do islamismo palestino para que ele não ultrapasse suas fronteiras.

Um terceiro grupo é formado por países relutantes, que veem silenciosamente o Hamas como uma ameaça aos seus assuntos internos e, por isso, o consideram uma presença indesejada em seu território. Jordânia e os países do Magreb – como Tunísia, Argélia e Marrocos – podem ser incluídos nesse grupo.

Fora da região árabe, o Hamas estabeleceu diferentes níveis de vínculos com o Paquistão, Malásia, Indonésia e Turquia. Delegações do movimento visitam com frequência esses países para solicitar apoio de seus “irmãos muçulmanos” à Palestina e ao próprio Hamas. Os governos desses países mantêm vínculos calculados com o Hamas, a fim de garantir que os contatos do movimento não ocorram às margens do regime. A principal preocupação da maioria dos países árabes e muçulmanos é monitorar o Hamas e suas conexões, extraindo do movimento a garantia de que não realizará atividades internas em seus territórios, atuando apenas como receptor de apoio – e não como inspiração ou mobilizador de grupos descontentes locais. No entanto, nos casos da Malásia e da Turquia, o Hamas mantém contato considerável e vê com grande apreço os partidos islâmicos moderados que estão no poder nesses países.

Em todos os países, o Hamas sempre teve como objetivo cultivar relações fortes e presença entre os povos, por meio de partidos políticos e associações islâmicas. A estratégia mais ampla do Hamas baseia-se no engajamento dos povos árabes e muçulmanos em apoio à causa palestina. O alcance dessas populações é vital, pois permite explicar o sofrimento palestino e solicitar apoio nas formas moral, política e financeira.

No nível oficial, o Hamas tem buscado obter reconhecimento político e diplomático, bem como legitimidade. O movimento tem se esforçado para ser aceito como uma organização política recebida e respeitada por governos, tentando constantemente suavizar sua imagem de “organização terrorista”. Os vínculos oficiais também contribuem para reforçar a aspiração do Hamas de representar os palestinos e falar em nome deles – em oposição à OLP, órgão oficialmente reconhecido para esse fim.

No nível popular, o Hamas tem conseguido criar relações locais sólidas com partidos islamistas, associações e indivíduos. E não apenas no campo islâmico – também entre os setores anti-Israel e anti-EUA, o Hamas desfruta de relações calorosas e apoio. Essas conexões desempenham um papel fundamental no auxílio ao Hamas em arrecadações financeiras e na mobilização da opinião pública no mundo árabe e muçulmano. Os apoiadores do Hamas transmitem sua mensagem e defendem seus pontos de vista e práticas em suas regiões, por meios políticos e midiáticos. A simpatia pelo Hamas nos países do Golfo e em outros países árabes e muçulmanos frequentemente atinge níveis elevados, criando a atmosfera necessária para que apoiadores locais – sejam organizações ou indivíduos – possam arrecadar fundos significativos para o movimento.

 

HAMAS E AS COMUNIDADES MUÇULMANAS NO OCIDENTE

Qual foi o impacto da ascensão do Hamas sobre o número crescente de movimentos islamistas no mundo, especialmente no ocidente?

No universo geral dos muçulmanos ao redor do mundo, a ascensão do Hamas como movimento palestino islamista encorajou milhões de muçulmanos a apoiar ainda mais a causa Palestina. As comunidades muçulmanas no ocidente não são exceção. A Palestina ocupa um lugar central e emocional na imaginação e no sentimento dos muçulmanos. O Hamas acredita que, com a adoção de uma ideologia islâmica forte, um nível adicional de poder será conferido ao apelo por apoio aos palestinos. Muçulmanos comuns certamente sentiriam mais identificação com o discurso islamista do Hamas do que com o discurso secular da OLP.

Com a disseminação de movimentos políticos islâmicos nas últimas três décadas, as comunidades muçulmanas no Ocidente tornaram-se mais receptivas ao chamado do Hamas. O que o Hamas mais desejava dessas comunidades era a propagação da causa palestina e o financiamento de suas obras de caridade.

Quase simultaneamente à eclosão da Primeira Intifada, no final de 1987, muitas organizações islâmicas foram estabelecidas na Europa e nos Estados Unidos para ajudar os palestinos afetados. Dinheiro passou a fluir para instituições de caridade islâmicas administradas com eficiência pelo Hamas. O movimento colheu os frutos disso e aumentou ainda mais sua popularidade.

Em áreas mais específicas, o Hamas influencia movimentos islamistas em todo o mundo ao oferecer um “modelo de jihad” que não é controverso por sua causa justa, mas que não hesita em usar meios controversos para servir a essa causa. A jihad do Hamas é vista como dirigida contra Israel – uma ocupação militar estrangeira liderada por judeus sionistas contra terras e lugares sagrados muçulmanos. Como essa jihad não é lançada contra um regime muçulmano controverso ou um governo desprezado – em que muçulmanos acabam lutando contra outros muçulmanos – há um consenso quase geral entre islamistas sobre a justiça e legitimidade da luta do Hamas.

Além disso, o Hamas é considerado uma fonte de inspiração – um exemplo de firmeza diante de pressões imensas – por sua recusa comprometida em se curvar ao status quo e às forças internacionais, e em reconhecer Israel, como fez a OLP.

 

 

‘ISLAMISMO INTERNACIONAL’

Por outro lado, os meios controversos do Hamas – especialmente os atentados suicidas – também influenciaram muitos islamistas, levando vários deles a adotar essa tática. Embora os ataques suicidas tenham sido introduzidos nos conflitos modernos do Oriente Médio por militantes xiitas no Líbano em 1982, contra tropas multinacionais lideradas pelos EUA, foi apenas em 1994 que o Hamas os adotou amplamente. Apesar das justificativas apresentadas pelo Hamas para legitimar essa prática controversa (ver Capítulo 4), o movimento carrega parte da responsabilidade por ter promovido esse tipo de autoimolação entre islamistas modernos como forma de causar danos máximos ao inimigo.

Pode-se dizer que as ondas de atentados suicidas realizados por grupos islamistas radicais em todo o mundo nas décadas de 1990 e 2000 foram amplamente inspiradas na conduta do Hamas.

As atividades dos apoiadores do Hamas no Ocidente têm sido restritas ao apoio informativo, político e financeiro. Nunca houve qualquer ação militar ou armada fora da Palestina – e isso de forma deliberada. O Hamas sempre foi rigorosamente contrário a qualquer envolvimento direto ou indireto em atividades armadas no Ocidente, ou ao incentivo ou aprovação de ações desse tipo por parte de seus apoiadores.

Como resultado disso, muitos processos judiciais nos EUA e na Europa contra organizações e indivíduos próximos ao Hamas, acusados de “patrocinar o terrorismo do Hamas”, fracassaram. Essas organizações canalizavam dinheiro para milhares de palestinos pobres por meio de instituições de caridade islâmicas associadas ao Hamas. Todas as transferências de dinheiro dos Estados Unidos ou da Europa foram realizadas por bancos ocidentais ou israelenses, sob total monitoramento da inteligência ocidental e israelense – que sabiam exatamente de onde vinha o dinheiro e para quem era destinado.

O Hamas e seus apoiadores no exterior têm sido bem-sucedidos em manter uma separação completa entre o financiamento político, social e financeiro do movimento e seu braço militar e suas atividades.

 

Existe alguma presença visível ou invisível do Hamas no Ocidente?

Não existe estrutura organizacional do Hamas no Ocidente. Entende-se que qualquer estrutura remota com grau de rigidez partidária – por mais leal que fosse – adicionaria um fardo extra desnecessário ao movimento, em troca de benefícios que já são obtidos através do sistema atual de apoiadores.

Assim, até a formação do governo do Hamas em 2006, não havia nenhum porta-voz oficial ou endereço do Hamas em qualquer país ocidental. Em resumo, não havia presença visível. No entanto, como foi descrito acima, existe uma presença “indireta” por meio de redes e associações islamistas no Ocidente que demonstram apoio e solidariedade ao Hamas – direta ou indiretamente – em virtude de seu apoio mais amplo à causa palestina. Muitas dessas associações foram fundadas por palestinos motivados emocional e politicamente a apoiar seu povo.

Dentro desses círculos de sociedades e comunidades palestinas expatriadas no Ocidente, é possível encontrar apoio mais visível ao Hamas.

O que mais importa, em uma atmosfera carregada de suspeitas sobre muçulmanos e árabes no Ocidente, é que a invisibilidade do Hamas no Ocidente não significa que ele possua uma rede clandestina, armada ou não armada. Desde sua fundação em 1987 até o presente, não houve um único incidente em que se tenha comprovado que o Hamas realizou qualquer ação ilegal dentro ou contra qualquer país ou cidadão ocidental.

A vontade demonstrada pelo Hamas em ter uma futura presença no Ocidente esteve sempre direcionada – e restrita – ao estabelecimento de contatos oficiais com governos ocidentais. Ter sucesso nesse campo sempre foi considerado de importância estratégica muito maior para o Hamas do que recrutar indivíduos ou montar células clandestinas.

HAMAS E OS MOVIMENTOS ISLAMISTAS

O Hamas faz parte de uma rede global do chamado “islamismo internacional”?

A resposta imediata para a pergunta se o Hamas constitui parte de uma rede global de “islamismo internacional” é sim – e não.

Se por “islamismo internacional” entendemos uma estrutura organizacional coerente, na qual diversos grupos e partidos ao redor do mundo pertençam a uma única e unificada hierarquia sob um mesmo guarda-chuva, então a resposta é não.

Mas, se o termo se refere a um terreno comum, ainda que frouxo, em que o Islã é considerado a fonte das convicções ideológicas e diretrizes de ação, então a resposta é sim.

Talvez contrariando o senso comum no Ocidente, os movimentos islamistas diferem profundamente entre si. Primeiro, há movimentos políticos e movimentos não políticos. Estes últimos raramente são mencionados, pois atuam de forma discreta e se limitam a ações de caridade, pregação religiosa e à difusão do chamado ao Islã.

Por outro lado, os movimentos conhecidos como de islamismo político constituem uma força crescente não apenas no Oriente Médio, mas em escala global.

Mesmo entre os grupos ligados ao islamismo político, os fatores que os separam talvez superem os que os unem. Alguns desses movimentos estão engajados em conflitos intensos e armados contra seus próprios governos e permanecem confinados a seus territórios nacionais. Sua jihad visa derrubar esses governos, considerados não islâmicos, para substituí-los por regimes islâmicos. Meios democráticos são rejeitados por esses grupos, pois implicam em reconhecer o status quo não islâmico sob o qual a democracia é implementada. Exemplos desse tipo de grupo podem ser encontrados na Argélia, no Egito e no Paquistão – mas eles não representam a corrente dominante entre os islamistas.

Outros movimentos expressam sua oposição às elites governantes de forma pacífica, muitas vezes por meio de processos políticos parlamentares. Os principais grupos dessa categoria são as Irmandades Muçulmanas, presentes em quase todos os países árabes ou muçulmanos. Esses grupos abandonam totalmente o uso da violência e preferem reformas graduais, longas e pacientes dentro do próprio sistema. Cada grupo atua dentro das fronteiras do seu Estado-nação.

Uma nova geração de movimentos islamistas, mais recente e radical, tem uma jihad “sem Estado” – ou seja, não está atrelada a nenhum país específico e considera a existência de muitos Estados muçulmanos como uma anomalia frente à ideia de uma única nação islâmica unificada. Esses grupos compõem a força por trás da chamada “jihad global”, onde o combate é movido pelas injustiças sofridas pelos muçulmanos e se dirige contra aqueles que as impõem, independentemente de tempo e espaço. O Ocidente em geral – e os Estados Unidos em particular – são o inimigo número um desses grupos. Assim, interesses ocidentais em países árabes, muçulmanos ou em qualquer lugar são considerados alvos legítimos. Em vez de lutarem contra os “líderes-fantoches” impostos pelo Ocidente para proteger seus interesses na região, esses grupos pregam o combate direto contra o próprio Ocidente, o “culpado principal”. Costumam repetir o lema: “Ao atacar a cabeça, a cauda cai.”

Dentro dessa colcha de retalhos de movimentos islamistas, o Hamas é de certa forma único. Seu combate não é contra nenhum regime nacional, mas contra uma ocupação estrangeira colonial. Sua luta pela libertação nacional é tão poderosa quanto sua motivação religiosa (ver Capítulo 2). Em muitos casos, no âmbito do “islamismo internacional”, as preocupações nacionalistas do Hamas se sobrepuseram às suas afinidades religiosas. Um exemplo recente e claro disso foi o desprezo às críticas feitas por seus “irmãos chechenos” para que cancelassem uma visita oficial a Moscou, em fevereiro de 2006. Para os chechenos, a liderança russa era criminosa e culpada pela morte de milhares de muçulmanos na guerra de 1994 contra a Chechênia. Segundo eles, o Hamas – como organização islâmica irmã – jamais deveria apertar as mãos de tais criminosos. Mas o Hamas ignorou esses apelos, julgando que estreitar laços com Moscou teria muito mais valor para a causa palestina do que demonstrar solidariedade com os chechenos.

O conceito de “islamismo internacional” está longe de representar um plano de ação efetivo e coordenado. Manifesta-se apenas por meio de solidariedade verbal, apoio moral e, em alguns casos, material – mas não constitui uma força global coerente que tenha qualquer relevância concreta para o Hamas.

 

Qual é a diferença entre o Hamas e a Al-Qaeda, e há alguma cooperação entre os dois?

Há grandes diferenças entre os dois movimentos, em termos de objetivos, meios, campo de atuação e também quanto à natureza de cada grupo. Por conta dessas diferenças, o Hamas faz questão de manter uma distância clara da Al-Qaeda e certamente não mantém nenhuma cooperação com ela.

Se compararmos os objetivos das duas organizações, os do Hamas são mais focados. Inicialmente, buscavam a “libertação da Palestina” e, mais tarde, restringiram esse objetivo para concentrar-se no fim da ocupação israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Já os objetivos da Al-Qaeda são quase o oposto: vagos, sem foco e em constante expansão, tendo como meta final o estabelecimento de um regime islâmico sobre as terras árabes e muçulmanas, após livrá-las de tropas estrangeiras e líderes considerados fantoches. Esses objetivos também incluem metas intermediárias, como forçar a saída das tropas americanas da Península Arábica, combater exércitos dos EUA e do Reino Unido no Afeganistão e no Iraque, e derrubar governos aliados do Ocidente no Golfo e em outros locais.

Durante esse processo, a Al-Qaeda busca impor uma interpretação extremamente rígida do Islã sobre qualquer área e população que venha a controlar, tendo como modelo ideal o regime do Talibã.

Para alcançar seus objetivos, o Hamas conduz um “programa de resistência” que inclui tanto o combate armado quanto a atuação política. Dentro de sua luta armada, adotou a tática controversa de atentados suicidas, que justifica com base no Antigo Testamento (“olho por olho”), uma visão que possui ressonância nas tradições tanto judaica quanto muçulmana. Mesmo assim, os líderes do Hamas afirmam que “a resistência não é um fim em si mesma”, indicando que estariam dispostos a adotar uma estratégia puramente política no momento adequado.

A Al-Qaeda, por sua vez, utiliza todos os meios de luta armada. Engaja-se em confrontos convencionais contra combatentes, mas também realiza atentados suicidas contra civis, sem qualquer tipo de restrição.

O Hamas restringe sua luta às fronteiras da Palestina, e seu inimigo é Israel. Já a Al-Qaeda considera o mundo inteiro seu campo de batalha; embora seu inimigo principal sejam os Estados Unidos, sua lista de alvos é indefinida. Inclui países europeus que participaram das guerras do Afeganistão e do Iraque, como Itália, Espanha e Polônia, além de países muçulmanos considerados bases do Ocidente, como Arábia Saudita, Paquistão e Marrocos.

O Hamas nunca atacou ocidentais, seja dentro ou fora da Palestina. Esta é uma política estrita e contínua da organização, mantida ao longo dos anos sem uma única exceção. A Al-Qaeda, em contraste, considera ocidentais alvos legítimos em qualquer lugar, sejam combatentes ou civis. O ataque ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001 foi a culminação da estratégia da Al-Qaeda e mostra até onde o grupo está disposto a ir com sua tática indiscriminada. Os atentados similares contra civis cometidos pela Al-Qaeda nos trens de Madri (março de 2004) e Londres (julho de 2005) estão muito além de qualquer lógica ou estratégia do Hamas – assim como estariam ataques contra turistas, hotéis ou complexos residenciais de ocidentais expatriados.

A natureza do Hamas também é completamente diferente da Al-Qaeda. O Hamas é uma organização social e política multifacetada, que atua dentro de fronteiras e parâmetros definidos. A ala militar é apenas uma de suas várias frentes. O grupo participa de processos políticos e democráticos, como qualquer outro partido, de forma pública, com lideranças conhecidas. A Al-Qaeda, por outro lado, é uma organização secreta, praticamente restrita a atividades militares, sem qualquer programa político ou social. Práticas democráticas e métodos pacíficos são totalmente descartados por ela.

 

Estamos testemunhando a ascensão de um “arco islâmico e radical”, começando pelo Irã, passando pela Síria, Hezbollah e chegando ao Hamas?

Quando o Hamas venceu as eleições de 2006, o Irã estava em ascensão, desafiando os Estados Unidos e o mundo ao enriquecer urânio, ameaçando dificultar as operações das tropas americanas no Iraque e apoiando a Síria e o Hezbollah no Líbano contra as políticas e aliados dos EUA. O Irã comemorou com entusiasmo a vitória do Hamas e começou a falar sobre um “arco de desafio”, que se iniciaria em Teerã, passaria pelo Iraque – onde muitos aliados do Irã estão presentes –, por Damasco, depois pelo Hezbollah no Líbano, e terminaria na Palestina com o Hamas.

Essa aliança desafiadora teria como alvo os Estados Unidos e Israel, e suas políticas consideradas arrogantes na região. Na prática, o desafio do Irã às políticas dos EUA é moldado especificamente pela enrascada americana no Iraque. Enquanto a grande maioria da população iraquiana, bem como grupos políticos e militares, tenderiam a apoiar o Irã em qualquer confronto com os Estados Unidos, os iranianos desfrutam, por ora, de certa vantagem estratégica sobre a situação. Milhares de soldados norte-americanos no Iraque poderiam ficar à mercê de uma decisão iraniana, seja ela qual for.

No entanto, se os Estados Unidos conseguissem se libertar do dilema iraquiano, a situação poderia mudar, e a influência regional do Irã poderia ser contida. Em todos os casos, o Hamas se beneficiaria desse “arco de desafio”, ao menos no sentido de fortalecer sua posição e controle de poder nos anos seguintes. Um dos piores cenários possíveis para quase todas as partes envolvidas seria um ataque israelense ao Irã, com o objetivo de impedir o desenvolvimento de qualquer capacidade nuclear. As repercussões de tal medida seriam simplesmente inimagináveis.


 

HAMAS E O OCIDENTE

 

 

 

O Hamas vê o Ocidente como inimigo? 

De modo geral, a percepção do Hamas sobre o Ocidente é, em certa medida, hostil. Assim como ocorre com o pensamento predominante nos círculos palestinos e árabes, o Hamas responsabiliza o Ocidente – em especial o Reino Unido, por sua condução da imigração sionista durante o período do Mandato Britânico e sua retirada em 1948 – pela criação de Israel. A fundação de uma “pátria histórica” judaica em 1948, no coração de uma terra que era, há séculos, indiscutivelmente árabe, resultou em intermináveis problemas e num conflito sangrento aparentemente insolúvel.

O Hamas também culpa o Ocidente, especialmente os Estados Unidos, por seu apoio contínuo e incondicional a Israel, em total detrimento do povo palestino – que, ao que parece, é o único que não possui direitos nesse contexto. O Ocidente é visto pelo Hamas, e pelos palestinos em geral, como o principal patrocinador e protetor de Israel.

Ao longo das décadas desde 1948, as políticas ocidentais com relação ao conflito no Oriente Médio contribuíram para uma percepção cada vez mais negativa do Ocidente em todo o mundo árabe. Com o apoio ocidental, Israel se tornou a maior potência militar da região, incluindo capacidades nucleares – a partir de tecnologias transferidas inicialmente por França e Reino Unido, e depois pelos Estados Unidos. Com esse respaldo e uma população de apenas 6 milhões, Israel também desenvolveu uma economia robusta: em 2005, seu PIB era de US$ 121 bilhões, valor próximo ao total combinado de US$ 128 bilhões dos países árabes vizinhos (Egito, Síria e Jordânia), cuja população somada ultrapassava 105 milhões. O PIB per capita israelense ultrapassava US$ 22 mil, enquanto o dos palestinos era de apenas US$ 1.100.

Outras guerras na região também foram vistas como incentivadas ou lideradas pelo Ocidente com o intuito de enfraquecer os árabes e manter a posição superior de Israel. As duas guerras do Golfo contra o Iraque, em 1990 e 2003, reforçaram, para o Hamas e para muitos palestinos e árabes, a convicção de que o Ocidente é firmemente contrário a qualquer potência militar árabe que possa, mesmo que potencialmente, equilibrar o arsenal de Israel. O Hamas tem reiteradamente apontado a influência dos lobbies judaicos sobre as políticas dos governos ocidentais, especialmente nos Estados Unidos.

No tocante à questão palestina especificamente, o Hamas considera que os países ocidentais jamais exerceram pressão séria sobre Israel para que este cumprisse sequer a longa lista de resoluções da ONU sobre a Palestina – muitas delas elaboradas cuidadosamente pelo próprio Ocidente. Essa lista começa pela Resolução 194 de 1948, que garantia aos refugiados palestinos o direito de retorno às suas terras e compensações pela perda de suas casas e propriedades, expulsos com a criação do Estado de Israel. Outras resoluções surgiram após a guerra de 1967: com a ocupação da Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) e da Faixa de Gaza, a ONU emitiu as Resoluções 242 e 338, pedindo a retirada de Israel dos “territórios ocupados” e rejeitando a anexação de Jerusalém Oriental.

Os palestinos e os árabes em geral se sentiram desapontados com quase todas as resoluções da ONU sobre a Palestina. Segundo o Hamas, essas resoluções foram redigidas pelos poderes ocidentais de maneira a assegurar, antes de tudo, os interesses de Israel. No entanto, árabes e palestinos acabaram aceitando todas essas resoluções. A ironia, segundo o grupo, está no fato de que os países ocidentais demonstraram completa falta de compromisso com as resoluções que eles mesmos ajudaram a formular, e nenhuma disposição para pressionar sua “criação”, Israel, a implementá-las.

Portanto, o que molda a visão negativa do Hamas sobre o Ocidente não é apenas o legado de políticas passadas e tendenciosas em relação à questão Palestina/Israel, mas também a persistência atual em não mudar essas políticas e em não agir diante da violação de resoluções já acordadas. Ainda assim, o Hamas não considera o Ocidente seu inimigo. Em sua literatura e declarações, o grupo sempre reafirma que seu único inimigo é Israel, e que seu campo de batalha está claramente limitado às fronteiras da Palestina histórica. Essa tem sido uma postura pragmática, que evita ampliar o conflito. Com os anos de experiência e amadurecimento, a visão do Hamas sobre o Ocidente se tornou mais sofisticada, sendo capaz de diferenciar os diversos atores e políticas envolvidas.

 

 

O Hamas já atacou ocidentais dentro ou fora da Palestina? 

O Hamas nunca atacou ocidentais, seja dentro ou fora da Palestina. Nunca considerou ocidentais individuais – nem mesmo entidades militares ou econômicas ocidentais – como inimigos ou alvos legítimos. A literatura documentada do Hamas e os registros de eventos desde sua fundação atestam não apenas essa política rígida, mas também sua capacidade de a cumprir.

Essa política está firmemente baseada em duas premissas:

  1. O Hamas não considera o Ocidente (oficial ou praticamente) como inimigo. Portanto, cidadãos e instituições ocidentais, tanto em Israel quanto na Cisjordânia e Faixa de Gaza, jamais foram alvos deliberados.

  2. O Hamas distingue claramente entre as políticas do Ocidente e os indivíduos ocidentais. Ele critica publicamente as políticas parciais do Ocidente no conflito com Israel, mas mantém contatos amistosos com diversas organizações, especialistas, apoiadores e pessoas comuns ocidentais. Seus líderes afirmam que os cidadãos do Ocidente estão muitas vezes desinformados sobre o que seus governos realmente fazem contra os povos do Oriente Médio. Dizem ainda que, se houver abertura e interesse genuíno por parte desses cidadãos, será fácil compreender a justeza e legitimidade das reivindicações palestinas.

A ascensão do Hamas ao poder em 2006 apenas reforçou essa postura pragmática em relação ao Ocidente. Altos dirigentes e ministros do governo do Hamas demonstraram interesse em abrir canais de diálogo com o Ocidente. Apesar do embargo inicial imposto pelos EUA e pela União Europeia, o governo do Hamas conseguiu resistir de forma desafiadora e ampliar sua rede de contatos com autoridades e instituições ocidentais.

 

Quais são as percepções do Hamas sobre a civilização e os ideais ocidentais?

As visões do Hamas sobre a civilização ocidental e seus ideais derivam, em grande parte, da corrente de pensamento enraizada de seu movimento-mãe, a Irmandade Muçulmana. Sua visão baseia-se na distinção teórica entre os aspectos científicos, tecnológicos e administrativos da civilização ocidental, e suas filosofias e valores subjacentes.

O Hamas, assim como outros movimentos islamistas tradicionais, acolhe positivamente os avanços que considera serem “cientificamente neutros” do Ocidente, e não enfrenta objeções de princípio em tomá-los emprestado e utilizá-los. No entanto, recusa-se a aceitar o que considera ser a “moralidade materialista” da modernidade ocidental e a ausência de espiritualidade: a marginalização do divino e a secularização da humanidade.

Na prática, a forma como o Hamas lida com os elementos da modernidade política ocidental – e os adota de fato – revela a fragilidade relativa da distinção teórica entre os aspectos tecnológicos e não tecnológicos do Ocidente. Na ausência de literatura suficiente do Hamas sobre essas questões específicas, sua prática política mostra que o movimento absorve mais valores “ocidentais” do que estaria disposto a admitir. Aspectos da modernidade política de origem ocidental foram internalizados, consciente ou inconscientemente, pelo Hamas e se manifestam em suas interações políticas, organizacionais e sociais. Por exemplo, a própria natureza da luta de libertação do Hamas evoluiu com base no conceito de Estado-nação (e não na noção de uma Ummah islâmica sem fronteiras); sua hierarquia partidária segue a formação dos partidos políticos do Ocidente; seus assuntos internos são conduzidos com práticas democráticas ocidentais; e sua retórica política incorpora noções ocidentais como direitos humanos e cidadania, além da regra da maioria e do Estado de Direito.

Muitos dos principais dirigentes do Hamas, e desde 2006 seus ministros de gabinete, foram formados no Ocidente ou em universidades que ensinam segundo métodos ocidentais. Os especialistas do Hamas em diversas áreas como ciência, agricultura, administração, contabilidade, planejamento urbano e rural, educação, medicina e engenharia exercem suas funções de acordo com práticas originadas no Ocidente. Como se observa em muitos outros islamistas de classe média, por baixo da aparência religiosa está uma essência tecnocrática movida pela busca da perfeição e do interesse próprio.

 

HAMAS E OS ESTADOS UNIDOS

Quais percepções os Estados Unidos e o Hamas têm um do outro?

A percepção dos Estados Unidos sobre o Hamas reproduz quase integralmente a visão israelense. Quando o Hamas surgiu no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, houve sinais de aproximações pragmáticas e tentativas iniciais de diálogo. Contatos indiretos e mensagens foram enviados ao Hamas por meio de embaixadores norte-americanos na região ou pessoas próximas a eles. O objetivo declarado era “explorar” de perto as posições e atitudes do movimento em ascensão. No final de 1992 e início de 1993, os americanos chegaram a manter contatos oficiais e reuniões com membros seniores do Hamas em Amã, através da embaixada dos EUA na cidade.

Naqueles anos, Israel ainda esperava que o crescimento do Hamas enfraquecesse a OLP e, principalmente, o movimento Fatah. Assim, a postura exploratória discreta dos EUA foi indiretamente aprovada por Israel, na medida em que esperava que os Estados Unidos influenciassem o Hamas a mudar suas visões e estratégias.

Mas, quando os contatos entre EUA e Hamas chamaram a atenção pública, Israel protestou e os EUA encerraram abruptamente qualquer comunicação. O Hamas denunciou essa decisão como prova clara da profunda influência do lobby judaico sobre Washington. A partir de então, a posição oficial dos EUA endureceu rapidamente em relação ao Hamas. Poucas semanas após o fim dos contatos, Washington rotulou o movimento como uma “organização terrorista” em seu relatório de abril de 1993 sobre o terrorismo global. As discussões iniciais sobre se o Hamas era um movimento de libertação ou uma organização terrorista foram prematuramente silenciadas entre os formuladores de políticas em Washington.

Mais tarde, após o Hamas adotar, em larga escala, a tática dos atentados suicidas em 1995 e 1996, a posição oficial dos EUA tornou-se ainda mais hostil. Washington passou a exercer forte pressão sobre a Autoridade Palestina, liderada pelo Fatah, para reprimir o Hamas e desmantelar seu braço armado – algo que sempre esteve além da capacidade da Autoridade Palestina. Dentro dos Estados Unidos, diversas associações e instituições de caridade islâmicas e palestinas foram proibidas, sob a acusação de financiarem o Hamas. Politicamente, os Estados Unidos se alinharam firmemente com a Autoridade Palestina e deixaram claro que não havia lugar para o Hamas, a menos que este depusesse completamente as armas, denunciasse o “terrorismo” e reconhecesse Israel – exigências que o Hamas recusou.

Nos anos seguintes, além do confronto direto e bilateral, os Estados Unidos e Israel intensificaram a pressão sobre a União Europeia para que também classificasse o Hamas como organização terrorista. A UE cedeu parcialmente e decidiu oficialmente considerar o braço militar do Hamas como tal (ver mais adiante). Após os ataques da al-Qaeda em Nova York e Washington em 11 de setembro de 2001, os EUA declararam sua “guerra ao terror”, e o Hamas tornou-se alvo adicional. Neoconservadores pró-Israel em Washington colocaram o Hamas no mesmo grupo de organizações como a al-Qaeda. Ao fazer isso, atenderam às exigências israelenses de suprimir o “caráter de libertação nacional” do Hamas, reduzindo o movimento a mero componente do “terrorismo global”, embora as diferenças entre o Hamas e a al-Qaeda sejam inúmeras e inconfundíveis (ver Capítulo 7).

O maior desafio enfrentado por Washington em relação ao Hamas veio quando o movimento venceu as eleições para o Conselho Legislativo Palestino (PLC), em janeiro de 2006. O Hamas formou legitimamente um governo que foi prontamente atacado pelos EUA por não reconhecer Israel nem abandonar a “violência”. Ironia das ironias, essas eleições palestinas fizeram parte das reformas democráticas que os próprios Estados Unidos e a Europa haviam pressionado a Autoridade Palestina a realizar. A democracia que os EUA defendiam na Palestina e em outros países árabes havia, de fato, levado o Hamas ao poder. No entanto, quando isso aconteceu, os Estados Unidos rejeitaram o resultado democrático palestino e mobilizaram um embargo político e financeiro internacional contra o novo governo. Conseguindo persuadir a União Europeia a se unir à pressão, suspenderam toda a ajuda financeira aos palestinos, levando milhões de pessoas – que dependem majoritariamente dos salários pagos pela Autoridade Palestina – à beira da fome.

Por outro lado, a percepção do Hamas sobre os Estados Unidos também se radicalizou em resposta à “guerra unilateral” dos EUA contra o movimento. O Hamas chegou a um passo de considerar os Estados Unidos um inimigo. Ainda assim, os fundamentos teóricos que orientam as relações do Hamas com o mundo, e com os países ocidentais em particular, permaneceram intactos. Esses fundamentos afirmam que “os vínculos do Hamas com Estados estrangeiros e organizações internacionais, independentemente de qualquer carga política ou ideológica pré-existente, devem servir aos interesses do povo palestino, à sua causa e aos seus direitos”. O movimento mantém sua linha oficial de não atacar outros Estados: “O Hamas não tem disputa com nenhum Estado estrangeiro ou organização internacional, e a política do movimento é não atacar os interesses ou bens de Estados estrangeiros.”

O governo do Hamas seguiu essa mesma linha política e manteve todos os canais e possibilidades abertos para um novo capítulo – como governo palestino democraticamente eleito – nas relações com os Estados Unidos. Estes, porém, não demonstraram qualquer interesse.

 

HAMAS E A EUROPA

Quais percepções a Europa e o Hamas têm um do outro?

Assim como outras visões palestinas e árabes, o Hamas desenvolveu uma atitude ligeiramente mais amigável em relação à Europa contemporânea do que aos Estados Unidos. A Europa também costumava adotar uma linha de políticas diferente em relação ao conflito árabe-israelense em geral e à legitimidade dos direitos palestinos, quando comparada aos EUA.

O Hamas vê a Europa como um conjunto diverso de potências. O que separa os países europeus em questões centrais de política externa – evidenciado pela ausência de uma política externa comum efetiva da UE – supera o que os une. Assim, as posições britânica, francesa, espanhola e italiana sobre a Palestina e o Hamas variam. Essas políticas diferem inclusive entre os países escandinavos, sendo a Noruega um exemplo notável de exceção.

Diante disso, o Hamas manteve canais abertos e sempre buscou novos com a Europa. Tanto no nível coletivo da UE quanto no nível dos Estados individuais, o Hamas conseguiu fazer com que sua voz fosse ouvida de maneira razoável. Por meio de embaixadas europeias no Oriente Médio ou diplomatas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, o Hamas manteve contatos discretos com a Europa.

No entanto, em setembro de 2003, a União Europeia decidiu denunciar o Hamas ao aderir à “guerra ao terror” dos EUA. Essa decisão implicava que membros, líderes ou organizações afiliadas ao Hamas seriam proibidos de operar em qualquer país da UE – algo que, de fato, nunca chegou a se concretizar. Mas, para a frustração do Hamas e de muitos especialistas e diplomatas europeus, esse pronunciamento da UE foi visto apenas como uma conivência com a política externa hostil dos EUA conduzida pelos neoconservadores. Com essa decisão, a UE efetivamente se incapacitou de desempenhar um papel efetivo nos assuntos palestino-israelenses relacionados ao Hamas. Em especial, a União Europeia comprometeu seu papel crucial na mediação de “tréguas” temporárias com o Hamas – papel que desempenhou diversas vezes durante a Segunda Intifada de 2000.

A União Europeia também tem se mostrado perplexa em outras questões envolvendo o Hamas. Uma das principais é como lidar com as organizações de base amplamente eficazes e afiliadas ao Hamas. Na prática, e além da ajuda direcionada ao governo da Autoridade Palestina, milhões de euros anuais em fundos da UE precisam ser canalizados para ONGs que realizam projetos comunitários – campo em que a base social e caritativa do Hamas tem sido muito eficiente. Seria altamente questionável financiar apenas organizações não ligadas ao Hamas, ineficazes e muitas vezes corruptas, ignorando as que são eficazes e transparentes. Esse dilema se agravou ainda mais quando o Hamas venceu a maioria das eleições municipais de 2005 na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. As prefeituras, principais fornecedoras de serviços básicos, sempre foram vistas como entidades apolíticas com as quais a UE poderia se relacionar financeiramente sem grandes sensibilidades. Quando o braço social e caritativo do Hamas assumiu o controle da maioria delas – e, em curto prazo, apresentou resultados notáveis – a União Europeia se viu ainda mais constrangida por não cooperar com essas instituições.

Desde que o Hamas formou seu governo como resultado da vitória nas eleições parlamentares de 2006, a UE enfrenta o mesmo dilema, mas em uma escala sem precedentes. O Hamas é agora o governo democraticamente eleito dos palestinos – o interlocutor com o qual a UE deveria lidar. Ao contrário dos Estados Unidos, a UE é vista pela maioria dos palestinos como mais equilibrada, humana e sensível ao sofrimento do povo palestino, e menos submissa ao lobby judaico-israelense. Assim, a Europa vem assumindo um fardo moral que se concretiza na forma de ajuda humanitária aos palestinos – fardo esse, vale dizer, reconhecido inclusive pelos próprios Estados Unidos.

O dilema europeu em relação ao Hamas foi agravado exponencialmente com a decisão de abril de 2006 de suspender toda forma de ajuda oficial aos palestinos, até que o Hamas reconhecesse Israel e renunciasse à violência. Os ministros das Relações Exteriores da UE aprovaram a suspensão temporária de 600 milhões de dólares anuais em ajuda aos palestinos. Ben Bot, ministro das Relações Exteriores da Holanda, justificou essa medida dizendo: “O povo palestino optou por esse governo, então terá que arcar com as consequências”.

Por sua parte, o governo do Hamas se recusou veementemente a aceitar ajuda condicionada, mas tentou suavizar seu discurso militante. Condenou duramente a decisão europeia, que considera uma punição coletiva contra o povo palestino. Toda a reação às eleições palestinas foi vista pelo Hamas – e por muitos outros – como uma escandalosa demonstração da hipocrisia política ocidental. O resultado de eleições livres e justas foi vergonhosamente rejeitado porque os vencedores não são pró-Ocidente, nem estão dispostos a aceitar ou implementar o que lhes foi imposto por seu inimigo, Israel. O Hamas, no entanto, conseguiu fazer aquilo que sabe fazer de melhor: explorar brechas e divergências – neste caso, entre os países europeus – para contornar alguns dos obstáculos impostos pela decisão da UE. Mais uma vez, discretamente, vários países europeus agiram fora da “política oficial da UE” e mantêm seus canais e cooperação com o governo do Hamas.

 

Veremos membros do Hamas atuando como embaixadores palestinos em Londres, Paris, Bruxelas e Washington, entre outras capitais?

Não é uma possibilidade remota que membros seniores do Hamas venham a atuar como embaixadores palestinos em cidades ocidentais e europeias. A ideia – muito mais improvável – de que o Hamas se tornaria o governo palestino já se concretizou. Se o Hamas conseguir sobreviver às enormes pressões internas na Palestina e ao bloqueio internacional imposto ao seu governo, todas as possibilidades estão abertas. Em princípio, o Ministério das Relações Exteriores palestino dirigido pelo Hamas tem a prerrogativa de nomear embaixadores ao redor do mundo.

A julgar pelo empenho anterior do Hamas em cultivar sua imagem e relações públicas, é de se esperar que o movimento promova uma reestruturação no corpo diplomático palestino atual. Talvez existam duas razões principais para isso. A primeira seria a necessidade urgente de reformar a política externa palestina, tanto em termos organizacionais quanto de mensagem. Muitos dos atuais embaixadores palestinos, há muito tempo no cargo, já esgotaram suas ideias e entusiasmo – alguns estão há até 20 anos no mesmo posto. Igualmente importante para o Hamas será a necessidade de enviar ao exterior representantes mais alinhados com o movimento, ou leais à sua linha política. Mas, mais uma vez, tudo depende do sucesso do governo do Hamas em resistir ao cerco que enfrentou desde seus primeiros dias.


 

LIDERANÇA E ESTRUTURA DO HAMAS

 

 

 

Como é a hierarquia de liderança do Hamas?

A estrutura de liderança do Hamas é dividida em duas partes algo paralelas, embora ligeiramente diferentes: uma dentro da Palestina e outra fora da Palestina. A liderança “interna” sempre foi promovida a partir das bases do movimento por meio de eleições internas – uma prática bem estabelecida nos movimentos islamistas com origem e tradições ligadas à Irmandade Muçulmana.

A liderança “externa” evoluiu de forma diferente, pois o Hamas, compreensivelmente, não possui fora da Palestina o mesmo tipo de organização de membros que tem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Essa liderança fora da Palestina foi originalmente formada em coordenação com o Hamas “interno”, principalmente como um mecanismo de retaguarda na época da fundação do movimento, no final da década de 1980. Pensava-se, com razão, que o Hamas precisaria de apoio externo, tanto financeiro quanto político, e essa seria a função da liderança exilada.

A militância do Hamas, estritamente disciplinada, é composta por palestinos das classes pobres e médias, com forte presença em campos de refugiados e nas áreas mais carentes. Muitos palestinos mais abastados também demonstram lealdade ao Hamas, especialmente em cidades conhecidas por seu conservadorismo tradicional, como Hebron e Nablus. Membros do Hamas nas localidades elegem seus representantes para o principal órgão do movimento, o Majlis ash-Shoura (Conselho Consultivo), responsável por definir a estratégia geral do Hamas. Esse conselho, por sua vez, escolhe os membros do mais restrito “Birô Político”, composto por 10 a 20 pessoas, que lidam com os assuntos cotidianos.

O Conselho Consultivo e o Birô Político estabelecem comissões especializadas que cuidam de diferentes áreas de atuação do Hamas: assistencial e social, educacional, recrutamento, militar, financeira, de mídia e relações públicas, religiosa, de mulheres, entre outras. Há uma considerável – e deliberada – indefinição sobre a cadeia exata de “comando e controle” entre a liderança política de topo e a ala militar Izzedin al-Qassam. Por razões de segurança, o Hamas mantém uma ampla separação entre o funcionamento de cada um de seus ramos e, em especial, distancia todos eles da ala militar (ver mais adiante).

A liderança do Hamas está efetivamente dividida entre três áreas geográficas: a Cisjordânia, a Faixa de Gaza (ambas dentro da Palestina) e as comunidades no exílio, principalmente na Jordânia, no Líbano e na Síria (constituindo a liderança “externa”). Avaliar qual dessas áreas detém mais poder é uma questão de interpretação. A opinião de que a liderança do Hamas na Faixa de Gaza é a mais poderosa possui fundamentos sólidos. Em geral, o equilíbrio de poder sempre favoreceu a liderança interna. Após o Hamas chegar ao poder em 2006, essa liderança interna foi ainda mais fortalecida. Mas, embora seja seguro afirmar que a liderança interna em seus dois polos (Cisjordânia e Faixa de Gaza) controla os “músculos” do movimento, é a liderança externa que detém os recursos financeiros e os contatos internacionais.

Ao longo dos anos, essa liderança tripartida demonstrou uma notável capacidade de “gestão da tomada de decisões”. O desafio enfrentado pelo Hamas nesse aspecto incluiu não apenas a partilha das decisões, mas também a administração rotineira e a coordenação diária entre os três ramos. Os porta-vozes do Hamas insistem em destacar a natureza de “liderança coletiva” do movimento, acima de figuras individuais, e na prática têm demonstrado uma adesão significativa a esse princípio. Até o momento, não surgiram personalidades autoritárias ou líderes carismáticos que tenham utilizado sua influência para impor uma visão pessoal ao movimento como um todo – algo que ocorreu, por exemplo, na OLP, no Fatah e com Yasser Arafat.

 

Quão coeso e unido é o Hamas, e há radicais e moderados dentro dele?O Hamas é uma organização altamente sofisticada, com uma estrutura coerente e uma forte cultura de solidariedade interna. É a única organização palestina que preservou sua unidade e integridade ao longo de quase seis décadas de luta contra o sionismo colonial. Desde sua formação, não houve cisões nem sequer pequenos grupos dissidentes. Isso se deve, em parte, aos valores religiosos que incentivam a coesão e desaprovam as divisões, e em parte ao seu histórico organizacional, enraizado na cultura da Irmandade Muçulmana, onde os membros priorizam a unidade em detrimento de divergências de opinião. Além disso, os desafios enfrentados pelo Hamas alimentaram sua postura unificada. Confrontado com medidas israelenses extremas desde sua criação, e depois com uma série de repressões por parte da Autoridade Palestina liderada pelo Fatah desde 1994, um senso de solidariedade e propósito foi ainda mais consolidado por todas essas limitações de segurança e até mesmo por prisões em países árabes vizinhos.

Embora o Hamas tenha permanecido coeso, o movimento testemunhou o surgimento de opiniões diversas sobre algumas questões importantes. Vozes moderadas e radicais estiveram nitidamente presentes em certos momentos, especialmente no que diz respeito à continuidade da tática de atentados suicidas. Algumas figuras de destaque adotavam posições firmes sobre determinado tema, enquanto outras usavam tons mais moderados, deixando a porta aberta para outras opções e interpretações. A observação mais importante, no entanto, é que não houve o desenvolvimento de nenhum grupo específico dentro do Hamas que seja geograficamente baseado, ou politicamente ou ideologicamente coeso, que possa ser rotulado como uma facção "radical" ou "moderada". É particularmente impreciso descrever de forma generalizada a liderança "interna" ou "externa" do Hamas como sendo moderada ou radical, ou dizer que o Hamas na Faixa de Gaza é mais radical que o Hamas na Cisjordânia, ou vice-versa. Na verdade, vozes moderadas e radicais existem nos três ramos existentes do movimento.

Portanto, a dicotomia radicais/moderados que algumas pessoas tentam aplicar às lideranças interna/externa do Hamas, ou ao Hamas de Gaza/Cisjordânia, tem pouca relevância. Um dos motivos pelos quais o Hamas permaneceu unido é a inaplicabilidade dessa dicotomia a qualquer separação geográfica ou ideológica entre seus três ramos. Se vozes moderadas, ou radicais, estivessem concentradas majoritariamente em uma dessas áreas, o Hamas teria enfrentado sérios problemas e poderia ter se dividido.

A coesão e unidade do Hamas, no entanto, enfrentaram seu maior desafio desde a fundação do movimento quando ele assumiu o poder nas eleições de janeiro de 2006. O Hamas teve que harmonizar suas responsabilidades organizacionais com as governamentais sob enorme pressão israelense e ocidental, sem perder a confiança do povo e com coordenação estreita entre seus três ramos. O desafio é extremamente complexo: líderes do Hamas dentro e fora da Palestina em contraste com o primeiro-ministro do Hamas, ministros do governo do Hamas versus líderes do movimento Hamas, relações externas do Hamas versus os assuntos exteriores do governo Hamas, e assim por diante. Poder e responsabilidade inevitavelmente se fragmentam, geram disputas e conflitos, e manter tudo isso sob controle exigiu – e continuará exigindo – habilidades extraordinárias. Só o tempo dirá se o Hamas unificado que existia antes de vencer as eleições continuará o mesmo agora que está no poder.

 

Qual é a relação entre os braços político e militar do Hamas?

A liderança política é a autoridade suprema no Hamas. Todos os outros ramos e setores estão subordinados à estratégia e às diretrizes estabelecidas pelo Conselho Consultivo e pelo Bureau Político do Hamas. Como mencionado anteriormente, o Hamas é multifuncional e possui “agências” separadas para executar seus serviços e estratégias gerais. No que se refere à ação militar do Hamas, é a liderança política que decide se, em determinado momento, o braço militar deve continuar, interromper, aumentar ou reduzir as operações militares. Assim, a decisão de dar um sinal verde ou vermelho geral é calculada politicamente e repassada ao setor militar.

Ao mesmo tempo, no entanto, membros da liderança política frequentemente – e, muito provavelmente, com sinceridade – afirmam que não sabem nada sobre as especificidades operacionais e técnicas do braço militar. Por razões de segurança, a liderança política do Hamas é mantida quase completamente no escuro sobre os detalhes de tempo e localização dos ataques com antecedência. Portanto, embora o braço militar funcione virtualmente de forma independente, do ponto de vista operacional, ele é governado por uma estratégia política elaborada e implementada pela liderança política.

Uma questão central neste contexto é: se o Hamas declarasse um cessar-fogo, seu braço militar seria disciplinado o suficiente para cumpri-lo? Com base na experiência passada, a resposta imediata é: “muito provavelmente, sim”. Anteriormente, o braço militar do Hamas demonstrou um alto grau de disciplina. Em várias ocasiões em que a liderança política do Hamas decidiu interromper os ataques militares por razões políticas, de segurança ou estratégicas, o braço militar agiu em conformidade. Ao longo da existência da organização, não houve divisão visível entre os dois braços do Hamas.

No entanto, uma mudança significativa ocorreu desde que o Hamas se tornou a Autoridade Palestina – a mesma administração que o Hamas costumava criticar e ignorar ao realizar ataques militares contrários à sua vontade e planos. A situação com o Hamas no poder é mais difícil e os riscos agora são maiores. Surgiu mais espaço para insatisfação e atritos entre os braços político e militar. Dito isso, por pelo menos um ano antes de assumir o poder, o Hamas comprometeu-se com “um período de calma” mediado pelo Egito, segundo o qual Israel cessaria os ataques contra líderes do Hamas e o Hamas cessaria seus próprios ataques. Após a vitória eleitoral, o Hamas prorrogou (unilateralmente) esse período de calma. O Hamas reconheceu a pressão de outras prioridades que precisavam ser urgentemente abordadas pelo novo governo do Hamas e deixou de lado, ao menos temporariamente, o ônus dos ataques militares até que a situação se esclarecesse.

Enquanto o Hamas suspendeu seus ataques contra Israel durante esse período de calma autodeclarado, o Fatah e outros grupos palestinos começaram sua própria série de ataques – em parte para constranger o Hamas, e em parte em resposta aos ataques israelenses ininterruptos, que também tinham o objetivo de provocar o Hamas. Ao não retaliar contra as provocações israelenses nem acompanhar os ataques dos grupos rivais, o braço militar do Hamas começou a demonstrar sinais de insatisfação e inquietação. No momento da redação, não havia divisão visível, mas os acontecimentos se desenvolviam rapidamente e todas as possibilidades estavam em aberto.

O pior cenário para o Hamas nesse contexto é que sua liderança política perca o controle sobre seu braço militar – ou parte dele. Não é improvável que grupos revoltados dentro das brigadas militares Izzedin al-Qassam do Hamas se fragmentem em células mais radicais e desconectadas. Isso seria um desenvolvimento realmente sombrio, não apenas para o Hamas, mas para toda a situação palestina. Poderia criar uma condição semelhante à da Argélia, onde o maior movimento islamista se fragmentou em grupos extremos desorganizados e fora de controle.

Quem é o sheikh Ahmad Yassin, fundador do Hamas, e qual é sua importância? 

O sheikh Ahmad Yassin é considerado o fundador, a figura espiritual e a personalidade mais histórica do Hamas. Totalmente paralisado em uma cadeira de rodas desde os onze anos de idade, o líder calmo e carismático era, até sua morte, a personalidade mais popular da Faixa de Gaza. Aos 66 anos, foi morto por um helicóptero israelense, junto com outros nove palestinos, logo após terminar as orações do amanhecer em 22 de março de 2004, em uma das mesquitas da Cidade de Gaza.

Quando tinha dez anos, em 1948, sua família e dezenas de milhares de palestinos foram forçados a deixar suas casas e vilas, sendo empurrados para áreas fora do território "redistribuído", que desde então seria conhecido como Israel. Ele e sua família se tornaram “refugiados” na Faixa de Gaza, onde viveu uma vida miserável e marcada por doenças. Apesar da saúde frágil, tornou-se politicamente e religiosamente muito ativo. O sheikh Yassin foi um dos fundadores da Irmandade Muçulmana na Faixa de Gaza, além de fundador do “Complexo Islâmico”, uma instituição educacional e beneficente islâmica que, por muitos anos, foi o centro do ativismo islâmico na região.

Professor por profissão, o sheikh Yassin (o termo “sheikh”, além de ser um título formal para líderes hereditários ou de aldeia, é usado neste caso como marca de afeto e respeito) foi condenado duas vezes por tribunais militares israelenses: primeiro a 13 anos de prisão em 1985 e depois à prisão perpétua em 1991, sob a acusação de dirigir células militares contra soldados israelenses. Em ambas as ocasiões, acabou sendo libertado por meio de acordos. Em 1985, Israel foi compelido a libertá-lo, junto com outros prisioneiros palestinos, em troca da libertação de soldados israelenses capturados por grupos palestinos no sul do Líbano. Em 1997, foi libertado após pressão do então rei Hussein da Jordânia, que ficou furioso com Israel por ter enviado espiões ao país para tentar assassinar outro líder do Hamas, Khaled Mish’al, que estava ali naquele momento.

Yassin era o principal ideólogo, mobilizador, pragmático e populista do Hamas. Projetando o modelo típico de um líder islamista inquieto, cujo pragmatismo jamais eclipsou seus sonhos de uma utopia baseada em princípios, suas ideias e visões moldaram em grande parte a orientação política do movimento. Foi ele quem sugeriu a ideia da hudna (trégua), por meio da qual o Hamas poderia chegar a um cessar-fogo mútuo com Israel sem abrir mão de seus princípios religiosos ou nacionalistas. Também foi ele quem declarou que uma “guerra civil” entre palestinos era uma linha que não deveria ser cruzada. Mesmo que o Hamas fosse continuamente atacado pela Autoridade Palestina e por sua principal facção, o Fatah, o movimento jamais deveria retaliar, insistia Yassin, pois isso poderia levar a uma guerra fratricida entre palestinos. No nível social e religioso, Yassin acumulou uma autoridade moral rara na Faixa de Gaza. Era um árbitro e juiz respeitado, a quem famílias e grupos em disputa podiam recorrer para resolver seus conflitos.

A influência de Yassin preservou um grande senso de unidade dentro do Hamas, pois ele operava acima da competição entre os líderes de segundo escalão. No entanto, essa mesma posição inabalável de respeito acabou, indiretamente, por limitar o surgimento de ideias e iniciativas inovadoras que poderiam ser sugeridas por outros. Muitos líderes sentiam a necessidade de se manterem alinhados às ideias de Yassin, para não se afastarem da base do movimento. Mesmo após sua morte, o legado e as declarações de Yassin continuam a ser frequentemente referidos pelos atuais líderes e figuras proeminentes do Hamas.

 

Quem são os líderes mais poderosos do Hamas?

Ao longo da existência do Hamas, vários nomes e rostos se tornaram conhecidos do público externo como figuras centrais e porta-vozes do movimento. Além do sheikh Ahmad Yassin, mencionado acima, há uma lista de pessoas cuja influência e papel foram e continuam sendo fundamentais para a formação do Hamas e sua política atual.

Antes de apresentar essas figuras, é útil destacar que os líderes do Hamas (especialmente os que estão dentro da Palestina) compartilham um perfil quase comum: a imensa maioria veio de campos de refugiados pobres ou da classe média baixa; obteve educação universitária; pertenceu desde a juventude à Irmandade Muçulmana, seja na Cisjordânia, na Faixa de Gaza ou no exterior (no caso da liderança exilada); passou anos nas prisões israelenses; e muitos foram mortos ou alvo de tentativas de assassinato pelo exército israelense. Em termos religiosos, todos os líderes do Hamas são profundamente religiosos e conservadores pelos padrões dos muçulmanos comuns. A observância dos ensinamentos islâmicos nos níveis individual, familiar e social é visível e constitui um aspecto fundamental de suas personalidades.

Outro aspecto notável é a simplicidade e modéstia dos líderes e altos dirigentes do Hamas. Essas virtudes sempre conferiram grande popularidade ao movimento. Os líderes mais graduados do Hamas ainda vivem lado a lado com pessoas pobres e comuns. O sheikh Ahmad Yassin viveu – e acabou sendo morto – no mesmo campo de refugiados para o qual sua família foi forçadamente transferida em 1948.

Até mesmo o primeiro-ministro do governo do Hamas, Ismail Haniyeh, recusou-se a deixar sua casa modesta e de classe baixa para se mudar para a residência confortável do ex-primeiro-ministro. Na primeira reunião do gabinete do governo do Hamas, que durou seis horas em 5 de abril de 2006, Haniyeh e seus ministros comeram sanduíches simples de homus e falafel comprados em uma loja local.

O gabinete declarou que reduziria pela metade todos os salários dos ministros e parlamentares, e que só os pagaria depois que todos os demais palestinos tivessem recebido seus salários. O presidente do parlamento, Aziz Duwaik, outra figura do Hamas, recusou-se a receber um carro especial com segurança e proteção. Disse que “jamais custaria um centavo extra ao orçamento do governo”. Da mesma forma, os membros da liderança do Hamas no exterior projetam um estilo de vida simples e modesto. Por exemplo, Khaled Mish’al, chefe do Escritório Político do Hamas, surpreendeu os demais passageiros da classe econômica durante uma viagem de Riad a Damasco em março de 2006. O povo palestino compara esse comportamento simples e próximo do povo com o estilo de vida luxuoso e a arrogância dos principais líderes do movimento Fatah derrotado e dos ex-membros graduados da Autoridade Palestina.

A lista seletiva a seguir inclui líderes dos três ramos geográficos onde a liderança do Hamas atua: Cisjordânia, Faixa de Gaza e exílio.

 

 

Abdul ’Aziz al-Rantisi Ramo de Gaza, assassinado por Israel

Durante muitos anos, al-Rantisi foi considerado o segundo na hierarquia de liderança após o sheikh Ahmad Yassin, o líder histórico e espiritual do movimento. Al-Rantisi assumiu a liderança do Hamas na Faixa de Gaza na primavera de 2004, após os israelenses assassinarem o sheikh Yassin. Menos de um mês depois, porém, o próprio al-Rantisi foi assassinado. Ele foi um dos fundadores do Hamas e companheiro de longa data do sheikh Yassin. Carismático e articulado por natureza, combinava modéstia com seus “irmãos” no movimento e firmeza com seus inimigos, o que o tornou amplamente popular dentro do Hamas e entre os palestinos em geral. Tinha posições duras, mas nunca contradisse a visão mais moderada de Yassin.

Políticos e intelectuais palestinos seculares, no entanto, nunca se impressionaram com sua política ou discurso. Eles o viam como um mestre em embalar demandas irreais em uma retórica religiosa poderosa.

Al-Rantisi nasceu em 1947, em uma vila próxima a Jaffa. Um ano depois, após a guerra de 1948 e a criação do Estado de Israel, centenas de milhares de palestinos foram expulsos de suas vilas e cidades, incluindo a família de al-Rantisi, que acabou no campo de refugiados de Khan Yunis, na região de Gaza. Ele cursou o ensino médio ali, viajou para o Egito para estudar medicina e retornou a Khan Yunis como pediatra. Mais tarde, tornou-se professor na Universidade Islâmica de Gaza.

Desde muito jovem, foi politicamente ativo com uma inclinação islâmica clara, sendo membro da Irmandade Muçulmana palestina. Após a fundação do Hamas, foi preso várias vezes e, em 1992, deportado para o sul do Líbano por um ano com mais de 415 palestinos. Ao retornar, em 1993, foi imediatamente preso e permaneceu detido até 1997. Um ano após sua libertação, foi preso novamente, dessa vez pela Autoridade Palestina (cedendo à pressão israelense) por causa de suas atividades com o Hamas. Quando a prisão foi atacada por bombardeios israelenses, a Autoridade Palestina o libertou e outros palestinos. Em junho de 2003, escapou por pouco de uma tentativa de assassinato israelense, na qual seu guarda-costas e uma criança que passava pelo local foram mortos. Seu assassinato bem-sucedido, um ano depois, abriu caminho para a ascensão de Mahmoud al-Zahhar.

 

Mahmoud al-Zahhar Ramo de Gaza, ministro das Relações Exteriores no governo do Hamas

Nascido em 1945, al-Zahhar é uma figura veterana que se tornou ministro das Relações Exteriores no governo eleito do Hamas em 2006. Estudou medicina no Cairo, onde obteve um mestrado, e depois atuou como médico na Faixa de Gaza. Desde a juventude, primeiro em Gaza e depois no Egito, al-Zahhar foi um membro ativo da Irmandade Muçulmana. Foi fundador de várias sociedades médicas e cofundador da Universidade Islâmica de Gaza.

Por muito tempo, foi conhecido como uma das vozes relativamente moderadas do Hamas. Em 1996, chegou a fazer um raro apelo público independente, por meio da mídia, ao braço militar do Hamas, Izzedin al-Qassam, pedindo a suspensão dos atentados suicidas. Imediatamente, foi criticado por membros do Hamas e temporariamente marginalizado.

Após os assassinatos do sheikh Yassin e de al-Rantisi, foi eleito líder do Hamas na Faixa de Gaza. Ele próprio foi alvo de várias tentativas de assassinato por parte dos israelenses. Em setembro de 2003, um F-16 israelense bombardeou sua casa em Gaza, ferindo-o juntamente com sua filha e matando seu filho Khaled, de 29 anos. A casa foi destruída, e muitas outras pessoas foram mortas ou feridas. O impacto desse ataque e a grande perda de seu filho, combinados com um impulso crescente para compensar a falta de carisma que seus dois antecessores possuíam, levaram a um radicalismo perceptível em sua postura e discurso, em comparação com suas inclinações iniciais. Ainda assim, quando se tornou ministro das Relações Exteriores, passou a emitir mensagens mistas de moderação e radicalismo, e o Zahhar mais moderado começou a emergir novamente.

Desde cedo, al-Zahhar foi talvez o primeiro entre as figuras do Hamas a falar sobre uma solução provisória e “pragmática” para o conflito com Israel. Em março de 1988, quatro meses após a fundação do Hamas, ele apresentou uma proposta de quatro pontos a Shimon Peres, então ministro das Relações Exteriores de Israel, que incluía:

  1. Israel declararia sua disposição de se retirar dos territórios ocupados em 1967, especialmente Jerusalém.

  2. Os Territórios Ocupados seriam colocados sob custódia das Nações Unidas.

  3. O povo palestino, dentro e fora da Palestina, nomearia seus representantes para as negociações de paz da forma que preferisse. Israel não poderia se opor à escolha, a menos que os palestinos também tivessem o direito de se opor aos representantes de Israel.

  4. Em um momento acordado por ambas as partes, começariam negociações entre os representantes sobre todas as questões relativas a todos os direitos.

 

Ismail Haniya Ramo de Gaza, primeiro-ministro no governo do Hamas

Nascido no campo de refugiados de Shati, em Gaza, em 1962, Haniya cresceu completamente imerso na miséria dos palestinos que perderam suas terras e acabaram em campos de refugiados empobrecidos. Sua família foi deslocada de Asqalan, perto de Jaffa, durante a guerra de 1948. Haniya concluiu sua graduação em estudos da língua árabe na Universidade Islâmica de Gaza, onde sua trajetória de liderança foi moldada como uma figura proeminente entre os estudantes islamistas no início dos anos 1980.

Com a formação do Hamas, Haniya esteve na linha de frente como um dos membros fundadores mais jovens. Após a Primeira Intifada, em 1987, foi preso várias vezes e, em 1992, deportado para o sul do Líbano com outros 415 ativistas islamistas. Embora Haniya fosse menos visível para o mundo externo do que os dois membros seniores mencionados anteriormente, não era menos significativo. Uma voz moderada conhecida dentro do Hamas, Haniya acumulou profundo respeito entre os membros do movimento e grande popularidade entre o público palestino em geral. O sheikh Yassin, líder espiritual do Hamas, o nomeou como seu primeiro confidente e assessor, e ele permaneceu próximo de Yassin até sua morte.

Haniya é uma das figuras seniores moderadas mais reconhecidas do Hamas. Sempre foi o homem que buscava acordos entre seu grupo e seus adversários. Durante períodos de atrito entre o Hamas e outros grupos palestinos, Haniya sempre foi visto como um mediador confiável por todas as partes e capaz de acalmar situações voláteis. Sua calma e popularidade, modéstia e moderação levaram o Hamas a encarregá-lo da liderança da campanha eleitoral de 2006, a qual venceu de forma expressiva.

O Hamas decidiu boicotar as eleições de 1996 para o primeiro Conselho Legislativo Palestino – criado conforme os Acordos de Oslo assinados dois anos antes entre Israel e a OLP – porque “eram fruto do acordo de capitulação de Oslo”. Haniya e outros três integrantes do Hamas decidiram concorrer às eleições, em oposição à posição oficial do movimento. Sob pressão crescente, Haniya e seus colegas recuaram e aderiram à linha oficial do Hamas. Na época, Haniya explicou sua posição pró-participação a este autor, o que oferece importantes vislumbres de seu pensamento político. Ele expôs oito pontos cuidadosamente elaborados, que mostravam as vantagens de participar das eleições, conforme segue:

  1. A participação nas eleições não equivaleria a uma rendição da posição política do Hamas, desde que o movimento disputasse as eleições sob a bandeira de todos os princípios com os quais se identifica.

  2. A participação garantiria uma presença política legítima para o movimento após as eleições, e o Hamas teria assegurada uma proteção contra decretos que pudessem ilegalizá-lo.

  3. O Hamas se manteria informado e em posição de participar da formulação de legislações que regem a sociedade civil, emanadas do Conselho eleito, assegurando assim uma garantia contra a exclusão.

  4. O Hamas estaria em posição de introduzir reformas significativas e urgentemente necessárias nas instituições domésticas e poderia combater a disseminação da corrupção.

  5. O Hamas poderia participar da criação de instituições oficiais – algo que sempre reivindicou – em consonância com seu desejo enfático de participar da sociedade civil e promover o desenvolvimento interno.

  6. O Hamas estaria bem informado sobre os desdobramentos nas negociações sobre o status final e sobre o que viria a seguir.

  7. O Hamas garantiria proteção para si e para as instituições que patrocinou ao longo dos anos, e seus líderes políticos e figuras proeminentes gozariam de imunidade parlamentar.

  8. A participação nas eleições seria uma resposta à demanda de uma parcela significativa de nosso povo, que procura candidatos honestos e tementes a Deus, para que possam se sentir tranquilos quanto às ações em diversas áreas da vida.

 

 

 

Aziz Duwaik Ramo da Cisjordânia, presidente do Parlamento Palestino

Nascido em 1948 em Hebron, na Cisjordânia, em uma família de classe média, Duwaik concluiu o ensino médio na cidade e, em seguida, obteve três títulos de mestrado em educação e planejamento urbano, antes de concluir seu doutorado em planejamento urbano na Universidade da Pensilvânia. Em sua juventude, ingressou na Irmandade Muçulmana e depois no Hamas, tornando-se uma figura proeminente em Hebron. Foi deportado para o sul do Líbano em 1992, junto com outros membros do Hamas, onde permaneceu por um ano. Lá, tornou-se muito conhecido como o porta-voz em inglês dos 415 deportados. Após seu retorno a Hebron, afastou-se das atividades políticas e se dedicou ao magistério acadêmico na Universidade Al-Najah, onde fundou o Departamento de Geografia.

Seu reaparecimento quase repentino na cena pública após as eleições, quando foi escolhido pelo Hamas como presidente do Parlamento, causou surpresa. Como pouco se sabe sobre suas qualidades políticas, alguns questionam se ele realmente está apto para o cargo. Outros consideram sua nomeação um movimento inteligente por parte do Hamas, ao colocar em uma posição de alto escalão um homem sem inimigos, amplamente conhecido por sua moderação e profissionalismo. Sua nomeação como o terceiro homem mais poderoso na hierarquia da Autoridade Palestina (depois do presidente e do primeiro-ministro) reflete também a determinação do Hamas de manter controle firme sobre o poder. De acordo com a constituição palestina, Duwaik substituiria o presidente Abu Mazen caso este se tornasse incapaz de cumprir suas funções.

 

Naser al-Sha’er Ramo da Cisjordânia, vice-primeiro-ministro e ministro da Educação e do Ensino Superior

Nascido em 1961 em Nablus, na Cisjordânia, al-Sha’er é uma das novas faces do Hamas que se tornaram públicas com a formação do governo do Hamas em 2006. Foi membro ativo e líder do bloco islâmico na Universidade Al-Najah, em Nablus, antes de ir estudar no Reino Unido, onde concluiu seu doutorado em Estudos do Oriente Médio na Universidade de Manchester. Al-Sha’er acumulou experiência não apenas em ativismo político, mas também no campo acadêmico e da pesquisa. No final da década de 1990, participou de um curso sobre religião e democracia na Universidade de Nova York como pesquisador. Antes de ingressar no governo do Hamas, atuou por cinco anos como decano de Estudos Islâmicos e Direito na Universidade Al-Najah.

Al-Sha’er é considerado uma das vozes moderadas dentro do Hamas. Sua formação e suas viagens ao Ocidente o expuseram à complexidade da política mundial e deixaram marcas visíveis de realismo em seu pensamento. Do ponto de vista islâmico, escreveu e publicou sobre diversos temas, como direitos humanos, currículo religioso na Palestina, globalização, gênero e violência familiar. A menos que seja marginalizado por setores mais radicais do movimento, al-Sha’er será fundamental na formulação do pensamento do Hamas num futuro próximo. Em virtude de sua sólida formação em estudos islâmicos, aliada à sua compreensão moderna e sofisticação intelectual, pode estar na posição de teorizar novos caminhos para o Hamas a curto prazo.

           

Khaled Mish’al Ramo no exílio, chefe do Bureau Político

Nascido em 1956 na vila de Silwad, próxima a Ramallah, na Cisjordânia, Mish’al foi deslocado com sua família para o Kuwait após a guerra de 1967. Concluiu seus estudos em física na Universidade do Kuwait, onde foi um líder ativo do bloco islâmico, a expressão local da Irmandade Muçulmana Palestina. No final da década de 1980, envolveu-se nos círculos da liderança externa do recém-estabelecido Hamas.

Após a invasão do Kuwait pelo Iraque, ele e sua família, juntamente com milhares de outros palestinos já deslocados, mudaram-se para a Jordânia, onde Mish’al passou a ser mais conhecido como membro do Hamas e continuou seu apoio à organização a partir do exterior. Em 1996, Mish’al substituiu Mousa Abu Marzouq como principal líder do Hamas fora da Palestina, após a prisão de Marzouq nos Estados Unidos. Em Amã, onde a liderança exilada do Hamas operava (somente nas áreas política e midiática, conforme acordo com as autoridades jordanianas), agentes do Mossad tentaram assassinar Mish’al em setembro de 1997, mas ele sobreviveu.

Em 1999, a relação entre o Hamas e as autoridades jordanianas se deteriorou fortemente após pressões dos Estados Unidos e de Israel sobre o rei da Jordânia para expulsar a liderança do Hamas, o que foi feito em novembro daquele ano. Desde então, o endereço oficial de Mish’al passou a ser Damasco, embora ele transite constantemente entre diversos países da região, incluindo Líbano, Catar e Irã.

Mish’al é a face do Hamas fora da Palestina, encarregado de fortalecer as relações do movimento com governos e organizações externas. Ao buscar apoio para o Hamas entre Estados e indivíduos, tanto dentro quanto fora dos círculos árabes e islâmicos, ele muitas vezes alterna entre posições moderadas e radicais, tentando agradar diferentes públicos. Embora seja articulado e popular entre os simpatizantes do Hamas e em círculos islâmicos, é visto por outros como alguém que carece de carisma e sofisticação como líder.

 

Mousa Abu Marzouq Ramo no Exílio, vice-chefe do Bureau Político do Hamas

Nascido em 1951 no campo de refugiados de Rafah, na Faixa de Gaza, sua família foi originalmente deslocada da vila de Yebna, próxima a Majdal, durante a guerra de 1948. Após concluir o ensino médio na Faixa de Gaza, ele viajou para o Cairo, onde obteve, em 1976, um diploma universitário em engenharia mecânica, mudando-se em seguida para os Emirados Árabes Unidos para trabalhar. Em 1981, transferiu-se para os Estados Unidos para cursar estudos de pós-graduação, permanecendo lá até concluir seu doutorado em 1992.

Iniciou seu ativismo político islamista ainda no ensino médio e o manteve no Egito e nos Emirados Árabes Unidos. No entanto, sua ascensão ao destaque ocorreu nos círculos das sociedades islâmicas nos Estados Unidos, onde presidiu diversas associações. Quando da eclosão da Primeira Intifada, em 1987, ele já era muito ativo no apoio e na representação do Hamas. Desde o início, ajudou na fundação da Universidade Islâmica de Gaza, ocupando uma cadeira no seu conselho de governadores. Atuando nos bastidores, tinha liberdade para viajar entre Gaza, Egito, Golfo Pérsico e Estados Unidos, organizando a estrutura da recém-fundada organização. Em 1989, reestruturou o Hamas, duramente abalado pelas constantes repressões e prisões promovidas por Israel.

Em 1992, mudou-se dos Estados Unidos para a Jordânia, quando foi escolhido como chefe do Bureau Político do Hamas. Mesmo com o novo cargo, continuou visitando os Estados Unidos diversas vezes por motivos pessoais e de ativismo político junto a organizações islâmicas que apoiavam o Hamas. No entanto, foi preso em 1995 em um aeroporto de Nova York, após a decisão da Jordânia de expulsá-lo, e permaneceu em uma prisão nos EUA até maio de 1997, quando foi deportado para a Jordânia. O Hamas então nomeou Khaled Mish’al como novo chefe do Bureau Político, e desde sua libertação, Abu Marzouq atua como vice de Mish’al. Em 1999, as autoridades jordanianas decidiram fechar os escritórios do Hamas no país, forçando ele e outros líderes a se mudarem para a Síria, onde, oficialmente, permanece até hoje.

Abu Marzouq é considerado um pragmático. Operacional e bom organizador, também é visto como imprudente. Suas repetidas visitas aos Estados Unidos na década de 1990 demonstraram descuido e lhe custaram caro. Também foi criticado em 1994 pela chamada “Iniciativa do Bureau Político (PB)”, supostamente de sua autoria, que oferecia a Israel uma solução baseada no conceito de dois Estados, semelhante ao defendido pela OLP. Os principais pontos da Iniciativa PB de Abu Marzouq eram:

  1. A retirada incondicional das forças de ocupação sionistas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, incluindo Jerusalém.

  2. O desmantelamento e remoção dos assentamentos e a evacuação dos colonos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém.

  3. A realização de eleições gerais livres para um corpo legislativo entre o povo palestino, dentro e fora da Palestina, para que possam escolher seus próprios líderes e verdadeiros representantes. Apenas essa liderança legitimamente eleita terá o direito de falar em nome da vontade e das aspirações do nosso povo. Apenas ela deverá decidir todos os passos subsequentes em nossa luta contra os ocupantes.

 

De onde o Hamas obtém seu dinheiro?

Há pouquíssima informação pública sobre as finanças ou o orçamento anual do Hamas. Nos últimos anos, as estimativas variaram entre valores tão modestos quanto US$ 10 milhões para o funcionamento de todos os aspectos e ramos da organização, até projeções de até US$ 150 milhões. Talvez em contradição com a ideia popular alimentada pela imprensa, a menor parte do orçamento do Hamas é destinada ao setor militar. A maior parte vai, na verdade, para programas sociais e de assistência que o movimento oferece aos palestinos, especialmente aos mais pobres. Esses programas, aliados a uma administração íntegra e disciplina moral, sustentam o apoio e a popularidade contínuos do Hamas entre os palestinos.

As fontes de financiamento do Hamas, segundo declarações do próprio movimento, são em sua maioria doações de indivíduos palestinos, árabes e muçulmanos simpatizantes. Essa afirmação é plausível, dado que nem Israel nem os Estados Unidos jamais acusaram qualquer Estado, além do Irã, de financiar o Hamas. Países árabes e muçulmanos, no entanto, enfrentam pressões internas para apoiar o Hamas e os palestinos, ou ao menos manter canais abertos para apoio popular, não estatal. Assim, países onde possíveis doadores individuais ou organizacionais são alvos de captação por parte do Hamas tendem a fazer vista grossa. Dessa forma, os governos desses países tentam se equilibrar entre a forte pressão popular local por apoio financeiro ao Hamas e a pressão dos EUA que proíbe qualquer financiamento estatal direto à organização.

Secar as fontes de financiamento do Hamas sempre foi uma prioridade para as políticas de Israel e dos Estados Unidos. Mesmo fundos claramente destinados a serviços sociais foram alvo. A alegação padrão dos EUA e de Israel é que as organizações islâmicas de assistência social controladas pelo Hamas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza estariam canalizando recursos para as atividades militares do movimento. Na verdade, o objetivo dessas acusações é fechar essas organizações por completo, negando ao Hamas a imensa credibilidade, capital político e reconhecimento que elas lhe conferem. Milhares de famílias palestinas vivem há anos com o apoio mensal fornecido por essas organizações sociais do Hamas.

O Hamas também tem sido bem-sucedido na arrecadação de fundos junto a palestinos ricos e de classe média na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Desafiando os severos obstáculos impostos por Israel e a vigilância internacional estadunidense e ocidental sobre qualquer recurso que possa chegar ao Hamas, o movimento tem mantido de forma prudente fontes locais de financiamento. Em centenas de mesquitas espalhadas pelas cidades palestinas, simpatizantes do Hamas doam dinheiro que vai diretamente para os cofres da organização, financiando suas atividades.

Quando o Hamas chegou ao poder no início de 2006, enfrentou um novo dilema: garantir fundos não apenas para seu próprio funcionamento, mas para sustentar toda a população palestina, atingida por taxas crescentes de pobreza e desemprego. Um esforço conjunto de Israel, EUA e Europa conseguiu cortar os fundos operacionais anuais da Autoridade Palestina, que antes eram repassados à administração do Fatah. O objetivo era levar o governo do Hamas ao colapso completo e “ensinar ao povo palestino uma lição” por ter eleito o Hamas. Aos olhos da maioria dos palestinos, esse bloqueio internacional de recursos foi uma punição por terem exercido sua livre escolha nas eleições democráticas que lhes foram incentivadas.


 

O NOVO HAMAS

 

 

O HAMAS NO PODER, OU O NOVO HAMAS

Nos primeiros 20 anos de sua existência, o ponto de inflexão indiscutível na vida política do Hamas foi sua inesperada vitória nas eleições legislativas de janeiro de 2006 na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Ao trazer novas realidades e desafios, a importância dessas eleições equivale a uma mudança de paradigma não apenas no pensamento e na prática do próprio movimento, mas também em toda a cena política palestina. (Ver Capítulo 5.)

No entanto, um "novo discurso" já vinha se manifestando no pensamento do Hamas durante a campanha para essas eleições e não resultou apenas da vitória nas urnas em si. Ao delimitar as linhas do que há de “novo” no pensamento do Hamas, dois documentos importantes surgidos no contexto eleitoral foram emitidos pelo movimento: a plataforma eleitoral por mudança e reforma, com a qual o Hamas concorreu nas eleições; e a plataforma de governo, na qual, após a vitória, o Hamas sugeriu em março de 2006 às demais grupos palestinos uma base para um governo de unidade nacional.

Na plataforma eleitoral por mudança e reforma, o Hamas incorporou as mudanças e experiências acumuladas em sua organização ao longo dos anos, e mostrou como havia desenvolvido suas percepções, discurso e prioridades. Comparada às suas posições ousadas originais expressas nos primeiros anos de sua fundação – tanto em sua Carta como em outros documentos – a plataforma eleitoral por mudança e reforma apresentava um Hamas quase novo. No entanto, tirar conclusões sobre partidos políticos apenas com base em suas plataformas eleitorais pode ser enganoso. É natural que os partidos procurem redigir suas declarações políticas mais convincentes durante o período eleitoral, com o objetivo de atrair o maior número possível de eleitores, e essa retórica eleitoral nem sempre reflete as verdadeiras convicções e políticas dessas organizações. Um certo ceticismo como primeira impressão é, portanto, compreensível ao se ler a cuidadosamente redigida plataforma eleitoral por mudança e reforma do Hamas, na qual o movimento claramente se esforçava para suavizar suas posições controversas, ampliar seu apelo nacional e se reposicionar no centro da política palestina tradicional.

Contudo, o que em grande parte contrabalançou esse ceticismo legítimo em relação às posições do Hamas delineadas em sua declaração eleitoral foi um segundo documento emitido logo após as eleições de janeiro: a plataforma de governo, publicada por um Hamas vitorioso em março, oferecendo aos demais partidos palestinos uma base comum para uma proposta de unidade nacional. Esse documento apresentou de forma clara as posições e políticas que o Hamas estava preparado para implementar. Ele diferia da plataforma eleitoral em seu tom prático e em sua disposição para trabalhar com outros partidos palestinos na realização desses objetivos concretos. O pragmatismo desse documento – refletindo um Hamas agora no poder – claramente superava a retórica de sua plataforma eleitoral de quando ainda concorria às eleições. Ambos os documentos, no entanto, merecem uma análise mais aprofundada.

Qual é o conteúdo e o significado da ‘Plataforma Eleitoral’ do Hamas para as eleições de 2006?

O significado da “Plataforma Eleitoral por Mudança e Reforma” do Hamas deriva de vários aspectos importantes.

Primeiro, ela forneceu a justificativa política para a mudança de posição do próprio Hamas em relação à ideia de participar de qualquer processo eleitoral que fosse, originalmente, um produto dos Acordos de Oslo de 1993/94. O Hamas se opôs a esses Acordos e jamais reconheceu a legitimidade de quaisquer medidas ou estruturas deles decorrentes, incluindo o Conselho Legislativo Palestino e suas eleições. Por essa razão, o movimento se recusou a participar da primeira rodada de eleições para esse conselho em 1996.

A Plataforma Eleitoral por Mudança e Reforma para o conselho de 2006 explica que a participação do Hamas nas eleições “ocorre dentro de um programa abrangente para a libertação da Palestina, o retorno do povo palestino às suas terras e o estabelecimento de um Estado palestino independente com Jerusalém como sua capital”. Reitera que “essa participação apoiará a ‘resistência’ como uma escolha estratégica aceita pelo povo palestino para pôr fim à ocupação (israelense)”. Ao confirmar esses princípios no preâmbulo de sua declaração eleitoral, o Hamas buscava deixar clara a distinção entre sua participação nas eleições e seu repúdio aos Acordos de Oslo. Sabendo que essa distinção poderia não ser totalmente convincente para muitos palestinos – uma vez que o próprio Conselho Legislativo é inseparável dos acordos de Oslo – o Hamas elevou o tom de sua retórica e afirmou que sua participação constituía uma forma de seu mais amplo “programa de resistência”. Ao fim de sua longa declaração de 14 páginas, o Hamas faz uma afirmação ainda mais ousada: “as realidades em campo tornaram Oslo algo praticamente do passado... todas as partes, inclusive o ocupante sionista, falam sobre o fim de Oslo”.

Segundo, embora a plataforma reafirme os princípios tradicionais do pensamento do Hamas em relação à luta contra a ocupação israelense, ela o faz com uma linguagem mais matizada do que anteriormente. Por exemplo, não há qualquer menção à “destruição de Israel” – uma frase impactante frequentemente atribuída ao Hamas pela imprensa para descrever seu objetivo final – nem à criação de um Estado islâmico na Palestina. Em vez disso, o discurso da plataforma se concentra em “pôr fim à ocupação”, termo que atravessa todo o documento. Em duas ocasiões, o documento retoma a linguagem de textos antigos: no preâmbulo, ao afirmar que a participação nas eleições faz parte integrante de “um programa mais amplo de libertação da Palestina”; e no primeiro artigo, que confirma que “a Palestina histórica é parte das terras árabes e muçulmanas, pertencente inquestionavelmente ao povo palestino”. Pode-se afirmar com segurança que tais declarações têm o intuito de manter a continuidade com o discurso tradicional do movimento, sendo mais retóricas do que políticas. Isso se evidencia no fato de que o restante do documento não apresenta mecanismos para a realização desses objetivos, ao contrário de outras declarações pragmáticas e detalhadas contidas no texto.

Terceiro, na Plataforma Eleitoral, o Hamas dá foco considerável aos temas de “mudança e reforma”, refletidos no próprio nome de sua plataforma de campanha. Foi surpreendente que o Hamas – um movimento de resistência autodefinido com uma visão militar/jihadista – tenha escolhido um tema e nome tão suaves para sua campanha eleitoral. No entanto, houve estratégia em concentrar-se em “mudança e reforma” diante do pano de fundo de seu rival Fatah, então corrompido e fracassado. A plataforma eleitoral do Hamas relegou efetivamente a “resistência militar” a um plano secundário. É impossível comparar o peso e o detalhamento dedicados aos aspectos civis de governança prometidos pelo Hamas neste documento com os dados à “resistência militar”. Tentando vincular a urgência da reforma interna à luta mais ampla contra a ocupação israelense, o Hamas declarou:

“Mudança e reforma buscarão construir uma sociedade civil palestina avançada baseada no pluralismo político e na alternância de poder. O sistema político dessa sociedade e sua agenda reformista e política serão orientados para alcançar os direitos nacionais palestinos.”

Quarto, a Plataforma Eleitoral apresentou a visão mais ampla que o Hamas já ofereceu sobre todos os aspectos da vida palestina. Ao longo de seus 18 artigos detalhados, o Hamas praticamente não deixou pedra sobre pedra em relação ao contexto social e político dos palestinos. Especificou o que faria se vencesse as eleições nas áreas de: resistência à ocupação, assuntos internos, política externa, reforma administrativa e combate à corrupção, reforma e políticas judiciais, liberdades públicas e direitos individuais, política educacional, orientação religiosa, política social, política cultural e midiática, juventude, habitação, saúde, meio ambiente, agricultura, economia, finanças e tributos, trabalho e transporte entre Gaza e a Cisjordânia.

Nunca antes o Hamas havia abordado um espectro tão amplo de questões. Tipicamente, o movimento – assim como outros movimentos islâmicos – era acusado de falta de visão política pragmática, com sua retórica e mobilização superando programas práticos e propostas detalhadas. É evidente que essa crítica esteve na mente dos membros do Hamas que redigiram a plataforma. Em comparação com documentos fundamentais anteriores, como a Carta de 1988 e o Memorando Introdutório de 1993, este documento leva o Hamas mais para o campo da política realista, ainda que sem abandonar a forte dose de mobilização religiosa e cultural que o caracteriza.

Quinto, a Plataforma Eleitoral do Hamas também sugere elementos que podem ser interpretados como um desejo tácito – combinado com um esforço silencioso – de islamização da sociedade. Esses elementos foram recebidos de forma negativa por muitos palestinos seculares e outros setores. O Hamas justifica persistentemente essa posição, argumentando que tais aspectos refletem as verdadeiras aspirações da sociedade. Muitas pessoas votam no Hamas ao menos parcialmente por esses aspectos, e o setor do eleitorado que não concorda com eles está plenamente consciente de sua presença no programa do movimento, ainda que com diferentes níveis de controvérsia. Entre esses aspectos está a afirmação de que o Islã é “nosso referencial e o sistema de todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e legais da vida”. Outros artigos estipulam que “a sharia islâmica deve ser a principal fonte de legislação na Palestina”, o que é uma declaração convencional presente nas constituições de todos os países árabes e muçulmanos. A controvérsia nesse ponto gira em torno de saber se a sharia deve ser a “única e suprema fonte”, a “principal”, ou apenas “uma das” fontes da legislação.

Nos artigos que tratam da educação e dos aspectos sociais, a plataforma enfatiza que os valores islâmicos devem ser respeitados e incluídos, pois fornecem força e integridade à sociedade. Para os palestinos seculares, uma declaração ainda mais preocupante aparece no contexto da política cultural e midiática, ao enfatizar a necessidade de “fortalecer os cidadãos, especialmente os jovens, contra a corrupção, a ocidentalização e a penetração intelectual”.

 

O NOVO HAMAS

Com a “plataforma de governo”, Haniya apelou à comunidade internacional para que respeitasse a escolha dos palestinos ao elegerem o Hamas, e para que reconsiderasse as reações iniciais negativas diante da vitória do movimento. A plataforma também garantiu aos doadores internacionais – que vinham se queixando da gestão corrupta da Autoridade Palestina – que toda nova ajuda seria empregada pelos canais corretos, e convidou esses doadores a estabelecerem quaisquer mecanismos de monitoramento que considerassem necessários para garantir o uso apropriado de seus recursos na Palestina.

Sobre os Estados Unidos e sua posição em relação ao governo do Hamas, o documento afirmou que:

“A administração americana, que tem pregado democracia e respeito pela escolha dos povos ao redor do mundo, deve ser a primeira a apoiar a vontade e a escolha do povo palestino. Em vez de ameaçar os palestinos com boicotes e cortes de ajuda, deveria cumprir as promessas feitas de ajudar na criação de um Estado palestino independente com Jerusalém como capital.”

Com relação aos direitos fundamentais dos palestinos, a declaração destacou “a defesa dos direitos dos refugiados palestinos de retornarem à sua terra natal e de serem indenizados, pois esse direito é inalienável e inegociável, tanto no nível individual quanto coletivo.” Também declarou o compromisso do governo em trabalhar pela libertação de (8.000 a 9.000) prisioneiros palestinos das prisões israelenses, defender Jerusalém contra a judaização e combater todas as formas de punições coletivas contra os palestinos.

Quanto aos acordos de paz assinados pela OLP ou pelo antigo governo liderado pelo Fatah com Israel, a declaração assegurou às “outras partes” que o governo trataria esses acordos:

“com elevada responsabilidade nacional e de maneira que favoreça os interesses do nosso povo e seus direitos inalienáveis. Também lidará com as resoluções da ONU [sobre Palestina/Israel] com um elevado senso de responsabilidade nacional e de maneira que proteja os direitos do nosso povo.”

A declaração abordou com orgulho e em detalhes o exercício democrático palestino, confirmando o compromisso do governo com esse conceito. Afirmou que:

“como este governo é resultado de eleições justas e livres, aderirá à ‘escolha democrática’, protegendo a democracia palestina e a alternância pacífica de poder. Também ampliará a base de participação política e pluralismo, pois esses são os garantidores do bom funcionamento e da estabilidade do nosso sistema político.”

É digno de nota que este documento, produzido por um movimento de orientação religiosa, frequentemente visto como cultivando sua popularidade com base em alianças primordiais, criticou todos os tipos de afiliações que não se baseiam na cidadania. Declarou que "o governo trabalharia para eliminar lealdades tribais e provinciais e, em vez disso, incentivaria os conceitos de cidadania e igualdade de direitos e deveres." A noção de cidadania foi enfatizada como predominante sobre outras afiliações locais, tribais ou religiosas:

“Protegeremos os direitos dos cidadãos e fortaleceremos o conceito de cidadania sem qualquer discriminação com base na crença ou filiação política, e lutaremos juntos contra a prática da exclusão política ou profissional, e combateremos [quaisquer] injustiças infligidas às pessoas.”

As referências à “boa governança” foram abundantes, abrangendo uma ampla gama de questões:

“O governo combaterá a corrupção e o uso indevido de recursos públicos, e confirmará a transparência e a justiça... [e adotará] novas estratégias para desenvolver uma administração pública baseada em conceitos modernos de gestão.”

No campo econômico da “plataforma de governo” do Hamas, o pensamento de mercado livre é claramente expresso, embora com atenção à justiça social e ao cuidado com os pobres. Mas começa enfatizando a autossuficiência dentro das restrições impostas pela ocupação israelense:

“Nosso programa econômico busca alcançar o desenvolvimento sustentável por meio do aproveitamento de nossos próprios recursos [nacionais] e do uso eficiente de nossas riquezas. Estamos cientes, no entanto, das restrições políticas e dos efeitos da ocupação que cercam nosso povo e que causaram danos drásticos à nossa infraestrutura.”

A declaração prossegue incentivando grupos empresariais árabes, muçulmanos e de outros países a virem à Palestina e explorarem oportunidades de investimento, prometendo que:

“Disponibilizaremos toda a ajuda possível para criar um clima apropriado de investimento, incluindo segurança, proteção econômica e a emissão das regulamentações necessárias.”

Também destacou o papel desse investimento estrangeiro em contraste com doações externas, afirmando que:

“O investimento é uma das bases do desenvolvimento sustentável, sendo que a ajuda externa não deve ser inteiramente confiável, embora essa ajuda seja necessária neste momento. Uma das maiores prioridades de nosso programa econômico é incentivar o investimento na Palestina, e nosso governo estará ativamente disposto a negociar todos os detalhes exigidos pelo investimento estrangeiro.”


 

O FUTURO DO HAMAS

Hamas será mais forte ou mais fraco em um futuro próximo?

É seguro afirmar que, desde sua fundação no final de 1987, o Hamas tem seguido uma trajetória ascendente. Certamente, sofreu reveses e períodos difíceis, mas, em geral, muitas condições sucessivas apenas alimentaram a força do movimento. Ao analisar essas condições favoráveis ao crescimento sustentável do movimento, é possível prever, com inteligência, se o Hamas se tornará mais forte ou mais fraco no futuro próximo.

A contínua popularidade e força do Hamas estão intimamente relacionadas à brutalidade e humilhação constantes sofridas pelos palestinos devido à ocupação israelense e à recusa de Israel em reconhecer os direitos palestinos. Somado a isso, está o fracasso das organizações palestinas rivais do Hamas (de orientação secular) em oferecer soluções satisfatórias ou meios eficazes de resistência contra Israel. Assim, na medida em que essas duas condições combinadas continuarem a definir a realidade palestina, o Hamas sustentará seu poder e sua atratividade no cenário político e popular palestino.

Estar na oposição ou no poder traz ao Hamas formas específicas de sorte e infortúnio. Quando era a força principal contra a Autoridade Palestina liderada pelo Fatah até 2006, o Hamas desfrutava das vantagens de se distanciar da política suja da Autoridade Palestina e, em vez disso, oferecia ideias alternativas sobre como enfrentar Israel sem se render e como governar os palestinos sem corrupção. Quanto mais as medidas israelenses tornavam a vida dos palestinos difícil e mais a popularidade e legitimidade da Autoridade Palestina diminuíam, mais força o Hamas acumulava. No entanto, estar na oposição significava que o Hamas era alvo constante de repressões pelas forças de segurança palestinas e de ataques militares por parte de Israel. Mas, mesmo que Israel e a Autoridade Palestina tivessem sucesso, em determinados momentos, em enfraquecer o poder militar do Hamas, fracassavam em conter o crescimento de sua popularidade. Popularidade e força do Hamas nem sempre andavam de mãos dadas. Uma queda em sua força militar não causava necessariamente uma queda paralela em sua popularidade. Pelo contrário, sucessivos (e bem-sucedidos) ataques militares israelenses enfraqueceram o Hamas em muitas ocasiões, mas apenas serviram para aumentar sua popularidade.

Estando no poder, o Hamas desfruta de mais vantagens, mas corre o risco de ser pego de surpresa por muitos desafios desconhecidos que podem enfraquecer seu status e influência. Ao assumir o poder em 2006, o Hamas se viu, pela primeira vez, no comando da liderança palestina. Ao trocar de lado quase repentinamente, da oposição para a autoridade, o Hamas tornou-se o partido cobrado por conquistas em questões importantes dos direitos palestinos – justamente sobre as quais acusava seus rivais do Fatah de terem cedido.

Enfrentando fricções internas com o partido derrotado Fatah e ameaças externas de Israel e do mundo ocidental, o governo do Hamas possui chances iguais de fracassar ou ter sucesso. Se o Hamas conseguir, internamente, melhorar as condições de vida dos palestinos – especialmente por meio de uma forma limpa de governança – e, externamente, manteve-se fiel aos direitos fundamentais dos palestinos diante de Israel, então se fortalecerá. Mesmo que não haja progresso no conflito com Israel, seja militar ou pacificamente, o Hamas não será duramente responsabilizado pelos palestinos. A percepção dominante entre os palestinos é de que já ofereceram a máxima concessão possível ao aceitarem a solução de dois Estados – algo que o próprio Hamas aceita, de uma forma ou de outra.

Contudo, se o governo do Hamas falhar em cumprir suas promessas, o movimento sofrerá em termos de popularidade e credibilidade política. O grau de regressão dependerá dos fatores que causarem o fracasso. Se esses fatores forem atribuídos em grande parte à incapacidade do movimento em entregar resultados, então um “Hamas exposto”, manchado pelos truques e jogos da política, substituirá o “Hamas utópico” do passado, limpo e sem máculas políticas. Se, no entanto, o colapso do Hamas no governo for causado por fatores externos, a perda de popularidade será mínima. O movimento simplesmente retornará ao lado da oposição – mas com mais gosto pelo poder e com a experiência necessária para dar a volta por cima.

 

Qual será o impacto do Hamas na política e na estabilidade do Oriente Médio?

Fazer previsões sobre a política futura no Oriente Médio é, em geral, um exercício fútil. Muito parecido com dunas móveis, essa região é marcada por uma mistura de intensa interferência externa e vulnerabilidades internas, o que produz formações de alianças e inimizades em constante transformação. Estados, partidos e agentes políticos na esfera do Oriente Médio podem trabalhar arduamente por muito tempo e acabar servindo, ironicamente, aos objetivos de seus inimigos. Os Estados Unidos supostamente pressionam por mudanças democráticas na região e, quando isso acontece, a democracia leva ao poder partidos antiamericanos. Israel se mostra apreensivo e preocupado porque o Hamas vence as eleições palestinas, mas é justamente porque o Hamas alcança uma posição de legitimidade política que os cidadãos israelenses passam a se sentir mais seguros, já que o grupo suspende seus ataques. A fluidez e o ritmo acelerado de uma série aparentemente interminável de grandes eventos permitem ascensões súbitas, reviravoltas ou retrocessos para este ou aquele partido.

Avaliar qualquer papel ou impacto futuro do Hamas na política regional é apenas mais um exemplo disso. No entanto, quaisquer previsões feitas serão tão plausíveis quanto possível se permanecerem firmemente enraizadas na realidade que permitiu, em primeiro lugar, a ascensão triunfante do Hamas. Esse é um pré-requisito necessário – embora não suficiente – para qualquer tentativa de avaliar o papel e o impacto do movimento no âmbito regional.

Refletindo a ironia e as justaposições mencionadas anteriormente, é irônico que muitas das condições propícias que levaram à vitória do Hamas nas eleições de 2006 tenham sido criadas por seus inimigos e rivais. Israel e os Estados Unidos enfraqueceram profundamente o Fatah e a Autoridade Palestina e, ao fazê-lo, pavimentaram o caminho para a ascensão do Hamas ao poder.

Para além do contexto palestino-israelense, a região como um todo vem assumindo uma nova configuração. Embora essa transformação caminhe certamente na direção oposta à desejada pelos Estados Unidos, ela tem sido claramente favorável ao Hamas. E se a guerra no Iraque tinha como objetivo reconfigurar a região sob uma nova geopolítica liderada pelos EUA, o Irã emergiu como o improvável beneficiário dessa intervenção norte-americana.

Após três anos de guerra no Iraque, o Irã passou a controlar aspectos centrais do desenvolvimento interno do país e pode se tornar um dos principais articuladores de seu futuro. Os xiitas iraquianos – que não apenas compõem a maioria da população do país, mas também são o principal grupo em que os EUA se apoiam – apoiariam o Irã xiita em qualquer confronto com os Estados Unidos. O Irã poderia facilmente usá-los contra a presença norte-americana no país e levar o impasse iraquiano a uma nova e sangrenta fase. Pelo menos no curto prazo, os Estados Unidos se sentem quase paralisados diante do desafio iraniano, cientes de que o destino de suas tropas (e de toda a empreitada) no Iraque está nas mãos do Irã. Diante desse repentino poder regional, o Irã tem se empenhado publicamente em apoiar o Hamas, prometendo compensar qualquer corte no financiamento à ajuda palestina feito pelos EUA ou pela União Europeia.

O Irã também apoia a Síria e o Hezbollah, que, por sua vez, são fortes aliados do Hamas por razões tanto internas quanto regionais. Diante da crescente pressão dos EUA para que se afastem do Líbano, os sírios se sentiram encurralados e compelidos a tomar medidas desesperadas de sobrevivência, incluindo o apoio público ao Hamas (além de explorar a polêmica dos cartuns dinamarqueses) para angariar solidariedade pan-árabe.

O Hamas, por sua vez, se beneficia da ascensão iraniana – não apenas porque pode receber ajuda política e financeira direta do Irã, mas também porque deseja usar a ameaça de sua forte relação com Teerã, por mais temporária que seja sua influência, para instigar os rivais do Irã a aumentarem sua ajuda aos palestinos. A Arábia Saudita, cuja relação com o Hamas sempre foi cordial, embora discreta, passou a se preocupar profundamente com a diplomacia agressiva do Irã, sua retórica e sua aproximação com o Hamas. O Egito também está apreensivo. Junto ao Egito e a outros países árabes, os sauditas lutam para evitar que o Hamas caia na esfera de poder, política e ambição do Irã. Assim, têm oferecido ajuda diplomática e financeira ao Hamas. A Turquia, com seus islamistas moderados no poder, também acredita estar em uma posição vantajosa para desempenhar um papel regional – não apenas porque a elite governante compartilha origens com o Hamas, mas também por suas boas relações com Israel e o Ocidente.

Com tantos atores na região puxando os cordões em direções opostas, lacunas inevitavelmente se formarão – e o Hamas deve ter habilidade e experiência suficientes para explorá-las. Enquanto o Hamas estiver ocupado na Palestina e não for pressionado a extremos, seu papel e impacto na estabilidade regional serão mínimos e confinados ao conflito palestino-israelense. O Hamas jamais realizou qualquer ação militar fora da Palestina. No entanto, sempre há uma remota possibilidade de que isso mude, caso o movimento se veja em uma situação intransponível.

Por mais raro e surpreendente que fosse o Hamas considerar o engajamento militar para além das fronteiras palestinas, Khaled Mish’al, chefe do Bureau Político do Hamas, fez uma declaração retórica afirmando que o Hamas “lutará com o Irã em qualquer lugar, caso este seja atacado por Israel”.

Se ocorrer um confronto militar mais amplo entre Irã e Estados Unidos na região, o Hamas poderia ser levado a assumir um novo papel regional. Se tal confronto for contido, há poucas razões para acreditar que o Hamas se ativará fora das fronteiras palestinas. Dentro delas, no entanto, se o Hamas se radicalizar ou se moderar dependerá, em grande parte, das políticas israelenses.

A ironia do dilema Hamas–Israel é que, quando o Hamas está no poder, Israel desfruta de maior segurança para seus cidadãos. Para preservar sua legitimidade e se concentrar na urgente agenda interna, o Hamas se absteve de lançar ataques contra alvos israelenses. Mas Israel, evidentemente, fica profundamente incomodado com o controle do Hamas sobre a liderança palestina. Se Israel derrubasse o governo do Hamas e o empurrasse novamente para fora do poder, o grupo poderia facilmente retomar sua postura militar, e um novo ciclo de violência recíproca poderia se iniciar.

 

Quais são os melhores e piores cenários para o Hamas?

O melhor cenário para o Hamas nos próximos anos é provar sua capacidade de governar assim como já provou sua capacidade de "resistência". Isso exigiria enfrentar diversos desafios difíceis: garantir recursos suficientes da comunidade internacional para o funcionamento eficaz do governo, incluindo o pagamento dos salários de mais de 120 mil funcionários públicos; resolver as condições mais urgentes de sofrimento enfrentadas pelos palestinos, principalmente em relação à economia e à segurança; melhorar a situação diária dos palestinos em seu confronto direto com Israel, sem comprometer seus princípios fundamentais; e conter os grupos armadas que poderiam dificultar sua atuação ao espalhar o caos e o medo nas ruas palestinas. Para alcançar tudo isso, seriam necessárias posições diferentes por parte de Israel, dos Estados Unidos e da Europa, em relação às inicialmente declaradas contra o governo do Hamas – ou, ao menos, uma aceitação passiva do status quo de um governo dirigido pelo Hamas, sem esforços diretos e coordenados dessas partes para destruir seu governo. Nesse cenário positivo, o Hamas não apenas manteria sua popularidade e aumentaria sua força política, como também ganharia nova experiência política.

O pior cenário para o Hamas seria fracassar completamente aos olhos dos próprios palestinos, especialmente se esse fracasso for atribuído majoritariamente a fatores internos e não externos. Isso poderia ocorrer se as pressões dos EUA e da Europa sobre o Hamas fossem somadas a rivalidades internas palestinas e à fragmentação política. Para aliviar as pressões externas, o Hamas poderia optar por comprometer-se indiretamente em relação às suas posições principais, como o reconhecimento de Israel. No entanto, se isso acontecesse sem uma garantia de ganhos substanciais para os palestinos, o Hamas sairia extremamente prejudicado. Se seguisse esse caminho, para manter uma política coerente, provavelmente estenderia sua moratória sobre ataques militares contra alvos israelenses. Contudo, isso abriria espaço para que outros grupos militantes palestinos se colocassem como mais fiéis ao princípio da resistência do que o próprio Hamas. Se isso ocorresse, o Hamas poderia tentar confrontar esses grupos – e o pior desdobramento desse cenário seria a eclosão de uma guerra civil.

Se o fracasso do Hamas, seja como governo ou como movimento, for percebido pela maioria dos palestinos como resultado direto das ações de Israel ou de pressões ocidentais externas, o Hamas conseguiria absorver esse impacto – senão até se beneficiar dele. No entanto, se tal fracasso for visto como responsabilidade exclusiva do próprio Hamas, o movimento sairia da experiência de governo ferido e mais fraco do que quando assumiu o poder.

O sucesso ou fracasso do Hamas como governo será determinado, sobretudo, por dois fatores: os desafios internos colocados pelas alas militares do Fatah e o financiamento externo do governo. O Fatah já havia penetrado nas forças de segurança multifacetadas da Autoridade Palestina, tanto antes como depois da ascensão do Hamas ao poder. As próprios grupos armadas do Fatah causaram muitos problemas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza durante o governo liderado pelo Fatah – imagine-se o que poderiam causar sob um governo do Hamas. Há um forte sentimento de choque e descrença entre os membros do Fatah diante do fato de seu partido não estar mais no comando do povo palestino. Muitos acreditam que os dias – senão os meses – do Hamas estão contados; que este é apenas um interregno sombrio que passará rapidamente, após o qual o Fatah voltará ao poder “como de costume”. O grau de sucesso ou fracasso do Hamas em lidar com esse desafio afetará diretamente sua trajetória.

O financiamento do governo palestino (de pelo menos 1,2 bilhão de dólares anuais) é essencial para o sucesso ou fracasso do Hamas no poder. Houve um esforço coordenado de Israel, dos Estados Unidos e da União Europeia para cortar qualquer ajuda externa ao governo do Hamas. Os Estados Unidos pressionaram países árabes e islâmicos para que não substituíssem o dinheiro ocidental, a fim de manter o Hamas sob extrema pressão. Eles esperam que, com essa enorme pressão, o Hamas seja encurralado pelas necessidades diárias urgentes do povo palestino, o que o levaria a ceder às exigências israelenses/ocidentais: reconhecer Israel e renunciar à violência.

É duvidoso que essa política de pressão consiga derrotar o Hamas. Na verdade, ela pode ter um efeito contrário. Em primeiro lugar, o pretexto para a suspensão da ajuda – o de que qualquer dinheiro destinado ao governo do Hamas poderia ser usado para o “terrorismo” – é frágil e ingênuo. Um conhecimento mais aprofundado do movimento mostra que o Hamas – enquanto movimento militante, não como governo – nunca teve dificuldades financeiras para manter suas funções organizacionais em funcionamento. Mesmo nos momentos mais difíceis, quando uma combinação de serviços de inteligência estrangeiros monitorava de perto os fluxos financeiros do Hamas, o movimento conseguiu sobreviver. Agora, com sua popularidade atingindo níveis sem precedentes na Palestina, continuará recebendo recursos consideráveis de palestinos dentro e fora do país, bem como de árabes e muçulmanos ao redor do mundo. O Hamas não teria dificuldades em arrecadar fundos e doações para suas contas privadas. Mas o que ele precisa para manter seus próprios assuntos operacionais privados é insignificante se comparado aos enormes valores necessários para suprir as necessidades de todo o povo palestino – especialmente das enormes populações de refugiados economicamente devastadas.

Com o bloqueio ocidental à ajuda palestina, seriam os palestinos comuns que ficariam privados de ajuda e serviços – e não o Hamas. O resultado de qualquer bloqueio ocidental seria o aumento da aproximação de palestinos frustrados e furiosos ao Hamas como movimento, ainda que este colapsasse como governo. Em especial após sua eleição democrática e totalmente legítima, o Hamas seria visto pelo povo palestino como empenhado em fazer o seu melhor, apesar das mudanças constantes nas “regras do jogo” e das “conspirações” do Ocidente e de Israel. Se algum tipo de bloqueio ocidental à ajuda levasse à queda do governo do Hamas, o movimento seria elevado ao status de mártir perseguido – e simplesmente retomaria sua posição militante anterior às eleições, pegando em armas e voltando à luta.

 
 
 

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