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Leia "À PROCURA DA TERRA SANTA" por Diana Emidio e Lucas Siqueira

  • Foto do escritor: Clandestino
    Clandestino
  • 12 de jan.
  • 165 min de leitura

Prefácio


A viagem familiariza as pessoas com o destino e as obras deixadas pelos predecessores, e essa familiaridade é o maior mestre humano. Na verdade, viajar é uma espécie de estudo e reflexão sobre as situações e comportamentos daqueles cuja história e destino nos foram revelados. O Sagrado Alcorão diz: "Dize–lhes: Percorrei a terra e observai qual foi a sorte dos desmentidores."

Ritual de viagem é o título de uma coleção de diretrizes e instruções que os cientistas incluem em seus trabalhos. Um dos benefícios e frutos mais importantes das viagens é a aparência da verdadeira personalidade das pessoas. Esse benefício ocorre no campo da viagem porque geralmente as pessoas enfrentam muitas asperezas e amarguras durante a viagem e duração da estadia e outros aspectos da viagem, e esse encontro é como um espelho claro contra O viajante e seus humores são colocados, o que já foi dito: "Ao enganar as circunstâncias, o preço das joias do povo. Ao virar de cabeça para baixo, conhece–se o interior do homem."

As viagens curtas e longas – sejam elas quais forem – desempenham um papel importante na melhoria da personalidade das pessoas e na introdução de novos aspectos da vida humana. Uma parte da vida das pessoas é sempre passada em viagens, e a vida individual e social de uma pessoa nunca esteve livre deste agradável ritual e hábito. A viagem, na sua forma mais ordinária, que é recreativa e turística, até aos seus tipos mais sagrados, que é a missionária e a emigração, é objeto de um comportamento instintivo que, dirigindo–se a ela, introduz os investigadores em outros rincões da desconhecida alma humana.

Viajar e passear por terras desconhecidas nos dará a possibilidade de refletir sobre os versículos espirituais e transcendentais de Deus e obter mais conhecimento. Com certeza, viajar, mesmo que seja na terra e entre os terráqueos, prepara o viajante para jornadas espirituais e a transição do mundo do significado para a entrada nas planícies verdes da espiritualidade.

Viajar ensina a pessoa a enfrentar os problemas e a lidar com eles; porque todo viajante se depara com diversas dificuldades ao longo do caminho, e é inevitável resolvê–las. Esse conflito temporário com os problemas é um exercício adequado para uma presença ativa em todas as áreas da vida.

Caro e querido amigo, Sr. Lucas, espero que o senhor e sua querida esposa tenham aproveitado ao máximo sua viagem e transmitam a outras pessoas suas valiosas experiências, que despertarão as pessoas.


Sheikh Hossein Khaliloo



Apresentação


Eu li e apreciei os registros feitos por Lucas Siqueira e Diana Emidio, sua esposa, na série Mochilão MEMO, como dois viajantes encantados, curiosos e com o olhar apurado para o contexto e particularidades dos lugares que conheceram, com suas impressões em textos e imagens.

Eles viajaram à Turquia antes do trauma do terremoto, e puderam apreciar a caminhada sem as sombras da dor que em fevereiro de 2023 se abateria por todo país e por quem quer que pensasse na tragédia do povo turco com solidariedade.

Eles foram em busca de conhecer o sonho de Osman, Capadócia e outros monumentos religiosos e culturais e os legados do Império Otomano ainda presentes. Sua mudança para a Palestina foi outra etapa importante e de impacto pessoal para os dois mochileiros. Na prática, essa experiência contribuiu para que pudessem transmitir um pouco do sofrimento de jornalistas e fotógrafos em seu trabalho e esforço de cobrir as repetidas violações cometidas pela ocupação israelense, seja contra os lugares sagrados ou contra os próprios palestinos.

Sem dúvida, este documento de viagem aproximará leitores brasileiros de um universo rico e sob constante tensão de processos continuados de colonização e de resistência.

É um livro para ler, apreciar e chegar mais perto de lugares cheios de significados para a vida no Oriente Médio e de influências sobre a história da humanidade.


Ahmad Alzoubi,

Diretor MEMO no Brasil





NOSSAS PRÓPRIAS BOMBAS

Guarulhos, 1 de janeiro de 2023


Às 15h40, horário exato, estávamos trancados em um avião atrasado. Diana Emidio, ou Di, minha companheira de aventuras, camarada de todas as lutas e, ainda por cima, esposa; postou uma foto de nosso embarque. O primeiro comentário na postagem foi: “Vão para posse?” – Não estávamos indo para Brasília, para ser sincero, gostaríamos, mas não! Talvez a pessoa que comentou deve ter cogitado isso por eu estar com um boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); ou pode ser que essa pessoa nos conheça bem. Mas, não! Estávamos esperando para ir à procura da Terra Santa.

Confesso que embarcar para o Oriente Médio sempre me deixa impaciente. Principalmente em relação à instabilidade política. Tudo que me transmite tensão nessa viagem decorre do chamado “terrorismo”; aquele mesmo propagado pela imprensa e difundido por outras fontes menores. Claro que temos medo de bombas, ataques terroristas, e isso acontece muito por aqui, causando muitas fatalidades e desastres humanitários.

Respondido sobre do que temos medo, é sensato falar também sobre: de quem temos medo. Não temos medo de muçulmanos, árabes, turcos, curdos, drusos, persas ou qualquer etnia dessa região. – Se você é brasileiro, calma! Antes que este livro acabe, você saberá a diferença entre todas essas etnias. Quem nos causa medo somos nós mesmos! Sendo um pouco mais específico, ocidentais; ainda mais específico, estou me referindo às potências imperialistas e neocoloniais; as quais financiam seus próprios luxos com exploração, sangue, dor e vida dos povos dessa terra. – Certamente trata–se de outro ponto que teremos de abordar mais de uma vez no decorrer dos dias que estão por vir.

O tempo que passamos no aeroporto, fiquei observando as pessoas indo e vindo e não consegui me concentrar em muita coisa. Lembrei–me praticamente de todas as manchetes dos últimos meses em relação ao Oriente Médio. Quanto à Israel e Palestina, há muito tempo venho me preparando, então já estou um tanto “acostumado” com as notícias da “guerra”. Entretanto, um ataque terrorista na Turquia foi uma surpresa para mim. Em novembro de 2022 uma bomba matou seis pessoas e deixou outras 81 feridas. O atentado aconteceu na Istiklal, em uma das regiões mais movimentadas de Istambul. No dia seguinte à tragédia uma mulher síria foi presa, suspeita de ter implantado a bomba. O presidente Recep Tayyip Erdoğan – falaremos muito sobre ele – acusou o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) de orquestrar o atentado. O PKK, movimento nacional curdo, negou qualquer envolvimento com o atentado contra civis. Rejeitando o comunicado do partido, Erdoğan autorizou uma enxurrada de bombas no norte da Síria, local com grande concentração de curdos. Tragicamente a Síria é tão bombardeada e há tanto tempo, sobretudo por Israel, que ninguém se importou. Pelo andamento deste relato explicarei sobre os curdos e o PKK também mais adiante. Como previsível, as notícias do atentado circularam em todos os canais, já o bombardeio na Síria, quando muito se tornaram notas de rodapé. Detalhe, nos hospedaremos a poucos metros de onde ocorreu o atentado.

Nos últimos meses vários fatores externos contribuíram para instabilidade nessa região, a começar pela guerra na Ucrânia. Geograficamente falando, a Turquia faz fronteira com Síria, Iraque, Irã e, separada pelo Mar Negro, com a Ucrânia. O país também integra a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), dado que Istambul repousa dividida entre Ásia e Europa, a guerra também afetou o cotidiano dos turcos.

Quem sabe o leitor se pergunte o que viemos fazer no meio de toda essa “treta” de bombas, ataques terroristas, opressão contra mulheres, LGBTfobia etc. Sim, tudo isso existe, mas não só no Oriente Médio. Paremos um minuto para refletir: o Brasil é o país com os maiores índices de feminicídio do mundo; há pouco tempo vimos as notícias de um médico que estuprou uma mulher durante o parto , e não para por aí; o mesmo vale para a violência contra os LGBT´s, sem falar que massacres e genocídios acontecem todos os dias com pretos e pobres em nossas periferias ou os povos indígenas sendo assassinados, quando não por garimpeiros, por negligência do próprio governo.

Ou seja, nossos índices de violência são ainda mais alarmantes do que países em guerra, o que não quer dizer que estejamos minimizando os problemas alheios, este é só um comparativo para mostrar o tamanho do nosso preconceito ao falar da cultura alheia sem antes “olhar para o próprio rabo”. Vale destacar que com a ascensão do bolsonarismo e a radicalização de seus apoiadores diante do retorno de Lula, até mesmo tentativas de assassinato e atentados a bomba no aeroporto Presidente Juscelino Kubitschek se tornaram comuns . Sendo assim, estamos indo à procura da Terra Santa e, quem sabe, trazer de volta nossas próprias bombas!



PROBLEMAS NO MOTOR

Madrid, 2 de janeiro de 2023


Sobre o voo? – Não lembro! Confesso ter muito medo de avião, diferente da Di. Então costumo tomar alguns remedinhos, antes, durante e quase chegando no destino, para resistir ao pouso sem passar vergonha. Esse hábito – nessa ocasião em especial – foi uma ótima ideia já que os problemas começaram logo na decolagem. Taxiando pela pista, se preparando para decolar, a voz do piloto gaguejando avisou: – Senhores pa-pa-ssageiros, tivemos pro-pro-blema em um dos motores da aeronave; nossa de–decolagem vai a–atrasar, até que os mecâ-cânicos consertem o motor." Por sorte eu dormia a ponto de roncar e não vi isso acontecer.

Me conhecendo bem, a Di resolveu não me acordar. Após duas horas parado na pista, o avião decolou normalmente. Eu não sei se teria voado se soubesse dessa pane. Foi uma pane no motor, não consigo entender como nenhum passageiro desistiu!

***

Fiquei horas sem dormir, erguendo a cabeça do Lucas a cada cinco minutos – ele dorme para voar; eu, me recuso, na esperança de viver cada segundo de nossa aventura.

A Turquia é o mais novo país na nossa coleção e mesmo antes de viajar já sentia vontade de morar aqui. Costumo ver vídeos e documentários antes de ir a algum lugar. A Turquia me parece especial, não sei ainda o porquê, mas certamente já conquistou meu coração.

Alguns minutos antes de pousar, senti aquele peculiar frio na barriga, com a certeza de que nossa viagem será uma experiência extraordinária. Desta vez há um tempero a mais, uma ligação invisível, quem sabe, certa "cafonice de mochileira", uma visão romântica que eu mesmo criei. Minha única certeza é que sei que essa será uma viagem intensa e surpreendente.



CAPITAL DE MUITOS IMPÉRIOS

Istambul, 3 de janeiro de 2023


A região da Capadócia será o ponto mais frio de nossa viagem. Daí a ideia de ter como primeira parada o mercado de pulgas de Kadiköy. Porém, antes de começar falando sobre nosso primeiro dia, precisamos esclarecer algumas coisas:

Istambul não é a capital da Turquia; sua capital é Ancara.

Turcos não são árabes; árabes são aqueles que falam o idioma árabe.

Na Turquia fala–se turco, portanto, não se fala árabe.

Nem todo turco é muçulmano; embora o Islã seja a religião predominante, a presença do cristianismo e judaísmo também é forte e constitui parte da história do país.

No Oriente Médio também faz frio! – Nós, ocidentais, tendemos a pensar que qualquer canto do Oriente Médio é deserto e faz calor. Trata–se de uma visão orientalista, a qual o autor palestino Edward Said descreveu como “Oriente como invenção do Ocidente”. Isso quer dizer que pouco ou nada sabemos sobre a cultura oriental, apenas especulamos; muitas vezes tirando conclusões precipitadas e equivocadas – percepção que o cinema americano e as novelas ajudaram a formar. Esqueça tudo que assistiu em “O clone”, até porque ele se passa no Marrocos, ou seja, outro país.

Voltando ao assunto, comecemos a falar de Kadiköy pela cidade gigantesca onde se situa. Como esclarecido, embora não seja capital da Turquia, Istambul é a maior e mais populosa cidade, onde está localizado o coração econômico que movimenta o país. A cidade é dividida pelo estreito de Bósforo, com um lado no continente europeu e a maior porção na Ásia; aliás, a única cidade do mundo dividida entre dois continentes.

Istambul antecede seu nome; a cidade já esteve nas mãos de persas, espartanos, atenienses, macedônios, celtas, romanos e bizantinos, até que em abril de 1453, o Sultão Mehmed II disparou o primeiro tiro de canhão contra suas muralhas. As semanas seguintes foram de batalhas épicas, uma delas, foi quando o papado de Nicolau V enviou navios em auxílio aos bizantinos. Mehmed II mandou os barcos para bloquear a ajuda no mar, mas sua frota inteira foi destruída pelo fogo grego .

Impossibilitado de adentrar no Corno de Ouro por causa das gigantescas correntes que guardavam o canal, Mehmed II ordenou a construção de uma estrada de rolagem ao norte da colônia genovesa, contornando por detrás da Torre de Gálata. Por essa estrada os otomanos atravessaram os navios do Sultão, uma estratégia ousada, mas que no final não deu certo e os navios otomanos acabaram sendo repelidos. Em 29 de maio a batalha final teve início. De um lado, Constantino XI Paleólogo defendia as muralhas com apoio do seu líder militar italiano Giovani Giustiniani; do outro o Sultão atacava a muralha com o maior canhão já construído e enviava as tropas de elite do exército otomano para escalar os muros da cidade e combater os soldados bizantinos.

O cerco otomano à Constantinopla se encerrou em 29 de maio de 1453, quando as tropas de elite dos Janízaros feriram o militar Giustiniani, que foi retirado da batalha. Segundo a lenda, no último momento, prevendo a perda da cidade, o Imperador Constantino levantou sua espada e seguiu para luta; foi visto pela última vez. O Sultão Mehmed II venceu a batalha e finalmente conseguiu entrar na cidade capital bizantina e, a cavalo. Transformando a capital Constantinopla em Istambul, capital do seu próprio império. A vitória dos otomanos sobre os escombros bizantinos marcou o fim da Idade Média e da Idade Moderna.

Dada uma pequena introdução de mais de dois mil anos de história, voltemos ao frio de congelar os ossos. Acordamos cedo, deixamos as mochilas no hotel e saímos para conhecer a cidade, comprar as passagens para Göreme, na Capadócia e, quem sabe, fazer umas compras. Istambul é enorme; antes de chegar ao mercado de pulgas de Kadiköy atravessamos toda a cidade de trem e metrô, já que a primeira e mais importante missão era a compra das passagens. Um turco gentil nos ajudou bastante; por coincidência ou não, seu nome é Mehmed, igual ao do sultão otomano que tomou Constantinopla e a converteu em Istambul. Mehmed – não o sultão – depois que nos viu “quebrando cabeça” para comprar um ticket de metrô, conversou com um dos seguranças e passamos pela catraca no modo “free”. Não sei o que Mehmed estava fazendo naquele dia, mas parou tudo e foi conosco até a agência de ônibus da Metro, onde nos ajudou também com a compra das passagens para Göreme.

Já que falaremos muito sobre preconceitos neste diário, vamos assumir um dos nossos. Quando Mehmed nos ajudou, logo de cara pensamos: “vamos ter que dar uma grana”. Erradíssimos! Em todos os lugares que viajamos, sem exceção, geralmente as pessoas sempre estão dispostas a dar uma ajuda para os turistas perdidos, mas entre um e outro sempre aparece um querendo cobrar por uma informação, empurrar uma mercadoria que você não quer comprar, ou como é mais comum, te levar para uma “lojinha” da qual ganha comissão. Na Turquia tem sido diferente, as pessoas te ajudam de verdade, sem interesse. Com Mehmed foi assim, ele nos ajudou e de repente sumiu e foi viver sua vida.

Andamos muito por toda Istambul. Tentamos nos adaptar ao câmbio, já que percebemos que ao idioma seria impossível – eles têm “Ğ, Ö, Ş, e Ü” no alfabeto, letras que não sabemos nem como pronunciar. O atual alfabeto turco foi uma reforma promovida por um nome que repetiremos muitas vezes aqui, Kemal Atatürk – por sinal Atatürk com trema no “u”. Várias vezes nos perdemos tentando chegar ao famoso mercado de pulgas de Kadiköy – com trema no “o” – mas a cidade é tão fascinante que quanto mais nos perdemos, mais queríamos nos perder. Na procura do Kadiköy, chegamos sei lá como ao Grand Bazaar, um dos mercados cobertos mais antigo do mundo, o qual possui mais de 60 ruas e é frequentado por uma média de 400 mil pessoas por dia. O Grand Bazaar, como muitas outras construções na cidade, também é uma herança deixada por Mehmed II – dessa vez o Sultão, não o cara do metrô. Pouco depois de conquistar a cidade, Mehmed II mandou restaurar e expandir o mercado bizantino que havia. O Império Otomano cobrava uma taxa dos comerciantes, tal imposto foi revertido na transformação da Catedral de Hagia Sofia em Mesquita de Ayasofya. – Se você se perdeu com esses nomes, calma, explicaremos direitinho quando visitarmos o monumento. Atualmente o Grand Bazaar não é mais movimentado por artesãos ou comerciantes da rota da seda como antes, ele acabou se adaptando aos gostos e gastos dos turistas. Por falar nisso, se você pretende comprar roupas, saiba que a Turquia é o melhor país para isso, não estou brincando. Seja no Kadiköy, no Grand Bazaar, ou em qualquer um dos outros milhares de mercados em território turco, as roupas são extremamente baratas; além de que, visitar qualquer um desses mercados já é uma atração.

Quando demos conta já estava quase na hora de pegar o ônibus para a Capadócia. Não conhecemos o Kadiköy, mas conhecemos o Grand Bazaar, andamos por suas ruas, provamos alguns de seus doces e tomamos alguns – muitos – chás; além de conhecer o próprio Mehmed. Diante das muitas maravilhas que a cidade de Istambul tem a oferecer nem ficamos tristes por não chegar ao mercado de pulgas de Kadiköy.

Para não haver “pré-conceitos” como o que cometemos mais cedo, gostaria de esclarecer uma última coisa: mercado das pulgas é um termo popular usado para bazares medievais, principalmente em metrópoles como na França e Inglaterra, que vendiam roupas – junto com as roupas, também suas pulgas.






AS CHAMINÉS DE FADA

Göreme, 4 de janeiro de 2023


Chegamos na região da Capadócia e não vimos nenhum único balão. Antes de falar sobre balões, lindas paisagens, ou São Jorge, cavernas e cavalos, abrimos um pequeno trecho para propaganda gratuita.

Viagens de ônibus sempre fizeram parte das nossas aventuras, inclusive a rota mais longa do mundo (São Paulo – Lima) já fizemos. Penso que temos um pouco de “bagagem” para falar do assunto. A empresa Metro Bus – que não é patrocinadora deste diário – dispensa elogios. Uma das mais queridas por viajantes internacionais. Em geral escolhemos a empresa mais barata, mas, neste caso, a Metro estava com o valor da passagem alinhado com os de outras empresas; como anteriormente lemos muitos relatos positivos “resolvemos pagar para ver”.

Absolutamente esta foi a viagem mais impressionante de todas. Tem wi–fi funcional, lanche, entretenimento de bordo, aquecedor – no árduo inverno turco –, chá, café e (juro por Deus) um “ônibusmoço” para servir aos passageiros. – Garçom? Nem sei que nome dar ao cavalheiro que nos serviu a todo momento.

Brincadeiras à parte, a empresa Metro é sem dúvida a mais completa das quais já viajamos, e acredite se quiser, o trajeto é de 12 horas! Viajamos umas três horas e estou metendo mesmo os burros na frente: ainda que, daqui alguns minutos nos mandem descer e continuar a pé, já valeria o valor pago. E por que é tão importante falar sobre essa viagem? – Vamos dizer que pagamos muito pouco por uma distância muito longa e por um serviço muito bom. Isso nos faz pensar como as companhias de transporte no Brasil tratam seus clientes. Será que estamos realmente recebendo o serviço que merecemos pela quantia que pagamos? Fica a dica, Renan Filho (Ministro dos Transportes).


Outra coisa a ressaltar no atendimento da empresa é algo que se completa em todos os cidadãos turcos que cruzamos pelo caminho; todos, sem exceção, foram receptivos, prestativos e muito educados. Geralmente no Brasil costumamos usar o termo “turco” de modo pejorativo quando queremos falar de alguém que visa dinheiro. Precisamos rever nossos conceitos ao empregar termos maldosos como este.

Temos muito a falar sobre a Capadócia, mas falaremos sobre o dia de hoje apenas. Chegamos no Henna Hotel um pouco antes do previsto, nosso recepcionista foi muito atencioso, mas não pudemos entrar, pois ainda havia pessoas hospedadas no quarto que nos estava reservado. Escolhemos o Henna Hotel pela localização: de maneira alguma eu toparia um voo de balão; porém, do terraço deste hotel, podemos ter uma das melhores vistas dos famosos balões da Capadócia – e bem de perto! Em Göreme existe uma infinidade de hotéis para todos os gostos. No fim optamos por um hotel–caverna, típico da região.

Antes de entrar no quarto, fomos ao café para matar o tempo e, uaaaauuuu! Outra surpresa. Sendo um país de maioria da população muçulmana, os turcos não costumam consumir bebida alcoólica, pelo menos não em público, e não como no Brasil. Sendo assim, o costume aqui é os homens se encontrarem nesses “cafés” para tomarem chá e jogarem dominó, cartas, gamão e outros tipos de jogos que não reconhecemos. Entramos justamente em uma dessas casas de chá, ou café, ou sei lá como chama; e advinha quem era a única mulher. Foi como um alienígena entrando no bar, embora estranho, ninguém olhou feio. Comemos umas baklavas , tomamos uns chás, e seguimos nosso rumo.

A paisagem de Göreme, moldada pelos ventos e pela chuva, possui predominantemente calcário em sua formação geológica, o que possibilitou que fossem esculpidas pelo homem. Os primeiros cristãos, perseguidos pelo Império Romano, – na época politeísta – encontraram nas rochas um habitat para escavar suas casas, igrejas, monastérios e até cidades inteiras subterrâneas. Hoje, essas cavernas são usadas como residências, hotéis e restaurantes. Contudo, com o crescimento da especulação imobiliária para turismo, as escavações foram proibidas pelo governo por motivo de preservação; mesmo quem já adquiriu uma propriedade não pode escavar além do que já foi feito, assim, algumas casas expandem em torno das cavernas.

Assim que o Henna nos liberou o quarto, subimos para carregar as baterias e um pouco de nossa própria energia, afinal, passar 12 horas dentro de um ônibus é muito cansativo. Baterias, corpo e mente carregados, é hora de sair. Pelo menos no presente período de baixa temporada, Göreme permanece tranquila, com poucos turistas, o que nos agrada muito. Os preços estão ótimos, apesar do real ter se desvalorizado bastante nos últimos quatro anos. Como o horário não ajudou muito, decidimos caminhar até o Sunset Point e assistir ao pôr do sol. Caminhamos entre casas, hotéis e comércios esculpidos nas rochas: de perto, ainda mais impressionantes. A subida não foi longa, porém, a cada nova curva, parávamos para fotografar.

Sem sombra de dúvida, o mais impressionante na paisagem de Göreme são as chaminés de fada. Imensas rochas que emergem do solo. Essas chaminés existem em outros lugares do mundo, como em Utah, nos Estados Unidos; mas as da Capadócia possuem uma decoração peculiar.

Passeamos por entre as chaminés de fadas e aproveitamos o pôr do sol. O frio estava intenso, aproximadamente 5°C no sol; compramos mais um chá para esquentar ao menos nossas mãos, e nos sentamos embaixo de uma árvore cheia de olhos turcos com vista para o vale da cidade.

Uma curiosidade: no Brasil chamamos o amuleto em formato de olho de vidro (tipicamente azul) contra mau–olhado, de olho grego, mas na Turquia, onde é ainda mais popular, seu nome é Nazar, ou “Olho Turco”. No islã, conforme descrito no compilado de livros Sahih Muslim, o profeta Mohammad declarou: “A influência de um mau–olhado é um fato.” Por isso é comum ver um muçulmano dizer Masha’Allah, ou seja, “Deus quis isso”.

Eu, que já sou apaixonada por árvores, que além de purificar o ar, renovam as energias da vida, estou ainda mais apaixonada por essas arvores decoradas com olhos turcos que as pessoas foram deixando por ali no Sunset Point. Fico pensando: se cada árvore pudesse produzir um único fruto de olho turco, não viveríamos em um mundo tão negativo. Eu já estou à procura de um olho turco bem bonito para plantar em casa.



JORGE DA CAPADÓCIA

Göreme, 5 de janeiro de 2023


Salve Jorge! Existe uma ligação entre nós que eu nunca compreendi; na verdade nunca me questionei sobre essa simpatia. Há quase 20 anos eu o desenho, e tatuo o santo em seus fiéis mais devotos. Sempre pensei como era forte aquela imagem do homem em seu cavalo branco matando um dragão. Anos se passaram e eu mantive essa ligação invisível, sempre o admirando quando cruzava meu caminho, até que em 2021, tive o tombo mais significativo da minha vida e na primeira oportunidade corri para os pés do Grande Jorge, por coincidência ou não, tive a honra de visitar a linda igreja dedicada a ele no Cairo. Fiz uma profunda oração ao Santo Guerreiro e fui atendida maravilhosamente por ele, por Deus e tantos outros seres de luz.

Não sei bem como rezar, já que não tenho nenhuma religião, mas me sinto à vontade em me comunicar com ele e Deus. Nesse monólogo entre amigos, gosto de pensar que eles me aceitam como sou, cheia de defeitos. Agora aqui no berço de São Jorge tive a certeza de que nada é por acaso; toda a minha ansiedade, pressa e urgência foi tomada por um sopro de tranquilidade.

São Jorge esteve comigo ano passado, num momento de desespero, me mostrando que existem coisas que não queremos, mas que Deus é absoluto, e às vezes age de formas dolorosas. Temos que aceitar o que o universo nos dá, assim como o que nos tira. Ele levou meu ‘amiguinho’, mas me deixou a certeza que ele está em suas mãos e um dia nos veremos.

Eu estou aqui Jorge, em sua homenagem, e te seguirei para sempre até te encontrar e te dizer obrigada por estar comigo, mesmo quando eu nem sabia da sua presença. Salve São Jorge Guerreiro.

Acordamos com a primeira oração que soava da mesquita, antes do sol nascer. Nossa esperança era tomar um café assistindo ao espetáculo dos balões da Capadócia, mas não foi dessa vez! Os termômetros marcavam –4°C e a neblina não permitia ver um palmo à frente do nariz. Dadas as condições, não teve balões!

Como programado, saímos para uma trilha – uma não, duas: Rose Valley e Red Valley. Entre o frio, a neblina e a neve acumulada da madrugada, caminhamos sem pressa e fazendo muitas fotos pelo caminho; não tantas quanto eu gostaria, pois, algum dispositivo da máquina congelou – junto, meu coração. Já tínhamos visto neve antes, mas sempre no topo de alguma montanha ou em flocos tão sutis que derretiam ao primeiro contato com o solo. Dessa vez tinha neve. Como duas crianças, pulamos em arbustos e raspamos o chão para arremessar bolas de neve um no outro.

O passeio de hoje foi a Di que escolheu; estou tão focado na Palestina que nem me preocupei em saber o que faríamos na Turquia. Pela primeira vez em uma viagem decidimos separar o roteiro e cada um ficar responsável pelo que fazer em cada país. Adotamos essa estratégia por dois motivos específicos: o primeiro é que para conhecer a Palestina depende da vontade e nível de agressão dos soldados de ocupação israelense; o segundo é que a Di não sairia da Turquia sem antes conhecer os famosos mercados de pulgas.

Após uma hora de caminhada chegamos ao Rose Valley. Não sei se foi a neblina, mas não consegui distinguir onde acabava o Rose Valley e onde começava o Red Valley. Andamos algumas horas por entre subidas, descidas, terra e gelo, até que finalmente chegamos à primeira chaminé de fada.

Mais adiante, encontramos escavado na pedra, uma igreja cristã. Sim, uma igreja cristã, sabe–se lá de que época. A igrejinha é obviamente simples, mas chama a atenção pelas pinturas no teto e nas paredes, ao estilo cristão primitivo, ao menos em nosso ponto de vista leigo. As imagens estão bem deterioradas, o que impossibilita apreciar a obra por completo. Arrisco dizer que além dos anjos e arabescos que estavam melhores definidos, acredito que dois dos personagens das imagens eram os apóstolos Paulo e Pedro, pois, após a crucificação de Jesus os dois seguidores vieram propagar o cristianismo na Turquia.


“E sucedeu que, enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo, tendo passado por todas as regiões superiores, chegou a Éfeso; ali encontrou alguns discípulos.” Atos 19:1

Entre um caminho e outro encontramos mais igrejas escavadas nas rochas. Somente na região da Capadócia existem cerca de 600 delas. Uma em parti¬cular nos impressionou bastante por ter uma cruz dos cruzados, esculpida no teto, muito bem preservada apesar dos séculos.

Não vamos nos atrever a falar muito das igrejas, pois é uma história que demanda estudo. Abordar esse tema sem tanto conhecimento apenas nos deixaria ainda mais confusos.

Para alguns pode ser uma novidade falar de cristianismo na Turquia ou no Oriente Médio, mesmo considerando que o cristianismo nasceu aqui. A começar, Jesus nasceu na Palestina; de lá seus seguidores espalharam seus ensinamentos pelo mundo e até hoje a presença da religião é forte nessas regiões. Referente a Turquia, o apóstolo Paulo nasceu em Tarso; era comum desde a antiguidade chamar uma pessoa e suceder seu nome a sua cidade ou região de nascimento, por isso, o apóstolo é chamado de Paulo de Tarso.


“Mas Paulo lhe disse: Na verdade que sou um homem judeu, cidadão de Tarso, cidade não pouco célebre na Cilícia; rogo–te, porém, que me permitas falar ao povo.” Atos 21:39

Embora Paulo de Tarso seja o turco mais conhecido do Novo Testamento, escolhemos outro conterrâneo seu para destacar um pouco da relevância dos turcos para a formação do cristianismo, principalmente por nascer na região em que estamos.

Jorge nasceu na região da Capadócia, mas seu nome se difundiu no mundo todo. Hoje é reverenciado para além do catolicismo apostólico romano. Se¬gundo a tradição, foi ele o soldado do exército romano que matou o dragão. Até aqui, acho que todos conhecem a estória, mas vamos um pouco mais além.

Após a morte de seu pai em batalha, Jorge mudou–se com sua mãe para Lida, na Palestina (cidade ocupada por Israel durante a Nakba ou “catástrofe”, em 1948, atualmente Lod). Na adolescência, Jorge entrou para o exército romano, no qual rapidamente ascendeu de posto. Quando sua mãe faleceu, o militar já de alta patente resolveu doar toda fortuna aos pobres, revelando ao Império Romano sua verdadeira devoção a Jesus Cristo.

A história do Santo Guerreiro trafega por lendas e tradições orais transmitidas pelos fiéis ao longo dos tempos, principalmente por sua imagem estar vinculada a um dragão e a lua. Uma dessas narrativas é que uma pequena cidade era atacada periodicamente por um animal alado que cuspia fogo. Para proteger a cidade, os cidadãos faziam um sorteio de jovens virgens para oferecer ao dragão. Um dia a filha de um rei foi escolhida como oferenda, e o rei não poderia negar a sorte da própria filha. Aí que aparece um jovem guerreiro que matou o dragão e salvou a princesa. – Matou não! A lenda conta que Jorge com uma espadada transformou o dragão em cordeiro, colocou em uma coleira e o deu a princesa.

– Tá; mas e a lua? – Popularmente no ocidente, acredita–se que a lua simboliza o islamismo combatido pelo santo. Mentira! São Jorge nunca combateu muçulmanos, até porque o islã surgiu 300 anos depois de sua morte. Essa versão só ganhou força porque a história e imagem do Santo Guerreiro se popularizou durante as cruzadas.” – Então São Jorge não vive na lua? – Pelo contrário, a União Astronômica Internacional batizou uma das crateras lunares com seu nome, então São Jorge vive sim na lua.

Mas como somos brasileiros, vale mencionar que as religiões de matrizes africanas também reverenciam o santo turco. Quando as pessoas escravizadas na África eram trazidas para o Brasil, os únicos bens que conseguiam trazer era sua cultura e religião, que também eram vistas como paganismo. Para driblar a imposição do cristianismo, os africanos escravizados adotaram a imagem de São Jorge para simbolizar Ogum. Esse sincretismo ainda hoje é usado na umbanda e candomblé.

– Afinal qual a realidade de São Jorge no meio de tantos mitos? – Durante a história do nascimento do cristianismo, o Império Romano dominava toda Terra Santa, na época a religião oficial era politeísta, e o cristianismo era visto como uma revolução popular, assim como seus adeptos que pregavam a igualdade e a humildade. Em 303 d.C., o imperador Diocleciano (284 – 305 d.C.) decretou a prisão de todos os soldados romanos que professassem a fé em Jesus Cristo. Jorge objetou diretamente ao imperador e declarou–se publicamente cristão. Consagrado como um dos melhores tribunos de Roma – isto é, agente público. O imperador tentou dissuadi-lo, ao lhe oferecer terras, dinheiro e escravos, mas encontrou apenas a abnegação e uma fé irredutível do bom soldado. Jorge foi preso, torturado e, enfim, no dia 23 de abril de 303 d.C., decapitado.

A história do jovem mártir em defesa da fé em Cristo ganhou notoriedade na Palestina, incluindo entre outros soldados que se rebelaram e se converteram. Mesmo a esposa do imperador, tocada pela história de Jorge da Capadócia, se converteu ao cristianismo. Voltando ao dragão, a historiografia de São Jorge é baseada em documentos seculares, apócrifos e pela tradição oral contada de geração em geração. Boa parte do relato pode ser considerado mítico ou místico – o que não quer dizer que não tenha credibilidade, afinal, elementos místicos e míticos nos ajudam a compreender a realidade. O dragão, portanto, é interpretado por teólogos como o mal que tenta destruir a fé.

Entre a deturpação da narrativa e o simbolismo místico e mítico, São Jorge pode ter até lutado contra povos árabes – lembrando que ser árabe é diferente de ser muçulmano – já que o exército romano guerreou contra os povos de quase todo o Oriente – incluindo árabes – o que nada tem a ver com fé ou religião. Quanto a afinidades e diferenças entre judaísmo, cristianismo e Islã, deixo o assunto para quando passarmos por Hebron (Al-Khalil), na Palestina ocupada. Por ora, gostaria de deixar uma reflexão nada teológica: se os antigos cristãos que habitavam essa terra foram embora ou se converteram ao Islã, quem foi que preservou as 600 igrejinhas da Capadócia?

Por muito tempo, sobretudo após os atentados de 11 de setembro de 2001, os muçulmanos sofreram com o preconceito nominado islamofobia. Todo preconceito se origina do medo; por sua vez nascido daquilo que não conhecemos. Jorge da Capadócia era cristão, foi torturado e morto por romanos pagãos que depois se converteram e canonizaram o soldado que eles próprios executaram. São Jorge morreu no século IV e o Islã surgiu no século VII, sendo assim, o argumento do santo contra muçulmanos é só mais uma ofensa preconceituosa.

O Ocidente de modo geral pouco sabe sobre os muçulmanos ou os árabes, – se soubesse, saberia diferenciar a nomenclatura – mesmo assim os trata com preconceito e discriminação. São Jorge morreu em defesa da fé. Porém, retratado com a pele clara, em um cavalo “branco” e com uma armadura reluzente, não é visto como “terrorista” ou “extremista”. De fato, muçulmanos e cristãos já viveram suas crises e confrontos na Turquia. Por conta dos efeitos colaterais da Primeira Guerra Mundial, cristãos – mesmo nascidos na Turquia – eram tratados pelo Império Otomano como estrangeiros e dependiam do suporte da Igreja Ortodoxa Grega e Armênia para subsistir. O atual governo turco prega um regime secular. Naturalmente, ainda há problemas a serem resolvidos.

De todo modo, muçulmanos, cristãos e fiéis da umbanda e candomblé, ainda lutam para defender sua fé e sua liberdade religiosa – direito inerente a todo ser humano, que deve ser garantido e protegido conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Depois de uma caminhada de seis horas, conversando com a Di – por sinal, devota de São Jorge desde sua visita à igreja dedicada ao Santo Guerreiro no Cairo – atrevo-me a dizer que caso estivesse vivo hoje, Jorge da Capadócia defenderia com afinco os direitos de todos os povos, sobretudo seus irmãos muçulmanos, que por tanto tempo ajudaram a preservar a história do santo cristão.


Dedicado à S. A. Matos

“É justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida interessante.” O Alquimista, Paulo Coelho





ACIMA E ABAIXO DE NÓS

Kaymakli, 6 de janeiro de 2023


Acordamos bem cedo, olhamos pelas janelas do quarto, abrimos a porta, olhamos para o céu e, nada! Não vimos os balões. Já faz alguns dias que estamos aqui e não vimos o espetáculo que atrai milhares de turistas todos os anos. Fomos tomar café com esperança de ainda ser cedo demais. Diferente dos dias anteriores, hoje o céu estava limpo e não ventava, tudo estava propício para o famoso voo dos balões; mas, nada! Enquanto subíamos a ladeira para o restaurante do Henna Hotel, vasculhávamos o céu em busca de um único “balãozinho”; estava acabando nosso tempo na Capadócia e precisávamos ver os balões. Um dos funcionários do hotel percebeu que estávamos eufóricos; ele sabia o que queríamos. Apontando para o terraço, ele pronunciou a palavra que estávamos esperando desde que chegamos: balloons!

Subimos correndo. Por todos os lados lá estavam eles, balões enormes colorindo o céu da Capadócia. Os balões surgem por todos os lugares, subindo lentamente com os primeiros raios de sol. Eles aparecem de trás das montanhas do Sunset Point, das chaminés de fadas, no horizonte, por todos os lugares, até sobre nossas cabeças havia alguns.

Os balões foram os primeiros veículos aéreos da humanidade. O primeiro relato histórico de um balão de ar quente surge na China, durante a Era dos Três Reinos (220 – 280 d.C.). No entanto, eram menores, não tripulados e tinham por intuito emitir sinais militares. Existem também especulações de que balões tenham sido usados pelos povos pré-incas no Peru, como auxílio para formação das famosas linhas do deserto de Nazca. Balões tripulados, como os que hoje decoraram a manhã em Göreme, foram confeccionados pela primeira vez pelos irmãos franceses Montgolfier, em 1783. No entanto, os primeiros tripulantes vivos a voar de balão foram um carneiro, um pato e um galo.

Os balões se popularizaram em Göreme na década de 1990, ajudando a mudar o cenário da economia local. A cidade que hoje é a capital turística da região da Capadócia era um vilarejo agrícola e desconhecido até poucas décadas, mesmo possuindo tantas relíquias naturais, culturais e históricas para se ver. Os baloeiros ajudaram a transformar a paisagem e atrair cada vez mais turistas mudando o padrão de vida dos aldeões, que na grande maioria passaram a morar em cidades vizinhas maiores e transformaram suas antigas casas esculpidas nas cavernas em hotéis e outros comércios voltados para o turismo.

Ficamos quase uma hora observando o espetáculo colorido, ali mesmo do terraço do Henna Hotel. Não tem muito do que possamos falar sobre os balões da Capadócia, nada de moral, nada de quebra de mitos, nada de nada; só posso dizer que é um espetáculo imperdível, principalmente para aqueles que, diferente de mim, não têm pavor de altura. Mesmo com os pés fincados como âncoras no chão, o espetáculo foi único, uma cena que nem Júlio Verne seria capaz de descrever com precisão.


“Não consigo tirar os olhos do céu ao meu redor. As palavras estão presas e tudo está confuso. Só um desajustado preso à Terra, eu.” Learning To Fly, Pink Floyd.

Após o show dos balões em Göreme, pegamos um ônibus até Nevşehir e de lá para a cidade subterrânea de Kaymakli. Conforme o Ministério de Cultura e Turismo da Turquia, Kaymakli foi construída durante o período de expansão do cristianismo, entre os séculos IX e X. No entanto, a arqueologia alega que as primeiras escavações dessas cavernas foram feitas por povos indo-europeus nos séculos VIII a VII a.C.

Na região da Capadócia existem 36 cidades subterrâneas, sendo Kaymakli a maior. Começamos a descer e parecia não ter fim. São 8 andares; por sorte, só quatro estavam abertos para o público. Nos perdemos naqueles labirintos, imaginando um mundo desconhecido. Chegamos cedo para evitar aglomerações, mas logo começou a “chover” turistas, aqueles típicos com seus chapéus e câmeras a tiracolo, e seus guias animados contando a história daquele lugar. Eu e Lucas não somos nada típicos, enquanto eles passavam rápido pelas galerias, nós nos sentávamos, deitávamos e rolávamos naquele espaço cheio de mistérios.

A cidade subterrânea é realmente grande, isso considerando que mais da metade estava fechada. A estimativa é que em seu auge a cidade abrigava mais de 3.500 pessoas, por isso aquele grande contingente de turistas nem chegou a incomodar.

Saindo da cidade subterrânea de Kaymakli, o que mais precisávamos era esticar um pouco as pernas. Resolvemos fazer algo que é um costume frequente em nossas viagens: caminhar e conversar. Ao invés de pegar o ônibus de volta para Nevşehir, resolvemos seguir andando pela estrada. Caminhamos cerca de nove quilômetros pelo acostamento sem nos preocupar com o tempo. Nosso assunto principal foi as relações internacionais que nosso país perdeu com a Turquia e com o resto do mundo, principalmente com os últimos quatro anos do falecido governo Bolsonaro. Vou tentar explicar, não como analista, mas como alguém que conhece um pouquinho do mundo.

O Brasil sempre foi um país pacifista e com boas relações com o Oriente Médio. Em 2002 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva rejeitou a proposta do estadunidense George W. Bush para participar de mais uma invasão ao Iraque; um episódio que lembra mais uma revanche americana pela Guerra do Golfo.


“Em 2002, fui visitar o Bush e ele veio com uma preleção de 40 minutos me mostrando o quão importante era acabar com o terrorismo. Isso fazendo um apelo para que o Brasil participasse do que ele chamou de luta extraordinária para acabar com o terrorismo, invadindo o Iraque. Eu simplesmente disse para ele: eu não conheço Saddam Hussein. […] Eu tive outra guerra: a fome. No meu país, a fome atingia 54 milhões de pessoas. E essa guerra eu ia fazer e ia ganhar.” Presidente Lula, 2022.

Lula, apesar de negar participar de uma guerra contra o Iraque, não perdeu as relações que tinha com os Estados Unidos, não foi cúmplice do assassinato de milhares de inocentes e de mais uma invasão do Ocidente ao Oriente. Essa atitude estreitou ainda mais os laços comerciais do Brasil com países orientais. – Por que tivemos essa conversa e principalmente por que decidimos reproduzi-la aqui? – Porque a política externa do governo brasileiro, nos últimos anos, no lado oposto ao pacifismo que todos nós seres humanos, principalmente todos os que vivem no Oriente Médio, precisamos de paz. O Governo Bolsonaro se aproximou muito de Donald Trump (presidente americano) e Benjamin Netanyahu (Primeiro-ministro israelense), e não foi o único. Os últimos governadores João Dória (São Paulo) e Wilson Witzel (Rio de Janeiro) fizeram o mesmo. Levando a Câmara dos Deputados a aprovar o Decreto Legislativo 228/2021, versão continuada da MSC 371/2019, que autoriza o convênio militar e policial entre Brasil e Israel.

Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, comemorou em sua rede social com a frase “vitória de Israel”. Obviamente este acordo nunca visou nenhum tipo de favorecimento ao Brasil; se fosse, acho que a postagem seria “vitória do Brasil”. Ainda pior, esse decreto que só favorece a indústria armamentista israelense deixou o Brasil em uma situação de rejeição com os países do bloco oriental. Piorando ainda mais, o decreto ajudou a financiar a entidade sionista no plano de limpeza étnica contra o povo palestino.

Sei que não faz muito sentido, um diário de viagem falar tanto sobre a política brasileira, ainda mais nos primeiros dias, mas é importante sim, já que a política brasileira reflete no curso que o mundo toma e vice-versa.

Caminhando por uma estrada na região da Capadócia chegamos à conclusão de que precisamos novamente retornar nossos vínculos de amizade com esse bloco tão injustiçado. Hoje, quando vi os balões em Göreme, senti uma sensação de paz, apesar de todas as injustiças que nosso planeta enfrenta. Sinto que chegou o momento de o Brasil voltar ao que foi nos governos anteriores e valorizar mais as pessoas que sobem balões do que apoiar aqueles que despejam suas bombas.





A TERRA DOS BELOS CAVALOS

Göreme, 7 de janeiro de 2023


Ontem choveu, sabíamos que hoje estaria tudo branquinho de gelo. Os planos para o dia eram fazer o câmbio de moeda, comprar a passagem de volta para Istambul e depois subir novamente ao Sunset Point para aproveitar e fotografar o vale nevado. Mudança de planos! De última hora, nosso roteiro se retorceu no avesso. Ao invés de comprar a passagem para Istambul, compramos para Izmir; como o ônibus parte amanhã às 18h30 – antes do que nos programamos – mudamos também o tour do dia e antecipamos a visita ao Museu ao Ar Livre de Göreme.

No caminho, entre Göreme e Ürgüp, passamos pelo Museum Ranch, uma espécie de haras de onde saem passeios a cavalo pelos vales ao redor. Enquanto caminhávamos pelo local, observei os belos animais e pude¬mos entender por que toda essa região se chama Capadócia. No século V a.C., os reis persas Dário e Xerxes, – aquele interpretado por Rodrigo Santoro no filme 300 – receberam cavalos desta região como tributos. Os persas en¬tão batizaram a região de Katpatuka, a qual quer dizer “Terra de Belos Cava¬los”. Existem também outras fontes que contradizem a origem do nome, afir¬mando que deriva de Katpadukya, do vocabulário hitita que quer dizer o mesmo. De quem o nome Capadócia derivou de verdade, eu não sei; só sei que ambos estavam certos e essa região realmente possuí os mais belos cavalos.

Caminhando mais um pouco, chegamos ao famoso Museu ao Ar Livre da “Terra dos Belos Cavalos”. A área do museu foi declarada Patrimônio Mundial da UNESCO em 1985, o que tornou o local como destino mais procurado pelos turistas. E por qual motivo? Porque aqui simplesmente se encontram as igrejas e monastérios dos séculos X e XI mais bem preservados da Turquia. Nos tempos romanos pré-cristãos, o vale de Göreme, especificamente a região do Museu ao Ar Livre, se popularizou por conta dos fiéis que peregrinavam até os templos e cemitérios esculpidos nas rochas.

“O Museu a Céu Aberto de Göreme abriga diversas igrejas escavadas na rocha e uma arquitetura incrível, com pinturas que ainda mantêm um pouco das cores originais. São mais de 10 mosteiros, cada um associado a uma igreja, como a de Santa Bárbara da Cobra (onde está um afresco com São Jorge em seu cavalo), infelizmente é proibido fotografar na maioria das igrejas. É um passeio imperdível para quem visita à Capadócia.” Diana Emidio

Os monges eremitas encontraram no Vale de Göreme um local de paz e tranquilidade para praticar a espiritualidade da vida monástica, principalmente por santos de outras épocas serem enterrados nessas mesmas cavernas. Tokali Kilise, uma igreja construída e reformada algumas vezes na antiguidade, é a peça mais preciosa do complexo, com as mais belas pinturas e afrescos que narram a vida de Jesus. Infelizmente, ou felizmente, fotografar ou gravar vídeo dentro da igreja de Tokali é proibido, sendo assim, fica somente as fotos da área externa. Caso tenha curiosidade, garanto que vale a pena saber mais sobre essa igreja e ver suas pinturas disponíveis no site oficial da Capadócia histórica, principalmente porque dentro de alguns dos locais que visitamos, é estritamente proibido fotografar e, aprendemos isso da pior maneira.

Logo que entrei na primeira igreja, comecei a fotografar; foi então que surgiu o primeiro turco desprovido de educação. Ele começou a gritar, nós não entendemos nada do que ele falou; como disse antes, não falo turco e nem sei qual é o som de um “Ğ” ou um “Ş”. Respondi também em português “eu não falo turco”. Sei que ele não entendeu, mas disse “no photo”. Respondi “ok!” – Belos cavalos que nada, os daqui sabem mesmo é dar coices.

Só para justificar, não costumamos desrespeitar nenhum local onde fotos são proibidas, mesmo que outros estejam fazendo, mas naquele monumento não tinha nenhuma placa dizendo “ei turista, é proibido tirar foto aqui”, se tinha estava escrito em turco.

A visita a monastérios, igrejas e sepulturas foi incrível, em especial pelo sol que fazia e ajudava a esquentar. Ficamos algumas horas passeando por ali. No caminho de volta para Göreme, encontramos dois vendedores de lembrancinhas. Percebi que um deles usava um börk dos cavaleiros otomanos.

Nos devaneios desconexos que circulam meus pensamentos, imaginei aquele senhor um pouco mais jovem e montado em um daqueles belos animais que vimos no começo do passeio – não aquele que chegou gritando. Ele percebeu que eu estava admirando-o, então, para quebrar o clima, apontei para seu chapéu e disse que ele se parecia com Osman – fundador do Emirado Otomano, cujos descendentes transformaram em Império.

Aquele gentil senhor riu e agradeceu, talvez por ter se surpreendido com um gringo que conhecia um pouco de sua história e cultura. Pedi para fotografá-los, o que concordaram sem pestanejar. Ao fazer o retrato, os senhores ficaram ainda mais surpresos e até felizes quando viram que a Di tem uma tatuagem escrito Allah em árabe. Eles compreenderam que aquela tatuagem simbolizava toda admiração da Di sobre sua cultura e religião. Fotografei–os, compramos algumas lembrancinhas de balões e nos despedimos; eles se despediram pronunciando o clássico Salaam Aleikum, que significa “A paz de Deus esteja com você”, nós, devolvemos a saudação também com a resposta em árabe – mesmo que não sejamos muçulmanos – com Aleikum Essalam, que significa “Esteja ela (a paz de Deus) com você também”.

Não sei por que, e nem sei se o chapéu tinha algo a ver, mas fiquei muito impressionado com aqueles senhores. Toda raiva que eu tinha passado e a má impressão que tive durante o dia foram deixadas de lado após o encontro com aqueles senhores gentis que cruzamos no fim do dia.

Amanhã é dia de dar tchau para a Capadócia, levaremos na mala as lembranças que compramos dos senhores, porém, as melhores lembranças que levaremos para casa são aquelas que não têm preço e não ocupam espaço físico. No futuro, toda vez que lembrar deste lugar, me virá à mente a imagem do senhor “Osman”, um turco muçulmano usando o seu börk de couro otomano e montado – mesmo que embora não estivesse – em seu mais “belo cavalo”.







CAPADÓCIA, ATÉ À PRÓXIMA

Göreme, 8 de janeiro de 2023


Hoje é dia de partir. Os dias que estivemos na região da Capadócia foram incríveis e nos ensinaram muito sobre o povo turco, sua cultura, gastronomia e principalmente sua história. Ontem relatei que houve uma mudança de planos e, que ao invés de irmos para Istambul, decidimos ir direto para Izmir; isso passaria despercebido se no final não tivesse acontecido o que aconteceu.

Quando fomos comprar a passagem, percebemos que o valor estava desproporcional ao valor para outras regiões. Na prática, o valor era o mesmo de quando viemos para cá, mas para outros lugares era muito mais barato que ir para Istambul. Como de qualquer maneira iríamos de Istambul para Izmir, resolvemos adiantar o roteiro. Compramos a passagem de um senhor bem simpático que nos fez tomar uns 20 chás. Até aí tudo bem. Passamos o dia inteiro bem preguiçosos, só apreciando a paisagem de Göreme; se não fosse pelo frio e uma bota rasgada que deixava o pé congelando, estaria melhor.

Uma hora antes do embarque já estávamos lá na porta do senhor que vendeu a passagem e, claro, tivemos que tomar mais chá. Dez minutos antes do programado, o senhor começou a falar no telefone com o viva-voz ligado. Pensamos que não era nada demais, até que vi a cara que o casal que também esperava para o mesmo embarque fez. Falei pra Di: “deu merda”. O senhor começou a gritar com a pessoa do outro lado da linha. A Di estava de costas para o casal e ficava me perguntando como estava a cara deles; eu dizia que estavam com cara de que “deu merda”. Tinha dado merda!

Meia hora se passou da hora programada para o embarque e nada de ônibus. Estava muito frio, não tinha como passar sequer uma noite sem um aquecedor. Se não embarcássemos para Izmir naquele dia, teríamos de pagar outra noite de hotel em Göreme, o que não é barato, além de perder uma noite em Izmir que já estava paga. A cena do senhor gritando no telefone se repetiu algumas vezes; percebemos que não haveria ônibus de Göreme para Izmir.

De repente parou um táxi na porta da salinha onde o senhor havia nos vendido a passagem. Ele disse algo em turco para o casal, e eles saíram. Olhou para nós e disse “let's go”. Comecei a rir, olhei para Di e disse: “let's go” então! Empilhamos nossas mochilas sobre a do casal turco e nos apertamos no banco de trás, na frente o senhor e o motorista de táxi conversavam. Pensei que iríamos para algum lugar perto para encontrar o ônibus que abandonou nós quatro; mas nada.

Depois de uns 20 minutos apertados, percebi que o valor no taxímetro já ultrapassava o valor das duas passagens para Izmir. Comentei com a Di e ela disse: – Coitado, será que ele vai ter que pagar isso? – Sei lá, respondi.

Na estrada, o senhor fez algumas ligações. Tentávamos interpretar a cara de todos, a fim de entender por que estávamos em um táxi turco, sabe-se lá onde e indo sabe-se lá para onde. Quando o valor no taxímetro chegou próximo ao de três passagens, estacionamos atrás de um ônibus parado no meio da estrada com o pisca-alerta ligado. Ali entendemos o que havia acontecido. O ônibus realmente resolveu não entrar em Göreme para buscar apenas quatro passageiros, mas de algum jeito, aquele senhor fez com que o motorista parasse na estrada para nos esperar. Embora eu tivesse percebido que o casal do lado não tinha pago nada pelo táxi, fiquei pensando se aquele senhor não arcaria com um prejuízo do qual não tinha culpa, ainda mais se ele tivesse que pagar o táxi para voltar. Mesmo que nós também não tivéssemos culpa daquilo tudo, perguntei: “How much”? Ele sorriu e disse: “It's ok”! “Ok então”, pensei.

Naquela noite percebemos outra qualidade dos turcos, além de honestos, eles nunca te deixam na mão. Então, se enquanto estiver na Turquia te enfiarem dentro de um táxi, vá sem a preocupação de ser esquartejado ou ter seus órgãos vendidos no Ebay, afinal, os turcos sabem como realmente cuidar bem de seus hóspedes. 



DEMOCRACIA, UM COLETE SALVA-VIDAS

Alaçati, 9 de janeiro de 2023


Gostaríamos de abordar outro assunto, porém, desde que chegamos em Izmir, não conseguimos nos concentrar em outra coisa senão o ataque terrorista contra a democracia brasileira.

Assim que chegamos no hotel Konak Saray, o recepcionista nos disse que estavam sem internet, mas era um problema em toda a região e que mais tarde voltaria ao normal. Sem problemas; pensamos. Guardamos as malas e fomos trocar de roupa para sair. Como não havia internet, a Di pela primeira vez em uma viagem, ligou a televisão para fazer um pouco de barulho. Foi quando vimos uma emissora de notícias turca exibindo imagens ao vivo do Brasil. Cenas de nosso país sendo vandalizado e violentado. Não entendemos nada, pois estava tudo em turco. Quando o Presidente Lula e o Ministro Flávio Dino apareceram na tela, um narrador traduzia para turco o que estavam falando e tirava o áudio original. Repetindo; não tínhamos internet e não havia como saber o que estava acontecendo. Encontrar um canal em inglês não foi problema, pois todos os canais reproduziam imagens do Brasil. A legenda na TV dizia “tentativa de golpe contra a democracia no Brasil”, ou algo desse tipo.

Como não havia uma forma de ter mais detalhes sobre o que estava acontecendo, decidimos ir até a cidade de Alaçati e, quem sabe lá encontrar internet e nos orientar melhor.

Estar em Izmir e ouvir falar em golpe contra democracia brasileira é, no mínimo, deprimente. Não sei se é de conhecimento dos terroristas brasileiros, ou se eles apenas não se importam de depredar nossas instituições democráticas, ao passo que mais de cem milhões de pessoas fugiram de suas casas para encontrar somente um pouco do que temos.

Assim que começamos a descer pela rua Konak, a primeira coisa que vi foi uma loja com coletes salva-vidas. Nós sabíamos o motivo para tantos coletes pendurados em destaque em diversos estabelecimentos. A crise dos refugiados, a maior da história, está evidenciada em Izmir pelos coletes salva-vidas expostos nas vitrines, ao lado de equipamentos eletrônicos.

Quando chegamos em Alaçati, paramos em uma lanchonete e conseguimos saber o que estava acontecendo no Brasil. Tomamos uns mil chás enquanto revirávamos as notícias das últimas 24 horas. A todo momento eu pensava como era possível isso acontecer em um país como o Brasil! Temos nossos defeitos e falhas, mas ainda assim temos uma democracia.

Em Alaçati, cidade anterior à Çesme, fiquei pensando como é fácil, barato e seguro para qualquer turista chegar à Europa Ocidental. Do bairro Konak saem ônibus com translado em balsas que levam direto para ilha de Lesbos, na Grécia; ainda mais perto é possível pegar um ônibus no Otogar (rodoviária) ao lado do Istinye Park – como fizemos para chegar até aqui – e seguir para cidade de Çesme por 70 liras turcas (cerca de R$ 20,00). Çesme fica a somente 18 quilômetros da ilha grega de Chios. No entanto, isso é apenas para os turistas. Para os refugiados ou migrantes, a travessia da Turquia rumo às ilhas gregas é feita clandestinamente, com alto índice de mortalidade e risco de ser devolvido ou abandonado pelas autoridades gregas à deriva. Por este motivo tornou-se lucrativo vender coletes salva-vidas próximos aos aparelhos eletrônicos. Poucos dias antes de chegarmos aqui, em dezembro de 2022, a guarda costeira turca resgatou mais de 200 refugiados no mar Egeu. Uma operação em Izmir encontrou 61 imigrantes à deriva, rejeitados pela Grécia. A cidade de Izmir, para alguns tornou-se uma passagem obrigatória; para outros, abrigo temporário. Infelizmente, no entanto, para tantos outros, Izmir se tornou o ponto final.

No último artigo que publiquei antes de viajar: “Neste Natal, mais de cem milhões de pessoas formam o maior presépio vivo da história”, escrevi que mais de 103 milhões de seres humanos fugiram ou foram expulsos de suas casas. O que eu não sabia é que grande parte dessa população passou ou se estabeleceu em Izmir. Segundo o último relatório de Tendências Globais do Alto–comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a Turquia recebeu sozinha 3,7 milhões de refugiados, o país no mundo que mais acolheu pessoas em condições de vulnerabilidade.

Izmir se tornou um dos principais pontos de trânsito dos refugiados que visam entrar na Europa via mar Egeu. Em 2014 o bairro de Basmane – a metros de onde estamos hospedados – tornou-se centro de tráfico de pessoas. Os contrabandistas além de realizarem o translado ilegal, fornecem transferências bancárias, chip de celular e, naturalmente, coletes salva-vidas. Porém, muitas pessoas impossibilitadas de pagar os altos custos do contrabando, acabaram se estabelecendo na cidade, dando prioridade aos bairros de Basmane e Konak por ficarem próximos a rotas de metrô, ônibus e barco. Os impactos causados pela onda migratória, agravada pela guerra civil na Síria – e seus 6,8 milhões de pessoas em situação de refúgio –, atingiu praticamente todos os setores de Izmir.

Nos bairros de Basmane e Konak a presença de refugiados se tornou tão sólida que até mesmo a comida de rua se adaptou. Atravessando a rua, bem em frente ao hotel, comemos um delicioso shawarma em uma lanchonete de sírios originários de Aleppo e Damasco.

Nas ruas é visível o grande fluxo de migrantes; além de sírios, encontra-se também pessoas de outros países do Oriente Médio e dos mais diversos países africanos. Diferente do que vimos no primeiro dia em Istambul, aqui em Izmir encontramos pessoas em situação de vulnerabilidade pelas ruas, mesmo que não exista muitos obstáculos formais para emprego ou estudo. Há ainda, para essa população, acesso aos mesmos serviços de saúde fornecidos aos turcos, bem como outras assistências específicas de instituições e ONGs internacionais.

A Turquia não é um paraíso para os refugiados. Na verdade, o grande fluxo se deve às fronteiras com Síria, Iraque e Irã, dos quais derivam um vasto número de refugiados ou migrantes. Quando citei, na introdução deste texto, que “estar em Izmir e ouvir falar em golpe contra democracia brasileira é no mínimo deprimente”, estava pensando nos 3,7 milhões de pessoas refugiadas na Turquia e nos outros 99 milhões pelo mundo que fugiram de seus países de origem por medo, perseguição ou outros fatores de risco às suas vidas. Todas essas pessoas fugiram de países onde a democracia faleceu antes mesmo de nascer, dando lugar ao fascismo e regimes totalitários. No Brasil, mesmo que imperfeita, ainda temos uma democracia almejada por todas essas pessoas.

Quando passei pelos coletes salva-vidas pendurados, tive um triste sentimento de que falhamos como humanidade, ao ponto de permitir que mais de cem milhões de outros seres humanos dependam de ajuda humanitária para sobreviver. Por outro lado, após uma reflexão mais detalhada, lembrei que esses coletes ajudaram centenas, talvez milhares de sobreviventes, somente no mar Egeu. Lembrei que para milhares de pessoas, esses coletes servem como última gota de esperança em um gigantesco oceano. Para nós, brasileiros, a democracia é nosso colete salva-vidas – cabe a nós, agarrar ou nos jogar à deriva. 



O SONHO DE OSMAN

Izmir, 10 de janeiro de 2023


Quando jovem, Osman Ghazi sonhou com uma árvore tão grande que suas raízes se estendiam por três continentes para beber da água de quatro rios diferentes. A majestosa árvore era tão vasta que seus ramos faziam sombra em quatro cadeias de montanhas orientais.

Ontem, a chegada em Izmir foi literalmente um sonho. Assim como Osman, eu sonhava com uma grande árvore, mas minha árvore era minha avó. Sonhei até que o Lucas me acordou e disse “chegamos”. Acordar em uma cidade como Izmir, descer ainda zonza e ser recebida como fomos, não tem como não se apaixonar.

Assim que entramos no hotel fomos abraçados pela cordialidade e hospitalidade do povo turco. Os senhores na recepção do hotel Konak Saray, literalmente nos receberam de braços abertos. Mesmo chegando horas antes do check-in eles nos entregaram as chaves do quarto e nos convidaram a tomar um café. Depois de passar uma noite desconfortável em um ônibus da Capadócia a Izmir (catorze horas de viagem), tomamos um maravilhoso café da manhã, com muitos tipos de queijos e azeitonas, oferecido por nossos anfitriões do Konak.

Izmir chegou tomando toda licença poética. Hoje, ao acordarmos, conferi que a previsão do tempo era para um dia chuvoso. Decidimos ficar por perto do hotel e passear pela região. No primeiro passeio Izmir conquistou nossos corações; ruas limpas movimentadas e uma atmosfera gostosa.

Nosso primeiro passeio foi pela Ágora da cidade, a poucos metros do hotel. As ágoras eram grandes áreas públicas nas antigas cidades gregas onde se concentrava a arte e aconteciam todos os tipos de eventos sociais, políticos, religiosos e comerciais. As construções que abarcavam todos os prédios públicos se tornaram precursoras dos fóruns romanos.

A Ágora de Izmir é uma das mais antigas e bem preservadas do mundo, devido ao excelente trabalho arqueológico realizado em parceria com a Diretoria do Museu de Izmir e a Sociedade Histórica, iniciado em 1933. Construída por Alexandre, o Grande, no século IV a.C., e posteriormente reconstruída pelo imperador romano Marco Aurélio, após um terremoto. No período otomano a Ágora de Izmir foi usada como cemitério e sala de orações. Durante as primeiras escavações, foi descoberto que a forma retangular com longas colunas que arqueiam os corredores paralelos e as galerias pluviais, guardavam um altar de veneração a Zeus. Diversas outras estátuas em referência a Hermes, Dionísio, Eros, Hércules, a Vesta, além de muitas outras referências masculinas, femininas, de animais, relevos, estatuetas, artefatos de mármore, osso, vidro, metal e terracota foram encontradas no local e transferidas para o museu de arqueologia de Izmir.

Um passeio feito por turistas normais não levaria mais de trinta minutos, mas não tínhamos pressa e o local estava vazio, portanto, nos perdemos nas horas. A parte aberta à visitação é impressionante, com peças e galerias bem cuidadas e restauradas. No entanto, o mais fantástico é saber que as escavações não pararam e que ainda tem muito a ser descoberto, já que no local existem algumas áreas restritas, nas quais só podemos observar sem fotografar.

Não que soubéssemos de tudo isso antes de viajar; na verdade nem sabíamos da existência dessa joia de Izmir, por sorte nos hospedamos na rua de acesso ao sítio arqueológico. Antes de todas as viagens costumamos abaixar os níveis de ansiedade estudando a cultura local, mas as coisas geralmente são bem diferentes quando chegamos. Quando escolhemos a Turquia como destino sabíamos que encontraríamos muitas heranças de tempos e impérios diferentes; gregos, romanos, bizantinos, turcos; só não imaginávamos que estariam tão bem preservados e tão perto de nós.

Nosso dia não estava nem na metade, então resolvemos nos afastar um pouco. Descendo pelo mercado da cidade velha, por entre roupas, verduras, legumes e frutas gigantes, demos de cara com um carrinho do qual exalava um cheiro adocicado. Olhei para o Lucas, mas ele nem se ligou o que era. Entrei na fila e fui explicando algo que eu já tinha visto em vídeos de outros mochileiros na Turquia. Aqui, quando um membro da família morre, os familiares costumam oferecer alguns bolinhos – parecidos com nossos famosos bolinhos de chuva – em homenagem ao falecido. Não sei dizer se apenas esses bolinhos são oferecidos, mas os carrinhos ficam nas ruas exibindo as fotos do ente querido que partiu enquanto filas de estranhos se formam para comer os bolinhos.

Chegando à praça do relógio, cruzamos algumas vezes com esses carrinhos. Lucas não conseguiu entrar na fila – achei melhor não perguntar –, mas eu entrei e ele acompanhou e depois até comeu alguns. Entendo que cada cultura tem uma maneira diferente de lidar com o luto, no entanto, a maneira turca foi a mais bela que já vi – e vimos muitas maneiras diferentes por aí.

Os bolinhos são muito simbólicos. Algumas pessoas – como eu – entram na fila como uma experiência de compartilhar do costume local e isso acaba se tornando um momento para pensar em alguém que faleceu, mesmo sem o conhecermos. Por outro lado, como existem muitas pessoas em situação de refúgio no bairro de Konak, aqueles bolinhos são uma refeição grátis. Eu achei a maneira turca, a mais extraordinária que se pode fazer em memória de alguém querido que partiu: alimentando desconhecidos!

Depois de passear pela Ágora e comer os bolinhos, andamos novamente por todas as vielas do mercado local de Konak, onde cada mercadoria simboliza um pedacinho da cultura otomana e do sonho de Osman e sua gigantesca árvore. Hoje não existe mais um Império Otomano, grande parte do seu território foi repartido entre potências europeias – por exemplo, a Palestina, Síria, Líbano e outros. No entanto, desde o nascer até o pôr do sol, tudo, hábitos, cultura, religião, decoração, culinária e arquitetura derivam da imponente árvore que Osman sonhou quando jovem, incluindo a gentileza e simpatia dos recepcionistas do hotel Konak. A árvore de Osman pode até ter sido derrubada e dividida entre colonizadores; suas raízes, porém, continuam vivas no coração desse país maravilhoso chamado Turquia. 



MERCADOS TURCOS

Karsiyaka, 11 de janeiro de 2023


Minhas botas estavam em um estado lastimável. Ontem parecia que estava andando descalço pelas ruas congelantes de Izmir. Hoje, para piorar a situação, chove. Preciso comprar botas novas, isso é fato, mas comprar nem é o pior dos problemas; o pior é sugerir para Di uma visita a outro mercado de pulgas na Turquia.

Baixei o mapa no celular e lá fomos nós. Pedimos informação para uma senhora do restaurante que almoçamos ontem. A cena pode parecer algum tipo de comédia, mas para nós, era só mais uma demonstração da gentileza turca. A senhora que não falava inglês – assim como nós – fazia mímicas, caras e bocas para explicar como chegar ao distrito de Karsiyaka, onde fica o Bostanli Bazar; ela chegou até a pedir para outra pessoa no restaurante nos explicar em inglês, mas não rolou. Foi então que resolveu desenhar um mapa. Ah, agora sim!

Seguindo pelo mapa da senhora, atravessamos pela passarela e caminhamos pela orla do Egeu. Começou a chover novamente e, para completar, uma ventania só. Menos de 10 minutos de caminhada e lá estava eu com o pé molhado e gelado. Pegamos o ferry boat público, que por sinal, de fazer inveja para nós que sempre atravessamos o canal do porto entre Santos e Guarujá, e em 30 minutos já estávamos do outro lado e caminhando na direção do Bostanli Bazaar.

Esse mercado, uma espécie de Brás turco, só abre às quartas-feiras. Em um piscar de olhos, o enorme galpão vazio é preenchido até transbordar de barracas de frutas, verduras, legumes, nozes, utensílios domésticos, brinquedos, perfumes, bolsas, tapetes, porcelanas e, claro, roupas, montanhas delas.

Alguns vendedores sobem em cima de suas mercadorias com sacos gigantescos de roupas novas e usadas e ficam gritando para atrair os clientes. Minha querida Diana Emidio, como perita em compras que é, me disse que as melhores barracas e os melhores preços são as que estão sendo disputadas pelas senhoras mais velhas. Ela me disse que chega a dar brigas entre as mulheres na disputa, mesmo que não tenhamos visto, acredito mesmo que isso aconteça.

Gostaria que não estivesse chovendo para que pudéssemos conhecer um pouco mais a região de Karsiyaka, local onde se encontra o mercado. Karsiyaka é um distrito de Izmir profundamente associado ao comércio, entende-se por quê! Porém, o mais charmoso deste bairro são as konaks otomanas, incluindo a casa onde a mãe de Atatürk passou seus últimos dias e que está enterrada.


“Povo de Karsiyaka de Izmir ... saúdo–vos com profundo afeto ... Amo todos os residentes de Izmir. Tenho certeza de que as pessoas de coração puro da bela Izmir também me amam. Uma mera coincidência me conectou ainda mais a Karsiyaka. Povo de Karsiyaka, minha mãe está em seu peito, em sua terra. Povo de Karsiyaka, no dia em que vi İzmir, vi pela primeira vez Karsiyaka e o túmulo de minha mãe, que estava deitado em seu solo turco.” Kemal Atatürk

Com certeza, vale muito a pena dar um passeio pela região de Karsiyaka, quanto ao Bostanli Bazaar, essa já é outra história, pois precisa verdadeiramente estar com muita vontade de fazer compra para enfrentar as marés de compradoras e vendedores enlouquecidos. De qualquer maneira, esse passeio não deixa de ser uma imersão cultural no estilo de vida turco. Subimos e descemos várias vezes por entre as barracas e tudo era realmente barato, principalmente as roupas. Infelizmente, a única coisa que não encontrei barato foi a bota que tanto precisava. Como chegamos tarde e cansados ao bairro de Konak, vou deixar para esquentar os pés amanhã. 



UM JARDIM PARA TODAS AS MULHERES

Éfeso, 12 de janeiro de 2023


A mãe de Jesus é a mulher mais venerada da história da humanidade, e não só para o cristianismo. Assim como os cristãos, os muçulmanos também acreditam em Jesus; e claro, em sua mãe Maria, principalmente considerando que o Alcorão fala mais sobre Maria do que a Bíblia cristã. No Alcorão, a posição elevada de Maria se deve ao fato de ter sido a única pessoa que recebeu a revelação do anjo Jibril (Gabriel) sem ter sido profeta. Tanto o livro sagrado do Islamismo, quanto o próprio profeta Muhammad ensinam que a mãe de Jesus foi um exemplo de vida e é digna do respeito e da admiração de todos os muçulmanos.

Sendo cristãos ou muçulmanos, muito sabemos sobre a história de Maria, mas você já parou para pensar o que aconteceu com ela depois da crucificação de seu filho? Você sabia que em Éfeso, aqui na Turquia, está a casa onde acompanhada do apóstolo João, ela – segundo a versão de alguns historiadores e teólogos – passou os seus últimos dias e que aqui foi fundada uma igreja em seu nome?


“Ó Maria, Allah te anuncia o Seu Verbo, cujo nome será o Messias, Jesus, filho de Maria, nobre neste mundo e no outro, e que se contará entre os próximos de Allah.” (Alcorão 3:45)

“Ó Maria, Allah te elegeu e te purificou, e te preferiu a todas as mulheres da humanidade!” (Alcorão 3:42)

Antes das 8 horas da manhã já estávamos na estação de trem em Basmane – próximo ao Konak Saray Hotel – para embarcar para Selçuk; de lá, caminharíamos até Éfeso, uma das cidades mais importantes da antiguidade.

Éfeso, tem uma história muito extensa. Estudos levam a crer que a cidade foi construída há 12 mil anos, prosperando durante a era grega clássica (século V à IV a.C.) tornando-se potência durante o período romano (entre 27 a.C. e 395 d.C.). É impossível resumir a história e a importância dessa cidade. Portanto, decidimos nos concentrar em duas personalidades centrais.

A cidade de Éfeso começou a ficar famosa por conta do templo dedicado à deusa Ártemis, construído por volta de 550 a.C., deusa da caça, da fertilidade, dos animais, da lua e da maternidade, conhecida pelos romanos como Diana – coincidência? Segundo a mitologia grega, Ártemis, gêmea de Apolo, nasceu primeiro e ajudou sua mãe com o parto do irmão. Seu culto se tornou tão popular que em certos lugares passou a ser mais importante do que outros deuses olímpicos. Na Ilíada, a guerra de Tróia narrada pelo poeta Homero, a deusa é retratada como defensora da cidade. Embora Tróia seja considerada mitológica, a arqueologia apontou diversos indícios de sua existência no território contemporâneo da Turquia. Em Éfeso o culto à deusa Ártemis ajudou a cidade a prosperar economicamente. Ártemis – ou Diana – é uma deusa também ligada à pureza e autonomia, pois pediu a seu pai Zeus que a mantivesse eternamente virgem. Neste contexto a castidade representa o empoderamento feminino e a insubmissão ao sexo masculino; tanto que quando um caçador tentou abusar de sua pureza, ela o transformou em cervo para que pudesse ser caçado por seus amigos.

Outra personalidade que marcou a história de Éfeso é, como eu disse antes, Maria. A mãe de Jesus viveu a nove quilômetros do principal templo dedicado a Ártemis. Estávamos muito ansiosos para ver a Casa de Maria com nossos próprios olhos. Segundo o cristianismo oriental, após a crucificação de Jesus, Maria veio morar em Éfeso. A casa que João construiu para a mãe de Jesus se tornou uma lenda, até que no início do século XIX a freira agostiniana alemã Ana Catarina Emmerich, alegou ter visões e epifanias sobre a história de Jesus e sua mãe.

Em 1881 o abade francês Julien Gouyet descobriu um pequeno edifício em uma montanha com vista para o mar Egeu e para as ruínas de Éfeso. Gouyet acreditava ser a casa descrita pela irmã Emmerich. O Vaticano nunca se pronunciou sobre a autenticidade da Casa de Maria; todavia, o Papa Leão XIII, em 1896, fez uma primeira peregrinação ao local, seguido pelo Papa Pio XII que elevou a casa ao status de local sagrado. Ao longo dos anos, outros papas visitaram a Casa de Maria, dentre eles, João Paulo II em 1979 e Bento XVI em 2006.

Infelizmente, devido à distância entre um ponto e outro, e ao tamanho do complexo de Éfeso, não conseguimos chegar até a Casa de Maria a tempo; tivemos que nos contentar com a visita ao Meryem Kilisesi, uma igreja do século II d.C. construída para servir aos concílios – célebres reuniões decisórias do alto clero cristão. No Concílio de Éfeso duzentos abades discutiram a respeito da natureza divina de Jesus e a castidade de Maria. Ao final da reunião foi afirmado que Jesus era filho de Deus e a Virgem Maria receberia o título de Teótoco, isto é, mãe de Deus.

O concílio de Éfeso nomeou Maria como “Mãe de Deus”, mas, o islã preservou uma narrativa um pouco diferente. Conta-se que quando a mãe de Jesus começou a sentir as dores do parto, se retirou para um lugar isolado, se agarrando em uma tamareira ela orou para que Deus a aliviasse da dor. Allah a consolou, colocando um riacho sobre seus pés e fazendo cair tâmaras frescas para que ela pudesse beber e comer. Quando voltou ao povoado, já com o bebê nos braços, foi questionada sobre o pai da criança. Maria respondeu que eles deveriam perguntar ao bebê. Foi então que o primeiro milagre de Jesus foi protagonizado e Deus permitiu que ele falasse:


“Ele lhes disse: Sou o servo de Allah, o qual me concedeu o Livro e me designou como profeta.” (Alcorão 19:30)

Quanto à assunção de Maria não existe nenhuma fonte islâmica que ateste ou refute a crença popular cristã, tampouco há descrição sobre sua morte. No entanto a Igreja do Sepulcro de Santa Maria, administrada pela Igreja Ortodoxa Grega, em Jerusalém, possui um local para que os peregrinos muçulmanos possam fazer as suas orações.

A viagem até Éfeso foi completamente diferente do que tínhamos planejado, mas como não existe bússola em nossas viagens, deixamos o vento nos guiar. Sem ver o templo de Ártemis – o qual atualmente se resume a uma única pilastra de pé – nem a Casa de Maria, passamos o dia com a sensação de perder dois locais símbolos das raízes do feminismo. No entanto, assim que chegamos em Izmir, descemos para jantar com os amigos sírios, mencionados em “Democracia, um colete salva-vidas”. Percebi uma linda mulher vindo com seu filho, olhei para ela meio de canto para não a constranger, para minha surpresa, ela me olhava também. Ela sorriu e disfarçou, sorri de volta.

O marido que a acompanhava puxou assunto com o Lucas que conversava com nossos amigos sírios. Mais à vontade, a mulher me perguntou sobre minha tatuagem de Allah. Quando percebi, outro casal – com outro lindo menino – se juntou a nós; por coincidência, palestinos de Gaza que têm amigos em comum com Lucas. A bagunça idiomática que fizemos conversando fez a rua parar e sorrir por alguns instantes. Entre inglês, português, turco, árabe, tudo muito precário e acompanhado de boas mímicas e jogos de adivinhação, acabamos nos entendendo. Aquela sensação de perder um pouco de Ártemis e Maria logo se calou, pois acabamos conhecendo duas mulheres, mães assim como eu, uma de cada extremo do planeta. No fim, seguimos nossos caminhos com a certeza de que a vida é um mistério glorioso; em momentos de sintonia como esses, tenho a certeza de que o universo feminino transcende o idioma, as fronteiras e o tempo. Maria e Ártemis certamente estavam entre nós; o passeio estava completo.


ATATÜRK, O PAI DOS TURCOS

Izmir, 13 de janeiro de 2023

    

Os eventos que marcam a Turquia contemporânea não pertencem somente a ela. Pertencem a todo o Oriente Médio e principalmente à subjugação de seu povo pelas mãos de forças coloniais europeias. Para compreender melhor essa perspectiva, fomos conhecer um pouco da história da república e de seu fundador, Mustafá Kemal Atatürk, ou o “Pai dos turcos”.


“Meu povo vai aprender os princípios da democracia, os ditames da verdade e os ensinamentos da ciência.” Kemal Atatürk

Estava ansioso para conhecer o museu de Atatürk. O museu não estava muito longe; fomos andando pela orla e assistindo um pouco da melancolia dos músicos de rua. Não demorou muito para chegarmos ao museu que um dia foi usado como o quartel-general turco durante a Guerra de Libertação. Um prédio de aparência simples, porém, que guarda em seu interior o maior tesouro da Turquia, sua história.

Vamos retroceder um pouco no tempo e explicar quem foi Atatürk. Nascido na cidade otomana de Salonica em 1881, se formou no Colégio Militar Otomano em 1915, mas foi preso por atividades antimonarquistas logo após a formatura. Liberto, o jovem militar foi mandado para lutar em diversas regiões do Império Otomano. Em Damasco, na Síria, se juntou a uma pequena sociedade revolucionária secreta de oficiais reformistas.

Atatürk se tornou uma lenda entre os militares durante a Primeira Guerra Mundial. Enfraquecido por movimentos nacionalistas, o Sultão se juntou ao lado das Potências Centrais com intuito de preservar a posição de Império. No segundo ano da Grande Guerra, Atatürk defendeu o estreito de Dardanelos contra as forças britânicas. Na batalha de Galípoli (1915), prevendo onde australianos e neozelandeses a serviço britânico atacariam, gritou suas ordens ao 57º Regimento de Infantaria: “Homens, não estou ordenando que ataquem. Estou ordenando que vocês morram.” Manteve a posição até a recuada dos aliados; mesmo com a vitória, muitas vidas foram perdidas, incluindo as dos soldados australianos e neozelandeses, os quais o militar fez questão de mencionar: “Os heróis que derramaram seu sangue e perderam suas vidas no solo deste país! Você está no solo de um país amigo agora. Portanto, descanse em paz.” Em 1918 Mehmed VI se tornou o novo sultão otomano. Convocou o herói de Galípoli para Constantinopla e em seguida o enviou para Palestina. Atatürk enfrentou os britânicos em diversos terrenos entre Aleppo (Síria) e Nablus (Palestina). Segundo o biógrafo escocês John Patrick Douglas Balfour, Kemal Atatürk foi o único general turco na guerra que nunca sofreu uma derrota. No entanto, as conquistas militares otomanas não foram suficientes para garantir a vitória contra as potências aliadas. Derrotado, o Império Otomano entrou em colapso.

Mesmo antes do fim da guerra, em uma reunião secreta em 16 de maio de 1916, os governos do Reino Unido, França e do Império Russo decidiram, secretamente, partilhar os territórios otomanos, hoje correspondentes à Jordânia, Iraque, Síria e Líbano. A Palestina, reclamada por todas as três potências, ficaria sob administração internacional até que fosse decidido quem arrendaria o território. O acordo entre britânicos, franceses e russos se tornou público quando os comunistas depuseram o Czar e tomaram o poder na revolução de outubro de 1917. A nova União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (U.R.S.S), além de tornar público o acordo de partilha do território otomano, ainda invalidou a reivindicação do Czar sobre a Palestina.

Atatürk liderou o Movimento Nacional Turco a fim de impedir que a Turquia também se tornasse uma colônia britânica ou francesa, como se tornaram outras partes do território otomano. Os aliados enviaram exércitos para conter os nacionalistas, mas Atatürk saiu novamente vitorioso. A crescente popularidade do líder militar levou o apoio popular que permitiu a abolição do Império Otomano e a Proclamação da República da Turquia. Uma nova era se iniciava para o povo turco, não mais a do império, mas sim um rigoroso programa de reformas políticas, econômicas e culturais com o objetivo final de construir um Estado-nação moderno, progressista e secular.

Como primeiro presidente, Mustafá Kemal Atatürk promoveu reformas políticas significativas para o país. Umas das primeiras medidas de seu governo foi construir milhares de escolas e tornar o ensino primário gratuito e obrigatório. O presidente considerava: “São os professores, somente eles, que libertam os povos e transformam as coletividades em verdadeiras nações.” Foi também em seu governo que as mulheres puderam participar das decisões do país. Em discurso, o presidente afirmou que: “Tudo o que vemos no mundo é o trabalho criativo das mulheres.”, e completou dizendo: “A humanidade é composta de dois sexos, mulheres e homens. É possível que a humanidade cresça melhorando apenas uma parte enquanto a outra parte é ignorada?” Com essa frase, pela primeira vez, as mulheres turcas foram às urnas. O novo governo da Turquia também ficou marcado pela secularidade do Estado, mesmo considerando que a maioria da população era, e ainda é, muçulmana.


“Aqueles que usam a religião para seu próprio benefício são detestáveis.” Atatürk

Mustafá Kemal Atatürk, ou “Pai dos turcos”, morreu em Istambul em 10 de novembro de 1938. Em 1981, em comemoração ao centenário de seu nascimento, foi homenageado pela ONU e UNESCO, que o descreveram como “o líder da primeira luta travada contra colonialismo e imperialismo” e um “notável promotor do sentido de entendimento entre os povos e de uma paz duradoura entre as nações do mundo e trabalhou toda a sua vida para o desenvolvimento da harmonia e cooperação entre os povos sem distinção”.

Enquanto visitávamos o museu e passávamos pelas salas de reuniões, escritórios e gabinetes que ajudaram a decidir o futuro da Turquia, fiquei pensando em como a história do mundo se conecta por fios; tão perceptíveis para alguns, enquanto, invisíveis para outros. Como me referi no início deste texto, a vitória de Atatürk mudou o destino do povo turco, porém a queda do império otomano e o assalto dos territórios árabes levou à instabilidade política e à decadência econômica de territórios explorados pelos britânicos e franceses. As consequências do período neocolonial levaram a Jordânia e o Líbano a passarem por inúmeras revoltas civis; o Iraque, rico em petróleo, foi saqueado e invadido; desde 2011 a Síria enfrenta uma guerra sangrenta que já vitimou milhares e fez 6,8 milhões de refugiados; e a Palestina, essa nunca se tornou um país independente e, pior, ainda vive sob regime de ocupação de europeus que se denominaram israelenses. Tudo para que potências que se dizem em prol da liberdade pudessem desfrutar “democraticamente” das riquezas saqueadas no Oriente Médio.

Se há algo que podemos aprender com o passeio de hoje é que os turcos lutaram e resistiram com bravura às forças invasoras; as mesmas que se declaravam a favor da liberdade e direitos civis; as mesmas que hoje se declaram democráticas, por mais que promovam genocídios e massacres no mundo árabe.


Ps: Finalmente consegui comprar botas novas!


ANDROKLOS

Izmir, 14 de janeiro de 2023


Um pouco mais cedo, enquanto andávamos o mais lentamente possível por entre as estátuas, bustos e outros artefatos do período helenístico (330 – 30 a.C.) e romano (30 a.C. – 395 d.C.) do Museu de Arqueologia e Etnografia, encontramos a impressionante estátua de mármore de Androklos, na verdade, fragmentos dela.

Os pedaços da estátua de Androklos descrevem a Turquia de outros tempos. Antes de fugir da Grécia, Androklos consultou o oráculo de Delfos, que profetizou ao guerreiro que este deveria navegar até que um peixe e um javali mostrassem o local onde parar e se estabelecer. Androklos navegou com seus guerreiros. Chegando a Anatólia, enquanto pescadores preparavam o almoço, um peixe em chamas saiu do fogo e incendiou alguns arbustos; assustado pelo fogo um javali surgiu das chamas. Considerando cumprida a profecia, Androklos estabeleceu-se ali e fundou a cidade de Éfeso.

Assim como os fragmentos de uma estátua preservam a história e estórias de uma cidade que já não existe mais, os fragmentos de lembranças que mantivermos de Izmir nos ajudarão a lembrar de coisas que não poderemos mais viver quando voltarmos para casa; sendo assim, vale preservar o máximo possível.


GÁLATA

Istambul, 15 de janeiro de 2023


Chegamos a Istambul antes do sol nascer. Como nosso hotel fica próximo à Torre de Gálata, deixamos as mochilas e fomos tomar café observando um dos cartões postais mais icônicos da cidade.

A origem da torre ainda é motivo de estudos e pesquisas; atualmente a mais difundida é que foi construída a mando do Imperador Justiniano, O Grande (527–565), porém, inicialmente de madeira, a torre foi destruída durante a Quarta Cruzada em 1204. Em 1267, uma colônia genovesa foi estabelecida em Constantinopla e uma nova torre foi construída, mas também não era essa. Somente após uma expansão da colônia genovesa, em 1348, a Torre de Gálata foi construída servindo como farol para os navegadores, mas também como parte do muro de defesa da retaguarda da colônia. Após a conquista otomana, os genoveses foram expulsos, mas a torre foi autorizada a ficar, porém, como presídio.

A história da Torre de Gálata é realmente confusa, principalmente considerando os turbulentos períodos de guerras entre os bizantinos, genoveses e otomanos. Entre fatos e discrepâncias históricas sobre a Torre de Gálata, é curioso que a mais famosa, aquela que sobrevive já há alguns séculos, é justamente a lenda do turco Ahmed Celebi. A lenda diz que em 1638, inspirado pelos desenhos de Leonardo da Vinci, o turco se lançou da torre amarrado em asas de madeira que ele mesmo projetou. Segundo conta a tradição oral, no primeiro voo intercontinental da história, Celebi voou de Gálata na parte europeia atravessando o canal do Bósforo e pousando em Üsküdar, no lado asiático da cidade. Vendo com os próprios olhos a distância entre um ponto e outro e, sabendo que a origem dessa estória parte de um único mochileiro otomano do século XVII, acho difícil de acreditar.

A Torre de Gálata foi convertida em um museu, se tornando um dos pontos turísticos mais frequentados da cidade, o qual oferece vista para Ayasofya, Palácio de Topkapı, Sultanahmet e, claro, do Corno de Ouro e do Estreito de Bósforo, bem no coração de Istambul.

Após tomar alguns chás com vista para Torre de Gálata seguimos em direção ao estuário do Corno de Ouro. Já era umas 9h da manhã quando o sol resolveu aparecer no horizonte. Estávamos bem embaixo da Ponte de Gálata; a cena das silhuetas dos pescadores acima de nós era uma poesia pronta para ser fotografada. Qualquer hora, seja dia ou noite, os pescadores de Istambul disputam os espaços na ponte, dando identidade única para o local.

Caminhando entre os pescadores seguimos na direção das mesquitas do outro lado da margem. A primeira que se pode ver é a Mesquita Yeni, encomendada em 1597 pela mãe do Sultão Mehmed III. Seguimos até o Bazar Egípcio, um mercado construído em 1660, que leva esse nome por ter sido construído com plantas similares às dos mercados do Egito. Atualmente um total de 85 lojas vendem especiarias, joias, lembranças, frutas secas, nozes e o tradicional turkish delight.

Caminhamos de Gálata até a Ayasophya, mas estava tão lotado que resolvemos não entrar. Ficamos sentados na praça em frente observando os monumentos ao redor e os turistas que compunham o cenário.

Tem dias como hoje que caminhamos sem olhar nos mapas e sem um destino certo ou atração para conhecer, e Istambul é um dos lugares que proporciona esse tipo de passeio, pois tudo aqui, até mesmo as coisas mais simples e rotineiras, são um mundo novo para nossos olhos. Andamos o dia todo, observamos as pessoas, seus costumes e o cotidiano da vida em Istambul. Juro, amamos tanto essa cidade, cada centímetro, que estamos pensando em quando sair amanhã, distribuir alguns currículos.



AS CORES DE BALAT

Istambul, 16 de janeiro de 2023

Balat é um bairro despretensioso, com ruas estreitas e casas coloridas, onde cafés populares e galerias se misturam harmonicamente com mercearias tradicionais de bairro. Território livre para a criatividade de qualquer artista enlouquecer de tanta inspiração. Edifícios antigos, sinagogas e as igrejas bizantinas confirmam o passado cosmopolita de centro de comunidades judaicas, gregas e armênias. Ponto alto do passeio é se perder em suas ruelas cheias de história e romantismo. Encantada, moraria aqui fácil, fácil!

Caminhamos ao amanhecer cruzando a ponte entre os pescadores da Ponte de Gálata. Hoje foi dia de ver as cores de Balat, o bairro mais colorido de toda Istambul. Em Balat o triste se alegra, a destruição ganha vida e o feio se transforma no incrível.

Após uma hora de caminhada encontramos as primeiras konaks otomanas de fachadas coloridas. As flores nas janelas eram cada vez mais constantes, até que o sol resolveu aparecer – embora tímido – para esquentar um pouco o dia. Antes de chegarmos às ruas almejadas pelos fotógrafos, passamos pela Mesquita Yavuz Sultan Selim Camil, um complexo otomano do século XVI localizado em uma das sete colinas de Istambul. Assim que entramos percebemos que era o momento de oração e a mesquita estava lotada. Por isso escolhemos apreciar a construção somente pelo lado de fora. Não que houvesse alguma restrição à nossa presença; na verdade foi uma senhora muçulmana que nos indicou cortar caminho pelo pátio da mesquita em direção ao Balat, mas não achamos respeitoso abusar da hospitalidade e incomodar a prece.

Passando pela mesquita foi possível enxergar o Corno de Ouro e o imponente edifício da escola grega que se destaca entre construções menores. A Fener Rum Kız Lisesi é uma escola ortodoxa grega ainda mais antiga que a mesquita de Sultan Selim, datada do século XV. A escola foi construída para os habitantes gregos da época. Atualmente permanece ativa e segue como uma das instituições educacionais mais prestigiadas da cidade. Ao lado do colégio, está a Igreja Ortodoxa de Santa Maria dos Mongóis, a igreja mais antiga de Istambul.

Em Balat também se encontra a sinagoga mais antiga da cidade, a Ahrida. No século XV o sultão Bayezid II ofereceu cidadania a uma grande população de judeus perseguidos pelos cristãos na Espanha e no Norte da África. Vale destacar, a perseguição aos judeus não começou com Adolf Hitler – assunto que vamos abordar nos próximos dias. O sultão doou terras aos refugiados judeus no bairro de Balat, que ali se estabeleceram e suas famílias se multiplicaram. Atualmente há poucos judeus no bairro; desde 1950 começaram a emigrar de Balat para outros bairros e alguns foram se assentar no recém autoproclamado Estado de Israel – assunto que também tem data e hora marcada para falarmos.

Como dissemos em nossa introdução: “Em Balat o triste se alegra, a destruição ganha vida e o feio se transforma no incrível.” – Não sem motivo. As coloridas ruas do bairro mais alegre de Istambul passaram por diversos episódios de violência, morte e massacres.

No início da decadência do Império Otomano, em 1810, os judeus do bairro investiram contra tropas de janízaros a serviço do sultão. O estado decidiu prender e executar alguns dos responsáveis para servirem de exemplo. Posteriormente, no contexto da Primeira Guerra Mundial, ocorreu ainda o genocídio armênio. A comunidade armênia ocupava então uma posição de destaque na sociedade otomana. Com as sucessivas perdas militares na Grande Guerra, os governantes otomanos passaram a temer uma rebelião e uma subsequente insurreição por independência; assim, decidiram pela deportação em massa. Estima-se que 800 mil a 1,2 milhão de armênios foram enviados ao deserto sírio, privados de comida e água.

A derrota na Primeira Guerra Mundial levou à queda do Império Otomano e à ascensão do movimento nacionalista turco, liderado por Atatürk. Durante a guerra os turcos promoveram um processo de limpeza étnica também contra cristãos sírios e ortodoxos gregos, uma tentativa de tornar a Turquia uma etnocracia. O governo turco nega até hoje o processo de limpeza étnica promovido contra os armênios, sírios e gregos, ao alegar que a deportação em massa foi um processo legítimo. No entanto, no último ano, trinta e três países reconheceram o episódio como genocídio.

A Turquia, assim como qualquer país, tem um passado e episódios difíceis de serem lembrados – porém, ainda mais difíceis de serem esquecidos. Em Balat muitas lágrimas e sangue foram derramados. Contudo, ainda hoje, os habitantes do bairro insistem em colorir e decorar as ruas com a esperança de criar memórias melhores para a próxima geração. Um exemplo disso é o trabalho do Mink Kalpler Çucuk Iyilik Ve Asevi, uma casa onde mais de 60 crianças são atendidas sem distinção de etnia, cor ou religião. Crianças de diferentes idades tomam café da manhã, almoçam e têm aulas de reforço escolar e outras disciplinas variadas, com a ajuda de voluntários de todos os cantos da Turquia e de outros países, que vêm até Balat para conhecer este trabalho. Kalpler Çucuk é uma escola de tempo integral onde as crianças aprendem e socializam enquanto os pais trabalham.

Neste mundo não há lugar perfeito ou história imaculada. Todos temos um passado, alguns, um tanto mais sombrio que outros. Todavia, o que nos ensina o bairro de Balat é que dar cores à vida é uma excelente forma de recomeçar.


ÜSKÜDAR

Istambul, 17 de janeiro de 2023


Nos dias que passamos em Istambul vasculhamos cada centímetro da região europeia. Hoje foi o dia de atravessar o Bósforo e conhecer o lado asiático da cidade. Não tínhamos nenhum plano específico, somente perambular pelas calçadas e observar a vida em seu mais pleno funcionamento, quem sabe encontrar as diferenças e semelhanças entre um lado e o outro.

Embarcamos em um ferry boat ali mesmo no Pera; o barco cruzou para o outro lado da margem, depois passando por baixo da Ponte de Gálata em direção ao Üsküdar, local onde um turco chegou voando após se jogar da Torre de Gálata. Foi o dia mais frio de todos e, não estava para brincadeira; durante a travessia do Estreito do Bósforo o barco balançou bastante, o Lucas pareceu não se importar nem com o frio, muito menos com o balanço do mar. Fiquei pensando “como pode ele ter medo de avião e não ter medo do mar mesmo sem saber nadar direito?”

Caminhamos pela rua, mas parecia que não chegaríamos a lugar nenhum. Tentamos tomar um ônibus para a mesquita Çamlıca em Istambul, construída no pico mais alto da cidade, mas não deu certo. Hoje o Lucas estava com a cabeça na lua e não conseguia de jeito nenhum se organizar como navegador. Acho que é pelo fato de estar chegando a hora de ir para Palestina. Ele disse, até treinamos algumas vezes, respostas prontas para dar para o policial da fronteira israelense. Geralmente os policiais fazem muitas perguntas: se você conhece algum palestino; se você vai para Palestina; se você já ouviu falar de Palestina e por aí vai. Claro que o Lucas não pode dizer que é jornalista, muito menos para o jornal que escreve. Pior ainda é sobre o que escreve. – Pensando bem, é melhor não falar nada! A opção que escolhemos foi dizer que somos ambos tatuadores. Engraçado seria alguém pedir para que ele desenhasse, aí acabaria toda farsa. – Eu acho que é isso que anda rodeando a cabeça desse homem hoje!

Como não conseguimos pegar ônibus, tentamos embarcar no metrô. Aprendemos cedo a comprar o cartão nos totens eletrônicos, na vigésima ou trigésima tentativa já estávamos craques. O Lucas foi na máquina e voltou com um cartão. Em Istambul você pode optar por comprar um cartão com três passagens que te dá acesso a todos os meios de transporte, obter um desconto comprando um com mais passagens. Fizemos o cálculo e optamos por comprar o de três unidades, já usamos tanto esse que agora não compensava mais. Vindo com o cartão, passei pela catraca, e quando o Lu foi passar ela começou a apitar. Um guarda tentou nos ajudar, mas disse que aquela passagem era diferente e nós teríamos que comprar outra, e depois descer em outro lugar e embarcar em outro ônibus, barco, disco voador, sei lá. Acabamos desistindo, o Lucas ficou “putasso”, não que ele seja um cara tipo tranquilo, mas em viagem é difícil vê-lo assim estressado; mas hoje ele está, e para não brigarmos é melhor nem ficar perguntando.

Ficamos andando na rua sem rumo, adoramos fazer isso, mas no bairro onde estávamos não tinha nada de diferente, era um bairro típico de cidade grande, com eletrônicos, meias e os típicos coletes salva-vidas pendurados; sem contar as ruas movimentadas com pessoas, carros, ônibus e metro por todos os lados. Nosso primeiro dia chato! Eu estava começando a me irritar também. – Pô, estou de férias, vamos perder um dia de passeio por causa desse chato! Ficamos andando igual duas baratas tontas. Do nada, ao atravessar uma avenida o Lucas olhou para uma placa e disse: – Vamos? Respondi: – Bora. Eu não sabia para onde estávamos indo, ele disse que nem ele, já que não fala turco, mas completou dizendo que geralmente aquelas placas marrons indicam pontos turísticos.

Conversando e caminhando passaram-se uns quinze minutos e chegamos. – Não acredito, gritei!

No primeiro dia de viagem, tentamos chegar ao mercado de Kadiköy, não conseguimos. Esse mercado tem dia certo, só funciona nas quartas-feiras e, nem acredito, hoje é quarta-feira; eu já nem tinha mais esperança de encontrar esse paraíso das compras, agora do nada, aqui estamos nós. Perguntei se o Lucas sabia o que era aquilo que estávamos vendo, ele disse que não. Desconfiei, mas percebi que ele realmente não fazia ideia de que por acaso encontramos o bendito Kadiköy.

Aprendi que viajando tudo conta, não só o destino final, mas muitas vezes, ou todas elas, o caminho para um lugar é tão emocionante quanto chegar nele, mesmo quando passamos por certas frustrações ou acabamos o dia irritados. No fim das contas o que fica são boas histórias para contar.

Eu até contaria um pouco mais sobre o mercado de pulgas de Kadiköy, mas andamos tanto e fiz tantas compras hoje que vou deixar por conta da imaginação de cada um e vou dormir um pouco. 


TAKSIM, APÓS O ATENTADO

Istambul, 18 de janeiro de 2023


Em novembro do ano passado, um ataque a bomba ceifou a vida de seis pessoas e deixou mais de oitenta feridos em uma das ruas mais movimentadas de Istambul. Poucos meses após o atentado, lá estávamos nós, caminhando pela praça Taksim e pela tumultuada rua Istiklal.

Estamos hospedados no bairro de Karaköy, local com a maior concentração de turistas em Istambul. A rua Istiklal liga nosso bairro à praça Taksim, no bairro de Beyoglu. Devo admitir que esperava encontrar o lugar vazio devido ao ataque; ao contrário, estava lotado de turcos e turistas estrangeiros.

Lamentavelmente, não foi a primeira vez que um ataque como esse aconteceu por aqui. Em 2010, um terrorista suicida do grupo Falcões da Liberdade do Curdistão (TAK) explodiu-se ao lado de um ônibus da polícia, ferindo 15 policiais e 17 civis. Outro atentado ocorreu em março de 2016; um homem-bomba matou diversos turistas na mesma rua – ataque então reivindicado pelo grupo fundamentalista Estado Islâmico (ISIS ou Daesh).

É complicado entender ou falar sobre terrorismo de maneira superficial, visto que existe muito preconceito e desinformação sobre o assunto. Vale ressaltar que Estado Islâmico é uma organização terrorista que não representa os mu¬çulmanos, sejam eles do Oriente Médio ou de qualquer outra parte do mundo. O grupo apenas se apropriou do termo “islâmico” como pretexto, exatamente como terroristas bolsonaristas se autoproclamam “patriotas” para atacar a democracia brasileira. Terrorismo e islamismo não são sinônimos, muito pelo contrário. Os turcos, majoritariamente muçulmanos, se orgulham e insistem em manter e cobrar que o regime seja laico e secular, bem como Atatürk, o “Pai dos turcos”, prometeu desde a independência, afirmando que: “A religião é uma instituição importante. Uma nação sem religião não pode sobreviver. No entanto, também é muito importante observar que a religião é um elo entre Allah e o crente individual.” Kemal Atatürk

Tão é o senso de laicidade turca que cito um exemplo: logo ao chegarmos na praça, fomos conhecer a Mesquita Taksim. Inaugurada em 2021 em cerimônia que contou com a presença do presidente Recep Tayyip Erdoğan. O plano de construção do complexo religioso foi pauta de discussão desde a década de 1950. Várias vezes o projeto foi abandonado. Os turcos, mesmo muçulmanos, se opuseram à construção devido ao fato de a praça Taksim ser ligada à história de republicanismo e secularismo na Turquia. No entanto, o Conselho de Preservação de Monumentos Culturais eventualmente venceu a disputa; em 2017, a obra teve início.

A Mesquita Taksim não foi a única construção que a vontade popular tentou barrar. A Mesquita de Çamlica, no lado asiático, teve uma história parecida, concluída apenas em 2019 para então se tornar a maior mesquita do país.

Voltando aos atentados terroristas, uma onda de ataques abalou as metrópoles turcas entre 2015 e 2017, causando mais de 500 mortes. Em 2015, um carro-bomba explodiu nas ruas da capital Ancara; em 2016, foi a vez do aeroporto internacional de Istambul. Na mesma cidade, durante uma festa no réveillon de 2017, uma bomba explodiu em uma discoteca.

Esperávamos que o ataque de novembro tivesse espantado os turistas ou, no mínimo, incitado maior controle da polícia em áreas não islâmicas, como a Igreja de Santo Antônio, que visitamos mais tarde. Contudo, a vida segue como se nada tivesse acontecido. Havia, de fato, certo contingente policial, mas nada que espantasse dois brasileiros.

Dias após o atentado no fim do ano anterior, as autoridades prenderam uma mulher e outros suspeitos do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) – designado “terrorista” pelo regime. As autoridades proibiram a publicação de imagens e artigos sobre o assunto e limitaram a banda das redes sociais para “impedir a propagação de imagens chocantes e de informação falsa”. Erdoğan prometeu “punir os responsáveis”. Não obstante, Istiklal e Taksim contam com vasto aparato de vigilância e força policial 24 horas, o que facilitou encontrar os suspeitos.

Andar pela área me fez pensar na maneira com que o governo brasileiro tem tratado terroristas bolsonaristas. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica, conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

Evidentemente, o que aconteceu em Brasília não tem nada a ver com “liberdade de expressão e reunião pacífica”; aquilo foi terrorismo.

Antes de viajar à Turquia, lembro de ter visto o atual Ministro da Justiça Flávio Dino afirmar em entrevista que defende o direito à manifestação de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas que ataques contra a democracia seriam tratados com seriedade. Na Turquia, porém, não existe essa distinção; manifestantes pacíficos são tratados como terroristas e vice-versa. A força policial instalada na praça Taksim não serve apenas para prevenir o terrorismo, como insiste em dizer; serve para dissuadir qualquer tipo de manifestação popular. Erdoğan e seu gabinete foram criticados várias vezes pelo uso excessivo da força e violência contra manifestantes pacíficos – quem dirá aqueles que cometem atentados terroristas.

No primeiro dia de viagem, escrevi sobre como olhamos para incidentes no Oriente Médio enquanto minimizamos a periculosidade de nossos próprios terroristas. Olhando para a maneira com que o governo turco atua no combate ao terrorismo e como o governo brasileiro tem atuado – e como ambos reagem às manifestações populares –, podemos dizer que, neste quesito, o atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva, seu ministro Flávio Dino e outras autoridades em questão dão exemplo de aplicação da lei e da ordem sem ferir os direitos humanos – mesmos daqueles que apoiam a ditadura, exaltam a tortura e outras barbáries.

Se os presos da Papuda e Colmeia soubessem um pouco sobre a diferença entre terrorismo e direito de associação pacífica e como é distinta a abordagem do Brasil e da Turquia, estariam todos gratos por estarem detidos sob um governo democrata de esquerda que respeita os direitos humanos. 



MESQUITA AYASOFYA

Istambul, 19 de janeiro de 2023


Decidimos ser os primeiros a entrar na Ayasofya. Tentamos outras vezes visitar o monumento, mas a fila na praça externa estava tão grande que decidimos ir outro dia e no primeiro horário. Mais uma vez, cruzamos por entre os pescadores da Ponte de Gálata e em pouco menos de uma hora de caminhada matinal lá estávamos nós, entre os primeiros da fila para conhecer a mesquita que é o símbolo de Istambul.

A Ayasofya ou “Santa Sofia” é um dos monumentos mais visitados na Turquia. Construída entre 532 e 537 por ordem do Imperador Justiniano, permaneceu como a maior catedral do mundo por quase mil anos. A etimologia do nome Ayasofya causa confusão para os turistas ocidentais que adotam o nome Santa Sofia, acreditando que seja uma homenagem à santa cristã, Sofia. Deveras, o nome completo da Catedral é (Ναός της Αγίας του Θεού Σοφίας), sendo: Ναός της (Templo) Αγίας (Agia, palavra para Santo) Θεού (Deus) Σοφίας (Sofia). Sofia é um nome grego que significa “sabedoria”, portanto, a tradução literal em português é “Templo da Santa Sabedoria de Deus”.

Não somente o nome causa confusão, mas também a qual religião esse templo pertence. Atualmente, Ayasofya é uma Mesquita, porém, no passado já foi Catedral Bizantina (537 – 1054), Catedral Ortodoxa Grega (1054 – 1204), Catedral Romana (1204 – 1261), novamente Catedral Ortodoxa Grega (1261 – 1463), Mesquita (1463 – 1931), Museu (1935 – 2020) e agora, com muita controvérsia e rejeição, novamente Mesquita. Confesso que nós mesmos ficamos com dúvidas quanto a que nome adotar neste diário e se deveríamos chamar de Catedral, Museu ou Mesquita. Optamos por Mesquita Ayasofya, haja vista que atualmente ela é uma mesquita e que se encontra em território turco.

Ayasofya está profundamente vinculada à história da Turquia. Servindo como palco para o florescer e desfalecer dos grandes impérios.

Depois de uma hora esperando na fila, finalmente os portões se abriram e entramos para conhecer a Mesquita Ayasofya. Imponente e majestosa, a arquitetura externa de estilo bizantino não difere de outras mesquitas da cidade. Durante 500 anos Ayasofya serviu como modelo para tantas outras mesquitas de todo o Império Otomano, incluindo a Sultanahmet (Mesquita azul) localizada bem em frente.

Retirando os sapatos, caminhamos cada um por um lado para poder entrar no local sagrado. Ao entrar na Mesquita, a visão que tínhamos de simplicidade foi tomada pela sensação de se estar numa caixa de joias islâmicas. Os lustres baixos iluminam um ambiente amplo e de tetos que se erguem às alturas, sustentados por enormes pilastras laterais. No centro, um lustre de arabescos islâmicos ilumina à meia-luz; o contraste entre o ferro da armação e a delicadeza dos finos vidros que prendem as luzes amareladas exterioriza os dogmas da fé islâmica: firme, porém abundante em ternura.

No teto abobadado, caligrafias do nome de Deus partilham o espaço com imagens cristãs cobertas. É comum que cristãos se indignem com a cobertura das imagens, no entanto, elas não estão cobertas somente pelo fato de serem representação cristã, mas somente pelo fato de serem representações. No Islã, é proibido a idolatria de imagens, principalmente as que dizem respeito aos profetas, Abraão, Noé, Moisés, Jesus ou Mohammad. Segundo a religião, os profetas iluminados por Allah devem ter importância na imaginação das pessoas e não ter o sagrado personificado em imagens. Assim, a forma de representar Deus é na caligrafia de seu nome. Em forma de respeito à tradição cristã, os muçulmanos preservaram suas imagens e, em forma de respeito à tradição islâmica, elas permanecem cobertas.


“Ele é Allah, o Criador, o Originador, o Criador de imagens. A Ele pertencem os melhores nomes.” (Alcorão 59:24)

Passamos horas admirando a mesquita, vimos muitos turistas entrando e saindo, mas nós não conseguimos sair. Apesar de ser ateu, ou como prefiro dizer, “alguém que ainda não encontrou Deus”, tenho imensa admiração por templos religiosos, ainda mais se esses templos guardam tantas histórias como Ayasofya. Seja mesquita, catedral, sinagoga ou templos hindus, budistas ou de religiões de matriz africana, eu realmente gosto de toda herança cultural guardada dentro dessas paredes. Quanto à Di, além de gostar tanto quanto do contexto histórico e cultural, ela ainda se deixa emocionar pelas manifestações de fé. – Algo que admito invejar!

Escolhemos fazer esta viagem à procura da Terra Santa, na qual encontramos até o momento diversas manifestações e expressões da fé praticadas de formas diferentes. Na Ayasofya, provavelmente por guardar segredos de religiões diferentes, mesmo com a disputas pelo status religioso, conseguimos encontrar um pouco da Terra Santa que temos procurado. Hoje é nosso último dia de passeio pela Turquia, podemos dizer que sim, encontramos aqui uma terra santa. Santificada por um povo maravilhoso que não mede esforços para ajudar, seja na acolhida de pessoas em situação de refúgio ou na simples ajuda a dois turistas perdidos. Santificada por tentar lidar com a diversidade tentando corrigir erros anteriores. Mas, principalmente, santificada por entender que a religião é importante para o ser humano, tanto quanto a laicidade e a secularidade são importantes para uma sociedade.

A Turquia realmente conquistou nossos corações. Toda despedida dói, mas essa vai doer um pouco mais, pois saímos com a mais verdadeira vontade de ficar.

O tempo que convivemos com os turcos não demorou, mas aprendemos a pronunciar "teşekkürler", que significa obrigado; não foi fácil, mas aprendemos. Então para Turquia, para todo seu povo, para toda sua cultura e para Ayasofya; só podemos dizer "teşekkürler" por ser tão boa para nós!


AL-QUDS, JERUSALÉM

Jerusalém, 20 de janeiro de 2023


Deixamos a Turquia com vontade de ficar mais, mas era hora de ir; sabendo qual seria nosso próximo destino, nem olhamos para trás. Esta é a segunda vez que tentamos entrar na Palestina. Na tentativa anterior, o plano era adentrar na Faixa de Gaza pela turbulenta passagem de Rafah, fronteira com o Egito; contudo, assim que chegamos à península do Sinai, as condições políticas no momento nos desencorajaram e nem tentamos.

Pousamos no aeroporto Ben Gurion em Tel Aviv às 20h de sexta-feira. Não havia ônibus ou trem para Jerusalém haja vista que na sexta-feira após o pôr-do-sol começa o Shabat, dia de descanso para os judeus. Após uma negociação sobre os valores da viagem com um motorista que faz o translado, seguimos para Al-Quds, que talvez você conheça pelo nome de Jerusalém. Chegamos na cidade de Al-Quds por volta das 22h. Ficamos em um hostel bem perto do portão de Jaffa, uma das entradas para a Cidade Velha. Sem demora, mesmo que já estivesse tarde, largamos as malas e saímos para conhecer a capital da Palestina.

Não foi preciso mapa para entrar na Cidade Velha; só de olhar para as muralhas e seus mais de cinco mil anos de história você já se localiza fácil. Jerusalém é uma cidade mítica, mística e com séculos de histórias reais, nem todas boas. A cidade já foi ocupada, destruída, sitiada, atacada e capturada muitas vezes por diferentes povos; entre eles, egípcios, babilônios, romanos, cruzados e sionistas , todos interessados na cidade que, repetindo, é a capital da Palestina.

Muitos devem estar se perguntando: Mas Jerusalém não fica em Israel? Não! Jerusalém é o centro de uma disputa territorial desde 1948 e se agrava diariamente diante dos olhos da comunidade internacional. Vamos nos referir a Jerusalém como Al-Quds, por ser o nome árabe para a capital da Palestina, mas antes disso vou explicar por quê?

Houve uma época que judeus, cristãos e muçulmanos viviam em harmonia na Palestina. Basicamente a sociedade era composta em 85% de muçulmanos, 10% de cristãos e 5% de judeus. Na mesma época, em 1890, ou seja, antes de Adolf Hitler, os judeus eram perseguidos pela Europa, nos chamados pogroms . Assim surgiu entre euro-judeus a ideia de se proteger dos ataques e “fundar” um país onde pudessem viver “em paz”. O movimento mais proeminente foi o sionismo. Os sionistas cogitaram a criação do Estado Judeu na Argentina, Marrocos, Uganda, Madagascar e até lhes foi cedido um território em uma região na Rússia, mas no fim decidiram ir para Palestina. Iniciou-se a imigração judaica ilegal para Palestina, durante o Mandato Britânico para Palestina . Os ingleses tentaram limitar a imigração, mas por baixo dos panos davam pleno apoio para o crescimento da ocupação e do movimento sionista.

Em 1947, com o aumento exponencial da imigração judaica – aí sim com efeitos da perseguição nazista – e o abandono do Mandato Britânico para Palestina; a recém fundada Organização das Nações Unidas, sugeriu dividir o território em duas partes (Resolução 181).

Sobre a Resolução 181. Os imigrantes judeus (32,95% à época) ficariam com 57% do território, já os árabes-palestinos receberiam apenas 43% do próprio país. Para a cidade de Jerusalém seria instituído o regime de “corpus separatum”, o qual ficaria sob administração internacional por um período de dez anos até que um plebiscito decidisse qual nacionalidade administraria a cidade. Observando os aspectos religiosos da cidade, dos lugares sagrados, santuários e edifícios religiosos, é dito neste documento que respeite e garanta a liberdade de culto, acesso, visitas e trânsito dos residentes e dos cidadãos de outros estados sem distinção de nacionalidade.

Os Palestinos rejeitaram a proposta, já que obviamente beneficiava somente os imigrantes europeus. Com o argumento da partilha, milícias judaicas organizadas sob liderança do Haganah (atualmente Forças de Ocupação Israelense, conhecida pela sigla IOF) começaram a atacar, matar e expulsar os palestinos de suas próprias casas. As vilas conquistadas pelos euro-judeus foram destruídas para que não houvesse casas para os palestinos voltarem.

Ao final desse episódio, 774 cidades e povoados palestinos foram ocupados, 531 foram totalmente destruídos. Houve 70 massacres com mais de 15 mil mortos e milhares de feridos e mutilados. Aproximadamente 800 mil palestinos foram expulsos; os que resistiram a sair foram empurrados para as extremidades, ficando com apenas 22% de seu próprio território – dividido e separado – que ficaram conhecidos como Cisjordânia e Faixa de Gaza, para que os sionistas pudessem chamar os outros 78% de “Eretz Israel”. O massacre foi chamado pelos euro-judeus de Independência, para os palestinos é chamado de Nakba, uma palavra em árabe que quer dizer catástrofe. Então, quando se argumenta que o que acontece atualmente na Palestina se trata de uma guerra religiosa, comete-se dois perigosos enganos que beneficiam somente ao estado de ocupação: o primeiro é que não há nada de “religioso” nessa história, isso é uma ocupação territorial, uma colonização violenta e assassina, na qual a religião é apenas um argumento de “legitimação” a causa sionista; segundo, isso não é uma guerra, pois, para ser tratado como guerra deveria ambos os lados estarem armados; aqui os soldados sionistas humilham, prendem, torturam e matam civis, sejam mulheres, crianças ou idosos; na ocupação, de um lado tem-se um dos maiores e mais modernos e tecnológicos exércitos do planeta, do outro, palestinos com paus e pedras. Existem várias nomenclaturas que podemos usar para definir o que acontece na Palestina atualmente, algumas que podem ser usadas são: limpeza étnica, apartheid , racismo , colonialismo e genocídio.

Dado esse panorama superficial de uma catástrofe muito mais profunda, agora vamos falar em especial da cidade de Al-Quds (Jerusalém) e sua a importância religiosa para as três religiões monoteístas.

Para cristãos, a cidade é cenário dos últimos dias de Cristo. Aqui fica a Via Dolorosa – caminho que Jesus percorreu para a crucificação. Jesus também tem uma história com o Templo; de acordo com a Bíblia foi no segundo Templo de Salomão que o profeta expulsou os vendilhões e cambistas. Outro local sacro é a Gólgota, a colina onde Jesus foi crucificado. João afirma em seu Evangelho que o calvário estava situado nos arredores de Jerusalém, mas evidências arqueológicas recentes sugerem que o Gólgota fica a uma curta distância dos muros da Cidade Velha, justamente na área da Basílica do Santo Sepulcro, local de peregrinação cristã pelos últimos dois mil anos.

Para os muçulmanos que consideram a cidade como a terceira mais sagrada de sua fé, a maior importância se dá pela Mesquita de Al-Aqsa. Conforme o Islã, por volta do ano 621 d.C., o anjo Jibril (Gabriel) guiou o Profeta Muhammad por uma viagem noturna por via de um Buraq . O primeiro destino foi o Monte Sinai – onde Allah revelou a Torá a Moisés. A segunda parada se fez em Bethlehem (Belém), cidade palestina do nascimento de Jesus. Na sequência, o profeta foi guiado ao local onde Moisés foi sepultado – hoje, na Esplanada das Mesquitas. Por fim, Muhammad foi conduzido pelo anjo até o local onde profetas antes dele – como Abraão, Enoque, Moisés, José, João Batista, Jesus – o aguardavam para iniciar uma oração. Após a prece os profetas ascenderam juntos ao céu e lá Muhammad recebeu a instrução de repassar aos muçulmanos o culto das cinco orações diárias. No local do encontro e partida dos profetas foi erguida a mesquita Al-Aqsa.

Para os judeus o maior argumento de sacralidade é o Muro das Lamentações. Segundo a tradição judaica, na cidade de Jerusalém foi erguido o Templo de Salomão, cujo Muro das Lamentações – conforme certas interpretações – é vestígio do santuário antigo, a ser restaurado com a vinda do Messias, e somente com a vinda – conforme o judaísmo – será autorizada a volta dos judeus para Jerusalém. No entanto, o muro das lamentações reivindicado é na verdade o Al-Buraq, muro ocidental que guarda a mesquita Al-Aqsa. O muro não tinha nenhuma importância, somente no século XVI é que os judeus que habitavam a Palestina começaram a orar ali. Durante a ocupação britânica, os judeus tentaram controlar a área do muro, mas os palestinos recusaram.

Em 1929 houve a chamada Revolução de Al-Buraq. Uma comissão internacional foi montada para avaliar a situação; a conclusão enviada para Liga das Nações (antecessora da ONU) foi: “O Buraq ‘Muro das Lamentações’ é parte integral da Mesquita de Al-Aqsa e al-Haram al-Sharif (nome em árabe para Esplanada das Mesquitas). Nenhuma pedra sequer remonta os tempos do Templo de Salomão. A passagem da frente do Muro não é uma passagem pública, mas ela foi construída para uso dos habitantes do bairro de Mughrabi e outros muçulmanos, deixando os judeus sem nenhum direito sobre o assunto.”

Durante a Guerra de 1967, as Forças de Ocupação Israelense (IOF) tomaram e ocuparam outras partes do Território da Palestina, bem como a cidade de Al-Quds. Com isso tomaram o controle de toda cidade, do Muro, destruíram o bairro de Mughrabi e distorceram toda história a favor da narrativa sionista. – Ficou confuso com a história? Não se espante, como se ela já não fosse confusa o suficiente, ainda assim o quer o sionismo.

Chegamos a Jerusalém em pleno shabat que começa com o pôr do sol da sexta-feira e termina ao anoitecer do sábado. É o sétimo dia da semana judaica e é dedicado ao descanso. No shabat você não trabalha, não dirige, não cozinha e não compra; é um dia dedicado à oração e à desconexão total.

Deixamos as malas no hostel e corremos para cidade antiga. Foi impactante, estava vazio, já que Jerusalém é uma das cidades mais visitadas da terra. Por conta do horário e do shabat, havia poucas pessoas na rua, o que nos deixou ainda mais animados. Nunca ouvimos falar de um tour noturno por Jerusalém, mas uma coisa podemos afirmar: à noite, a cidade é absolutamente outra.

Apesar de câmeras que parecem te olhar o tempo todo, a cidade velha não é nem um pouco segura, pelo menos não se você for ou se parecer com um palestino. Em 2014 Mohammed Abu Khdair, um jovem palestino de 16 anos foi sequestrado, espancado e assassinado por judeus ortodoxos. Segundo a autópsia, o jovem foi queimado vivo. Segue abaixo trechos do depoimento dos assassinos:


“Estávamos de cabeça quente e com raiva e decidimos queimar algo dos árabes.” [...] “Decidimos pegar alguém, sequestrá-lo, espancá-lo e expulsá-lo.” [...] “Eu disse a Yud para pressionar com força e acabar com ele porque essas pessoas têm sete vidas. Não deixe que ele se levante.” [...] “Peguei um isqueiro e coloquei fogo no cara… e tudo pegou fogo.” [...] “Eu disse a eles: ‘Vou falar a verdade, nós tínhamos um propósito, mas isso não é para nós. Nós estávamos errados. Somos judeus misericordiosos. Somos seres humanos’”. The Times of Israel

Andando pela Cidade Velha percebemos muitos jovens ortodoxos, sempre com olhares desconfiados. Queríamos encontrar o Al-Buraq (Muro das Lamentações), mas o Google Maps não funcionava, então perguntamos para dois jovens como chegar. Não é difícil encontrar “israelenses” que falam outros idiomas, na verdade é bem comum, visto que muitos desses jovens não nasceram no Estado de Israel. Logo depois da Nakba (1948), que Israel chama de Independência, era preciso firmar maioridade populacional dentro da Palestina, para isso, em 1950 Israel criou a Lei de Retorno (5710-1950). Essa lei, ainda válida, garante a qualquer judeu de qualquer parte do mundo, “retornar” para Israel. – Aí te pergunto como é possível que estrangeiros que nunca estiveram aqui, “retornem”? – E pior, como não é permitido que os palestinos que nasceram aqui, que tem seus pais, avós, bisavós e além, e foram expulsos de suas casas, não possam retornar? – Para piorar a situação, em 1970 o Estado de Israel acrescentou a Emenda (5730), ampliando o “direito de retorno” para filhos e netos de judeus bem como seus cônjuges e os cônjuges de seus filhos e netos. Ou seja, qualquer um que se declara descendente de judeu, tem direito de cidadania israelense. – E com base em quê o Estado de Israel comete essa atrocidade? – Alegando o “direito divino” dessas pessoas ao “retorno” à Terra Prometida. Por isso não é difícil encontrar um judeu ortodoxo falando russo, inglês, espanhol ou mesmo um português carregado de um sotaque forçado.

Chegando ao Muro, a Di foi para área destinada às mulheres. Achei melhor observar de longe e ficar de olho. Sei que muitas pessoas enxergam o Muro das Lamentações como algo sacro, mas eu não conseguia olhar dessa maneira, para ser bem sincero estava louco para sair logo dali. Enquanto estava pensando nas histórias que permeiam esse muro e de longe olhando para Di, um francês judeu que decidiu morar em Jerusalém se aproximou de mim e puxou conversa. Ele também falava bem espanhol, o que facilitou compreendê-lo. Ele me disse que decidiu morar em Jerusalém pela “paz espiritual” que emana da cidade; fiquei pensando: “esse filho da puta só pode estar de sacanagem”, mas fiquei quieto. Ele me convidou a me aproximar do muro, embora eu não quisesse, acabei indo. Percebi que muitos jovens estrangeiros – ao qual percebesse pela dificuldade em ler e pronunciar o hebraico – faziam um tipo de “catequese”. Dei uma volta rápida e caminhei para o meu ponto de vigia, dando as costas para o muro; foi quando percebi, que outros israelenses pelos quais eu passei na entrada sem perceber, estavam fortemente armados. Pela aparência de mais velhos, deduzi que não eram soldados, deviam ser civis que montavam guarda para os que estavam orando. O que mais me chamou a atenção foi que aqueles caras armados, cantavam enquanto liam trechos da Torah . Eu sei que meu ateísmo me impede de ver certas coisas, mas talvez esse mesmo ateísmo me possibilite ver outras. Fiquei pensando: “se eu acreditasse em Deus com essa mesma efervescência, se confiasse tanto na vontade de um ser superior e aceitasse seus planos divinos, me recusaria carregar um fuzil”, mas esse sou eu. Assim que saí dali fiquei buscando a Di com os olhos, mas ela me achou primeiro. Perguntei se tinha sentido algo e ela disse que não, pois o clima era muito tenso. Não esticamos a conversa e saímos logo. Caminhamos pela Via Dolorosa – percurso da crucificação de Jesus –, passamos pela Igreja do Santo Sepulcro, conhecemos o mercado, mesmo que fechado, e lá pelas três da madrugada o cansaço bateu e voltamos ao hostel para descansar um pouco e nos prepararmos para o dia seguinte. Era muita experiência de Terra Santa para um único dia.  



CORPUS SEPARATUM

Jerusalém, 21 de janeiro de 2023

Diferente da noite anterior, hoje não nos deixaram chegar nem perto para observar as orações no Al-Buraq (muro das lamentações para os israelenses). Logo acima do muro está a Esplanada das Mesquitas e mesquita Al-Aqsa, local que os colonos sionistas insistem em chamar de “Monte do Templo”. A Esplanada das Mesquitas é um dos pontos de nosso maior interesse na cidade, mas os soldados israelenses que guardam suas entradas não nos permitiram entrar. Tentamos pelos portões de acesso dos fiéis muçulmanos duas vezes, mas os soldados israelenses – não eram poucos – voltaram a nos impedir. Na tentativa derradeira, o soldado afirmou que não poderíamos entrar porque não éramos muçulmanos; eu lhe perguntei como poderia saber, mas saímos para evitar um tumulto e tentar novamente na manhã seguinte.


“O que é odioso para você, não faça para seu próximo” (Judaísmo) “Faça aos outros o que gostaria que fizessem a você.” (Cristianismo) “Nenhum de vocês é crente até que deseje para seu irmão o que deseja para si mesmo.” (Islamismo)

É bizarro que nos territórios controlados pelo Estado de Israel eu tenha que mentir sobre uma religião que nem tenho para poder entrar em algum templo religioso que também não pertence a religião do soldado que o controla. Ainda mais bizarro é um ateu olhar para um soldado que veio de algum lugar do mundo para morar na “Terra Prometida”, e saber que apesar de ele estar usando o quipá, ele acredita muito mais na segurança de seu fuzil que na provida por Deus. A hipocrisia dos fanáticos religiosos, seja lá qual for a religião, me incomoda profundamente.

Vou explicar uma coisa; o conceito de que “Deus” prometeu uma terra para o “povo de Israel”, não se sobrepõe aos direitos humanos, muito menos se o “povo escolhido” quer tomar terras à força, prendendo, torturando e matando qualquer um que se atreva a se opor às suas vontades nefastas. Ainda mais se o argumento usado para isso é puramente raso e não possui nenhum fundamento religioso. Termos empregados puramente como propaganda sionista que caminham na contramão do judaísmo. E nem sou eu que estou falando.

Atualmente existem muitas organizações judaicas de oposição ao sionismo em diversas partes do mundo. A Rede Judaica Antissionista Internacional (IJAN) afirma que o sionismo é um movimento racista e o Estado de Israel um regime de Apartheid. Grupos como a IJAN afirmam que não existem argumentos no judaísmo para o “retorno”, pelo contrário, as leis judaicas contidas no Talmude e outros livros sagrados afirmam que os judeus são proibidos de retornar para Terra Santa até a vinda do Messias.

Um dos grupos judaicos antissionistas de maior destaque é o Neturei Karta (‘Guardiões da cidade’ em aramaico). Formado por judeus húngaros e lituanos que se estabeleceram na Palestina no início do século XIX (antes das primeiras imigrações sionistas), seus fundadores ajudaram a comunidade palestina de Jerusalém na fundação de novos bairros para aliviar a superlotação da Cidade Velha . Quando os primeiros sionistas imigraram, quase um século após o estabelecimento do Neturei Karta, estes se opuseram afirmando que a redenção judaica só poderia ser realizada de maneira divina e não pelas mãos humanas do sionismo. Atualmente com associados em Israel, EUA, Inglaterra e outros países o grupo de judeus ortodoxos se opõe ao sionismo pedindo pelo “desmantelamento pacífico” do Estado de Israel e expressa apoio à libertação da Palestina. O grupo também afirma que o sionismo (não o judaísmo) foi uma das causas que provocou o holocausto nazista.

Na opinião dos rabinos do Neturei Karta, “o sionismo é uma presunçosa afronta a Deus” e que “as tentativas humanas de estabelecer a soberania judaica sobre a Terra de Israel são pecaminosas”, a qual se opõe ao conceito dos Três Juramentos contidos no Talmude babilônico. A Lei dos Três Juramentos foi um pacto entre Deus, o povo judeu e as nações do mundo, estabelecida quando os judeus foram enviados para o exílio.

Para os Judeus: não reclamar à força a Terra de Israel e não se rebelar contra as outras nações. E para as outras nações: não subjugar excessivamente os judeus. Ao se rebelar contra esse pacto, os rabinos ortodoxos do Neturei Karta afirmam que os sionistas estão se rebelando contra Deus. Organizações como o Neturei Karta, o Edah HaChareidis e outros, em Israel e no exterior, geralmente pertencem à segmentação filosófica Haredi , na qual rejeita a participação na política.

Após a “independência” de Israel, o judaísmo Haredi se caracterizou por sua oposição ao sionismo e ao estabelecimento do Estado de Israel; em sua maioria não celebram Yom Ha’Atzmaut (Dia da Independência de Israel) ou quaisquer outros feriados instituídos pelo estado. Os seguidores do judaísmo Haredi que não se consideram sionistas se enquadram em dois campos: não-sionista e antissionista.

Antissionista: que constituem a minoria, acreditam que qualquer independência judaica antes da vinda do Messias é um pecado. Não-sionista: se opõem a Israel como um estado judeu independente, os que o consideram positivo não acreditam que tenha qualquer significado religioso.

Embora sejam minorias presentes no Estado de Israel, os judeus antissionistas e não sionistas não pertencem aos principais partidos políticos, naturalmente, não possuem o apoio em números para eleger um governo majoritário porque devido à Lei de “retorno” de 1950 que deu o direito de qualquer pessoa do mundo, mesmo que não seja judeu ou religiosa, retornar para onde nunca esteve. Lastimavelmente, o mesmo direito não se aplica aos 5,8 milhões de refugiados palestinos que esse sistema de limpeza étnica promove há pelo menos um século. Desta maneira, o direito de retorno para Israel é tão incompatível com sua alegação, quanto o sionismo é incompatível com o judaísmo.

Caminhamos pelo bairro muçulmano, comemos o melhor falafel do mundo. Conversando com o palestino que preparou nosso falafel e nos recebeu com característica hospitalidade, falei que fomos impedidos de entrar na Esplanada das Mesquitas. Ele nos convidou a acompanhá-lo no dia seguinte, mas, infelizmente os palestinos não podem entrar na esplanada no mesmo horário que os turistas. Uma maneira que Israel encontrou para violar os direitos humanos dos palestinos sem cometer o erro de um tiro perdido atingir um turista.

Seguindo nossos planos caminhamos pela Via Dolorosa . Entramos em cada igreja que marca os principais pontos do percurso de Jesus para a crucificação. De todo trajeto o ponto que mais nos impressionou foi o calabouço onde Jesus foi encarcerado após ser condenado por Pilatos. O local é sombrio e claustrofóbico, mas de uma forma inexplicável (pelo menos para um ateu), causa uma certa sensação de conforto. No momento que entramos nesse calabouço que hoje é uma igreja, estava acontecendo um culto ortodoxo. Alguns poucos cristãos entonavam um cântico (talvez em grego) que acabou dando tom à visita. Descemos até o subsolo. A aparência de caverna muda completamente e a sensação de conforto dá lugar ao sentimento de agonia. Em uma das celas escavadas na rocha vimos um altar de pedra com dois buracos, acima uma imagem de Jesus sentado com as pernas presas naqueles buracos. Estávamos sozinhos nesse momento, apesar de estar abaixo do solo podíamos ouvir o som dos cânticos de oração. A Di acendeu uma vela e subiu rapidinho. Não ficamos muito por ali e resolvemos seguir em frente.

Finalmente chegamos à Basílica do Santo Sepulcro, onde Jesus foi sepultado e ressuscitou. A igreja estava lotada. A cotoveladas, cristãos de todos os cantos do mundo disputavam os centímetros da basílica, em particular, o Altar da Crucificação e a Pedra da Unção. Ortodoxos, católicos apostólicos romanos, coptas e outros – cada qual a seu modo – entoam orações e cânticos. É difícil caminhar pela Igreja, afinal este local é considerado sagrado por todas as vertentes do cristianismo. Romanos, ortodoxos gregos, ortodoxos orientais, protestantes e há ainda os muçulmanos e, ateus como eu, todos juntos dividindo suas orações, rituais, crenças e fé.

Nesta igreja há uma cerimônia específica a qual me interessei muito. O patriarca ortodoxo, sob os olhos atentos de autoridades judaicas, para garantir que não haja nenhum artifício de combustão, adentra sozinho no Santo Sepulcro. O sacerdote aguarda quieto na antecâmara – no mesmo lugar onde o anjo esperou Maria Madalena para lhe revelar a ressurreição – e sai apenas quando as 33 velas se acendem espontaneamente. Durante o milagre, no “Sábado de Aleluia” do ano passado, um dos dias mais santos para o cristianismo, o governo israelense solicitou as autoridades das Igrejas Católica Romana, Católica Ortodoxa e Apostólica Armênia que restringissem o número de visitantes e peregrinos à Igreja do Santo Sepulcro durante o feriado. Os policiais israelenses tentaram dificultar o acesso da multidão e houve conflitos do lado de fora do local do sepultamento de Jesus, mas, após horas de espera, o Patriarca de Jerusalém conseguiu realizar a cerimônia do Fogo Santo e abriu os portões aos fiéis. Líderes palestinos no Knesset disseram que o Primeiro-ministro Naftali Bennett e Omer Ber-Lev, Ministro do Interior, estavam cometendo uma “violação flagrante à liberdade de culto” e iniciando um novo capítulo contra palestinos. A Igreja do Santo Sepulcro é uma experiência única na vida. Não sei se existe outro lugar no mundo com tanta concentração de pessoas que acreditam em dogmas diferentes acendendo uns as velas dos outros e repassando-as pela multidão.


“Impossível não se emocionar no local mais importante do cristianismo. Na Igreja do Santo Sepulcro, onde pude sentir com as mãos e coração a santíssima Pedra da unção, a pedra memorial do ritual judaico, onde foi realizada a unção de Jesus Cristo antes do seu enterro. Não sei como expressar o sentimento de entrar nessa igreja.” Diana Emidio

Contando assim, parece que a Terra Santa é um paraíso de respeito ecumênico onde as religiões convivem em harmonia. Já foi, mas hoje está bem longe de ser, principalmente para os muçulmanos e cristãos que vivem aqui. Há anos, a Esplanada das Mesquitas e a Igreja do Santo Sepulcro e outros templos na cidade são alvos de extremistas sionistas. Em uma dessas incursões contra a Mesquita Al-Aqsa, Ariel Sharon – mais tarde, primeiro-ministro israelense – Invadiu o complexo com soldados armados para realizar rituais judaicos. O episódio deflagrou a Segunda Intifada, revolta civil da população palestina contra a ocupação sionista, entre os anos 2000 e 2005. Com o tempo os ataques israelenses se tornaram cada vez mais frequentes e violentos; mortos e feridos se acumularam. No ano passado, soldados israelenses trancaram centenas de pessoas – palestinos muçulmanos – na Mesquita de Al-Aqsa, estilhaçaram seus vitrais e, dali, dispararam bombas de gás lacrimogêneo em seu interior, deixando centenas de pessoas intoxicadas pela inalação de gás. Mas as agressões, como disse, não foram destinadas somente aos muçulmanos. Extremistas judeus também queimam, picham e depredam igrejas cristãs. A sede da Igreja Ortodoxa Grega em Jerusalém foi vandalizada com as palavras “Jesus é um lixo”. No norte do território, local que foi ocupado por Israel em 1948, a igreja onde Jesus realizou o milagre da multiplicação dos peixes foi incendiada duas vezes.

Em 2022 os ataques foram tantos que muçulmanos fizeram um cordão de isolamento para que cristãos pudessem realizar sua tradicional procissão de Páscoa. Na mesma época, quando os ataques à Esplanada das Mesquitas se tornaram mais comuns e agressivos, os patriarcados das diferentes congregações cristãs também se uniram em defesa de Al-Aqsa. Até mesmo o Papa Francisco se pronunciou, ao defender o direito de todos os palestinos (cristãos e muçulmanos) de acessar aos seus lugares sagrados em Jerusalém ocupada.

Conhecer um pouco das religiões e transitar por Jerusalém é encantador mesmo para um ateu. No entanto, saber sobre os atos de violências e as violações aos direitos à liberdade de pensamento, consciência e religião (Art. 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos) é repugnante.

Jerusalém foi declarada uma cidade santa pertencente a todas as religiões. Seria bom se fosse! Em 1980, o Estado de Israel ignorando o status de corpus separatum promulgou uma lei declarando Jerusalém “completa e unida” como Capital de Israel. Tomando à jurisdição e administração de toda cidade, incluindo as partes árabes. O Conselho de Segurança das Nações Unidas declarou que a aquisição de terras árabe-palestinas a força era inadmissível e uma violação ao direito internacional. Em resposta a ONU aprovou a Resolução 478 que além de não reconhecer Jerusalém como capital de Israel, exortava os estados-membros a retirarem suas missões diplomáticas da cidade. Todos os estados-membros da ONU aprovaram a resolução, com exceção dos EUA que se absteve. Para piorar, em 2018, novamente o Knesset aprovou outra lei, esta declarava que Israel era um Estado Judeu.

Procurando pela Terra Santa, andamos pelo mesmo caminho que Jesus fez para crucificação. No fim do dia, ao chegar ao Jardim do Getsêmani e o Monte das Oliveiras, local que Jesus costumava falar com Deus, víamos o Domo Dourado da Esplanada das Mesquitas e também o cemitério judaico, três locais sacros para três religiões distintas. Percebi que a Terra Santa que procurávamos, só pode ser verdadeiramente Santa quando todas as religiões desfrutarem dos mesmos direitos à liberdade de pensamento, consciência e religião, bem como “a liberdade de manifestar essa religião ou crença pelo ensino, pela prática, pelo culto em público ou em particular.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos)


A MESQUITA AL-AQSA

Jerusalém, 22 de janeiro de 2023


Conseguimos entrar na Esplanada das Mesquitas, na cidade ocupada de Jerusalém. Não pudemos acompanhar os palestinos no mesmo horário, como gostaríamos. Porém, entramos. O que acontece na Palestina sob ocupação militar israelense não é uma guerra religiosa – como nós brasileiros tendemos a acreditar. O que acontece é ocupação e colonização sionista, cujo termo mais inteligível sobre os fatos talvez seja apartheid.

Passamos por soldados israelenses fortemente armados que controlam a entrada da Esplanada das Mesquitas. Enquanto a mochila com os passaportes passava pelo raio X, éramos revistados por tropas policiais da ocupação israelense. Como se já não fosse estranho que colonos judeus controlem o acesso a um local islâmico, um deles me perguntou ainda por que eu queria visitar o “Monte do Templo” já que eu mesmo não sou muçulmano. Pensei em responder: “Pelo mesmo motivo que visitei o Muro das Lamentações sem ser judeu, o rio Ganges sem ser hindu, ou a Basílica do Santo Sepulcro sem ser cristão”. No fim das contas achei melhor evitar confusão e indagar apenas “por que não?”, e o soldado tampouco quis se estender.

Para acessar à Esplanada das Mesquitas, cruzamos por uma passarela de madeira improvisada por cima do Al-Buraq, ou muro externo da Esplanada, – provavelmente você deve conhecer melhor se disser, Muro das Lamentações.

Em 2021, logo no primeiro dia do período do Ramadã, época que os muçulmanos de todo mundo se reservam em observação da fé, o Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu autorizou a invasão do complexo da Esplanada das Mesquitas onde se encontra a mesquita Al-Aqsa. Nesse período os muçulmanos se reservam à prática da “maior Jihad”, expressão que ressalta a importância do fiel em elevar seu espírito acima de suas próprias vontades, através da observação de práticas religiosas que compreendem caridade, fraternidade, estreitamento dos laços familiares, leituras corânicas individuais ou em grupo e, o mais importante, o jejum praticado desde o alvorecer e encerrado com entes queridos ao se pôr de cada dia. Com o ataque autorizado, os policiais arrombaram as portas do minarete e cortaram os fios dos alto-falantes, reprimindo o chamado para oração noturna. Os muçulmanos também foram impossibilitados de distribuir as refeições de quebra do jejum. Conforme o Reino da Hachemita da Jordânia, que detém a custódia como parte de um acordo bilateral e é responsável pelo controle e segurança do local, o ataque à mesquita foi uma violação grave ao direito internacional de liberdade de religião dos muçulmanos.

Após a profanação do local que é restrito aos muçulmanos, o Sheikh Muhammad, Grande Mufti de Jerusalém pediu aos religiosos de todo o mundo para interceder contra as violações praticadas contra os muçulmanos e a mesquita Al-Aqsa. A fim de repelir mais ataques contra o local ele também pediu a intensificação da presença dos palestinos na mesquita. Muçulmanos atenderam ao chamado, assim como árabes-cristãos que prestaram sua solidariedade.

Os ataques não foram repelidos, continuaram ao longo do mês gerando ainda mais manifestações. Cristãos juntaram-se aos muçulmanos em defesa da mesquita. Na investida contra as manifestações populares e suas repercussões internacionais, o governo israelense, alegando contenção do avanço da covid-19 proibiu milhares de palestinos da Cisjordânia de entrarem no complexo da Esplanada das Mesquitas.

As agressões durante o Ramadã de 2021 se repetiram em 2022, ainda com mais violência. Dias antes do de iniciar o mês sagrado, grupos judaicos publicaram um chamado nas redes sociais convocando os judeus para invadirem a mesquita durante o feriado de Páscoa e oferecer sacrifícios animais. Os muçulmanos pediram para que organizações de países árabes se manifestassem para evitar a profanação. Novamente policiais do governo de Israel invadiram a esplanada disparando balas de borracha, granadas de gás, e agredindo os fiéis com cassetetes. Aproximadamente 30 mil muçulmanos estavam presentes naquela manhã, mais de 400 pessoas foram presas por tentar defender a mesquita e a liberdade de culto. Segundo as autoridades israelenses os palestinos fizeram um cordão de isolamento para impedir o avanço das forças policiais, a polícia informou que os palestinos na barricada estavam armados com fogos de artifício.

Mas tudo isso aconteceu longe dos olhos dos turistas, já que é proibido entrar na Esplanada das Mesquitas no mesmo horário que os palestinos. De certa maneira os turistas também são intimidados. Assim que entramos no pátio da Esplanada, por um ato automático, dei a mão para Di. No Islã não existe nenhuma regra para que um casal não dê as mãos; contudo, um dos policiais – faço questão de reforçar, israelense e não-muçulmano – nos repreendeu grosseiramente. De modo algum queríamos desrespeitar qualquer local sagrado, religião ou aqueles que a praticam, mas achamos absurdo que alguém tão estrangeiro como nós, que tampouco pertence àquela fé, nos chamasse a atenção enquanto muçulmanos que caminhavam ao nosso lado não se mostravam nada ofendidos. Percebemos que a forma com que os israelenses gritam com as pessoas serve justamente para constranger os visitantes, a fim de oprimi-los para que logo se retirem do local. Sendo assim, a mera permanência apesar do assédio a todo momento é uma maneira de resistir e demonstrar solidariedade à causa palestina – e assim o fizemos.

Em frente ao Domo da Rocha paramos para fotografar. A Di levou um lenço com tramas preto e branco semelhante – e apenas semelhante – ao keffiyeh palestino, mas estava tão quente que ela o amarrou na mochila. Eu lhe pedi para que fizesse uma foto minha, cerrei o punho em sinal de resistência, como fez Nelson Mandela e o Congresso Nacional Africano (CNA) contra o regime de apartheid na África do Sul; como fez Malcolm X na luta contra as leis segregacionistas nos Estados Unidos; e como nós brasileiros fazemos contra o racismo em nosso país. Imediatamente outro policial gritou comigo para me coibir de uma foto ali em “pose de resistência”. Fingi não escutar e ele repetiu seus berros umas três vezes, mas permaneci até que a Di tirasse a fotografia. Em português, pedi a Di que preparasse outro retrato, olhei para o policial, pedi desculpa como se nada tivesse acontecido e mudei de pose: agora com os dedos em “V” de vitória – em alusão à pose tradicional de Yasser Arafat e dos palestinos que lutam contra a ocupação sionista. Posso imaginar o que passou pela cabeça daquele soldado, mas não esperamos para saber e seguimos a visita.

Ainda na Esplanada caminhamos até a Mesquita Al-Aqsa. Sabíamos, claro, que não permitiriam a nossa entrada – mesmo assim, tentamos. Outro soldado saltou a frente. Chega a ser cômico como pensam que somos todos surdos, porque mesmo a uma distância de um braço, aquele homem achou que era imprescindível gritar. O “bem-educado” insistiu que a passagem ali era autorizada apenas aos muçulmanos. Novamente pensei: “Então, o que faz aqui um israelense judeu?”. Por óbvio, caso assim respondesse, a visita seria cancelada e seríamos retirados à força do local. Adotamos novamente a cara de “turista idiota” para evitar um confronto que não venceríamos.

Vamos novamente esclarecer uma coisa para reforçar a ideia. Quando me refiro a “israelenses judeu”, o faço, pois é justamente a maneira como escolheram para descrever o Estado autoproclamado, a mesma maneira que usam para discriminar a própria população.

Jerusalém é pauta principal nas negociações entre israelenses e palestinos. Ambos reivindicam a cidade como capital de seu Estado. Em 29 de novembro de 1947 a Organização das Nações Unidas (ONU) recomendou que todo o território – a Palestina histórica, antes sob Mandato Britânico – fosse dividido em dois: um lado para os judeus, outro para os árabes (muçulmanos e cristãos). A mesma resolução (181) recomendou ainda que Jerusalém ficasse como corpus separatum, ou seja, administrada pela ONU sob regime internacional. A recomendação da partilha deu vazão para que imigrantes europeus se assentassem na Palestina, incluindo Jerusalém, expulsando a população nativa e executando aqueles que resistissem. O processo culminou na criação do Estado de Israel em maio de 1948, evento conhecido em árabe como Nakba ou “catástrofe”, cujos esforços de limpeza étnica resultaram na então expulsão de 800 mil palestinos de suas casas.

Com mais da metade da Palestina tomada a força em 1948, faltava pouco para obter controle total do território. Durante a guerra de 1967, os israelenses ocuparam o que faltava, obtendo controle de toda Palestina, incluindo a cidade de Jerusalém, e também de países vizinhos como: Síria, Líbano, Jordânia e Egito. Com toda região sob controle israelense, o próximo passo era expulsar a população palestina e judaizar integralmente a cidade. Este processo é parte da limpeza étnica que Israel promove até hoje em toda a Palestina, incluindo esforços para apagar ou eliminar a identidade cristã e islâmica da cidade sagrada.

Em 1980 Israel anexou toda Jerusalém, ao declará-la capital de Israel. A ONU voltou a protestar e reiterou através da Resolução 476 que toda e qualquer anexação era ilegal segundo o direito internacional. Mesmo sob as notas de repúdio da comunidade internacional, Israel manteve sua tomada à força do território palestino. Em 2018 uma nova lei aprovada pelo Knesset israelense (parlamento) definiu o país como exclusivamente judaico e reafirmou sua reivindicação ilegal sobre Jerusalém como suposta capital.

Tudo que relatei trata-se de um resumo, grosso modo, das atrocidades cometidas para chegar ao resultado que presenciamos na Cidade Santa. Essas agressões mencionadas não foram exclusivas. A organização Rabbis for Humans Rights (Rabinos para Direitos Humanos) denunciou 43 ataques contra igrejas, mesquitas e mosteiros em Israel, Cisjordânia ocupada e em Jerusalém Oriental somente no período de 2009 a 2015. A situação se agravou em 2022 devido à coincidência no calendário das três religiões monoteístas, tornando um dos anos de maior violência. Estima-se que durante o período do último ramadã, mais de 3.600 judeus invadiram o complexo da Esplanada das Mesquitas em 23 ataques diferentes. Embora a questão seja política, de caráter colonial, o papel da religião tem de ser esclarecido, até porque os documentos de identidade de Israel especificam a religião de seus cidadãos a fim de discriminá-los.

No entanto, criticar as políticas coloniais de Israel não equivale a antissemitismo . Sabendo que comentários posteriores às atrocidades do Holocausto nazista e dos pogroms perpetrados na Europa poderiam soar como discriminação antijudaica, o sionismo se apropriou deste argumento para difamar os opositores a suas práticas de apartheid. É deste mesmo modo que se “justifica” que um policial israelense não-muçulmano controle quem entra e sai de um lugar sagrado para o islamismo – e até mesmo como se posa para as fotos naquele local.


O MURO DO APARTHEID

Ramallah, 23 de janeiro de 2023

Ir e vir é um direito inerente a todo ser humano, pelo menos é o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos . Há um ano estávamos em um sebo na cidade de Santos planejando com Jehad a nossa viagem para Palestina. Ontem, quando vimos pela primeira vez o muro do apartheid e cruzamos pelo nosso primeiro checkpoint , vimos um pouco do que Jehad enfrentou boa parte de sua vida.

Saindo de Jerusalém subimos em um transporte público em direção à Ramallah. Mesmo se optássemos por um táxi, seria uma dor de cabeça encontrar um que pudesse atravessar o checkpoint. Os motoristas e carros com placas de Israel preferem não circular pela Palestina, mesmo que o único impedimento para isso sejam enormes placas vermelhas indicando (em três idiomas) que os palestinos são uma ameaça às suas vidas; – Nem preciso dizer quem é a real ameaça aqui, né! Já os motoristas e carros com placas palestinas, a maioria, não pode trafegar pelas ruas do estado israelense. Sendo assim o ônibus foi a melhor opção.

Quando chegamos perto do muro vimos que aquela aberração não serve ao propósito de “segurança”, ele serve para oprimir e humilhar o povo palestino. Chegando ao primeiro checkpoint vimos soldados fortemente armados, uns escondidos atrás de barreiras de concreto, outros parando indiscriminadamente os motoristas; fossem homens, mulheres ou idosos. É desesperador ver um jovem soldado humilhando um senhor que bem poderia ser seu avô. É imensurável o número de casos de assassinatos e outras violações cometidas nesses muros e checkpoints. Às vezes os soldados costumam fechar um ou outro, uma forma de punição coletiva que obriga os motoristas a esperarem horas na estrada ou mudar seu caminho para um destino mais longo. Gostaria de filmar e fotografar aquela cena vulgar, mas estávamos em um transporte público e acabei recuando com medo de prejudicar os palestinos que estavam no ônibus.

Foi assistindo aquela depravada composição que aprendemos que o lindo conceito iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade só serve aos propósitos do colonizador. Isso serve para assimilar que aqui o direito de ir e vir não se aplicava ao Jehad como se aplica para nós, mesmo sendo ele filho dessa terra e nós, tão estrangeiros quanto aqueles soldados armados.

Este muro expõe de forma nua e crua a face de um regime racista e assassino. Vou tentar explicar sobre a construção deste muro de forma simples.

Imagine que você mora em um bairro muito próximo ao bairro onde moram seus pais, amigos, até mesmo o amor de sua vida. Seu pai possui um lote de terra que usa para plantação próximo à sua casa. Suas verduras ajudam a sustentar sua família. Você trabalha ou estuda bem perto, a 200m da sua casa. Um dia você acordou e encontrou um papel colado no poste, por estar em outro idioma, você não conseguiu ler o que estava escrito e, ainda pior, estava escrito em japonês, com caracteres que você nem conhece. Imagine agora que de uma hora para outra, o prefeito da sua cidade decide classificar o seu bairro como um perigo para o bairro onde mora sua família, seus amigos, e seu amor. No mesmo bairro que você e milhares de outras pessoas estudam ou trabalham. De repente você acorda um dia para trabalhar e encontra em frente à sua casa um muro de concreto com 8 metros de altura separando o seu bairro do restante do mundo. Para ir ao trabalho ou ver as pessoas que ama você precisa ir até uma passagem controlada pela polícia, não obstante, você ainda precisa ter uma autorização prévia emitida pelos militares para poder atravessar. Para agravar a situação, o posto policial mais próximo fica a 20 quilômetros da sua casa. Aqueles 200 metros até o trabalho, que antes você faria a pé, se tornou uma viagem de 40 km para ir e mais 40 km para voltar. Você descobre que aquele papel no poste era um comunicado oficial avisando sobre a construção do muro e dando sete dias para os moradores recorrerem da decisão na justiça. Outro detalhe, seu pai “já senhor”, deveria fazer o trajeto inverso ao seu, e nem poderia ir e vir para sua própria plantação, pois, para os agricultores o portão só é aberto duas vezes por dia, uma vez para entrarem e outra para saírem. Este cenário parece bizarro para você? Foi exatamente o que Israel fez nas aldeias de Chiyah, El-Azariyeh e Ras al-Amud em 2002, e que agora se estende por mais de 700 km por dentro da Palestina.

Em 2001 o Primeiro-ministro Ehud Barak (Partido Trabalhista) apresentou ao Knesset essa proposta de segurança para a população israelense.

Sua ideia consistia em uma barreira entre os territórios palestinos e israelenses, as obras foram iniciadas pelo sucessor Ariel Sharon (Likud). Ao sul do monte das Oliveiras, as vilas de Chiyah, El-Azariyeh e Ras al-Amud, perto de Jerusalém, foram os primeiros a presenciar a construção do que os palestinos batizariam não muito depois de “O Muro do Apartheid”.

– Sabe o que incomoda muito? – Todas às vezes que se fala de muros e violações ao direito de ir e vir, o muro de Berlim é evocado. Vez ou outra alguém diz na televisão que precisamos construir mais pontes e menos muros, e a imagem que aparece é sempre a da queda do muro de Berlim, uma visão quase romântica da tragédia alheia. – Por que nunca vemos falar de opressão usando as imagens de um Muro que está de pé? O muro de Berlim tinha 4,2m de altura e 155km de comprimento; já o muro israelense chega a 9m de altura e sua extensão é quase 7 vezes maior. – Não seria esse um ativismo dissimulado? – Por que não damos nomes as coisas como elas realmente são? Como o mundo comemora a queda do muro de Berlim enquanto permite que Israel continue construindo muros dentro do território palestino? – Por que não usamos o muro que está de pé para ilustrar o que significa a subjugação de um povo pelas mãos de um regime racista e opressor que também continua de pé?

Nosso amigo Jehad é um palestino cujos avós foram expulsos de suas casas durante a Nakba. Há alguns anos ele vive e trabalha no Brasil. Quando estávamos nos organizando a respeito desta viagem percebemos como é obsceno como o Estado de Israel viola o direito de ir e vir dos palestinos diante dos olhos da comunidade internacional, que assiste essas e outras violações de camarote.


“Sabemos muito bem que a nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos.” Nelson Mandela

Como brasileiros, não havia nada que nos impedisse de comprar um voo direto para Tel Aviv (território que Israel roubou da Palestina logo nos primeiros anos de ocupação sionista), assim o fizemos. Compramos uma passagem de Istambul direto à Tel Aviv. Já para o Jehad, que assim como seus pais e avós, nasceu na Palestina, a viagem não poderia ser feita dessa maneira. Como palestino, ele não tem liberdade para entrar no território que Israel roubou para sua capital, posto isto, seu acesso ao aeroporto Ben-Gurion não existe. Jehad, como todos os outros palestinos do mundo, para entrar em seu próprio país teria que pegar um voo até a Jordânia e de lá atravessar pela fronteira terrestre com a Palestina, que também é controlada pelo exército israelense.

– Por que Jehad não pega um avião direto para Palestina? – Porque o único aeroporto na Palestina, que ficava na Faixa de Gaza, foi bombardeado em 2014; qualquer outro aeroporto que os palestinos construíssem após, também seria bombardeado.

Graças a violação do Direito de ir e vir, não poderíamos entrar todos juntos na Palestina. Nosso amigo, mesmo sendo palestino, não tem autorização para circular nos territórios ocupados por Israel. No fim das contas, acho que pensando em toda a dificuldade e o gasto muito maior para se chegar até a casa de seus pais, ele decidiu ficar no Brasil.

Atualmente Jehad está em processo de conseguir a cidadania brasileira, o que não quer dizer que poderá entrar em Israel, mesmo que pudesse, Jehad é um palestino consciente da ocupação de seu país e jamais aceitaria qualquer favorecimento que indicasse sua aceitação ao Estado de Israel.


“Eu jamais aceitaria qualquer coisa de Israel, porque se eu aceitar, isso quer dizer que aceito a ocupação deles na minha terra, e isso eu me recuso. Mesmo que eu pudesse usar o aeroporto Ben-Gurion, não usaria, isso seria uma traição à memória dos palestinos como meus pais e meus avós.” Jehad Afaghani


Para o amigo Jehad!


HEBRON, CIDADE DE ABRAÃO

Al-Khalil, 24 de janeiro de 2023


Um dos lugares mais esperados para conhecermos na Palestina histórica era Hebron (Al-Khalil), na Cisjordânia ocupada, cidade onde o profeta Abraão se estabeleceu conforme a tradição das três grandes religiões monoteístas fundadas na região.


“E Abraão mudou suas tendas, e foi, e habitou nos carvalhais de Manre, que estão junto a Hebron; e edificou ali um altar ao Senhor.” Gênesis 13:18

Sabendo que Hebron é uma das cidades palestinas que mais sofre com restrições e ataques das IOF, decidimos ir quanto antes para não arriscar ir embora sem antes vê-la. Saímos do centro de Ramallah em uma van local. A paisagem seria uma das mais lindas, não fosse pelo muro do apartheid, que separa os palestinos em sua própria terra. Alguns garotos sentados atrás de nós, com uma dificuldade tão grande quanto a nossa de falar inglês, arriscaram um “where are you from?”. Essa foi a deixa para começar um diálogo que se estendeu por mais de uma hora com ajuda do Google tradutor. A viagem duraria bem menos caso não houvesse tantos checkpoints israelenses atrapalhando o trânsito.

Um dos garotos palestinos, W., se mostrou extremamente interessado em saber sobre o que dois brasileiros estavam fazendo em uma van amarela rumo a cidade de Hebron. Expliquei que queria escrever e fotografar a situação no país, para que outros brasileiros soubessem um pouco mais sobre a Palestina e como vive seu povo. Minha resposta deixou W. e os outros ainda mais interessados em compartilharem suas histórias e seus problemas cotidianos.

A certa altura da conversa, os idiomas inglês, árabe e português pareciam um só. Falávamos um idioma universal e a única barreira que tínhamos era o muro ao nosso redor – por sinal, nosso assunto principal. Os jovens palestinos nos mostraram o quão perto Jerusalém é de Hebron, mas que devido ao muro, se torna tão longe, e por vezes, inalcançável. W. nos contou que seus documentos foram apreendidos por soldados israelenses depois de ter sido agredido na porta de sua casa. Justamente por não possuir os documentos, precisa pular o muro para chegar a Jerusalém e orar na Mesquita de Al-Aqsa – entrada clandestina na capital de seu próprio país. W. chegou a nos mostrar o ponto onde ele e os amigos costumam pular o muro. – Gostaria de lembrar, centenas de palestinos já foram baleados, ou mesmo mortos, na tentativa de transgredir essa barreira imposta pelo apartheid israelense.

A ocupação israelense na Palestina, sobretudo na cidade de Hebron, é deveras complexa. Tento resumir a seguir. Os Acordos de Oslo entre israelenses e a Autoridade Palestina determinaram que o território da Cisjordânia seria dividido, em tese, em zonas A, B e C: Área A sob administração completa da Autoridade Palestina; Área B, mista entre Autoridade Palestina e o Estado de Israel; e Área C, sob administração completa do estado de Israel. Na prática nada disso deu certo, enquanto os palestinos cediam às concessões acordadas, soldados e colonos sionistas continuaram a tomar e ocupar terras palestinas, muito embora seja considerado ilegal pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela maior parte da comunidade internacional.

Hebron recaiu entre a Área B e a Área C. Os assentamentos ao redor da cidade abrigam uma das comunidades judaicas mais extremistas e violentas instaladas em terras palestinas: Kiryat Arba. Com uma população de oito mil israelenses essa comunidade serve como posto avançado do exército israelense dentro da Palestina, onde soldados podem exceder até mesmo o número de colonos – também fortemente armados.

Assim que chegamos, W. se ofereceu para ser nosso guia. Nos convidou para comer falafel e tomar chá – quando fui pagar a conta, W. já havia feito. O jovem de 19 anos nos convidou para conhecer sua casa e sua mãe e ficou bastante surpreso e satisfeito quando concordamos. Da casa de nosso anfitrião foi possível ver toda a cidade de Hebron e como as bandeiras israelenses tremulam no topo das bases militares espalhadas pela cidade palestina. Depois de tomarmos um café com W. e sua mãe, caminhamos por entre as oliveiras centenárias até a Cidade Velha. Cruzamos com alguns soldados pelo caminho. Para nosso novo amigo o risco de que algum daqueles soldados o prendesse por não ter seus documentos era enorme, então ele caminhou conosco apenas até certo ponto da Cidade Velha.

Passando por alguns checkpoints, com grades, roletas, câmeras de vigilância e soldados armados até os dentes, chegamos à rua do mercado velho – um dos maiores do Oriente Médio, em uma das cidades mais antigas do mundo – o qual evidencia a face hedionda da ocupação. A constante presença do exército israelense, a humilhação e a violência que estes causam aos palestinos, tudo isso levou muitos comerciantes a se retirarem do local, motivo pelo qual muitas lojas permanecem vazias até hoje. As lojas que resistiram abertas possuem uma tela de proteção como cobertura para evitar que o lixo jogado de cima pelos colonos atinja trabalhadores e suas mercadorias exibidas na rua. Manter o comércio nessas condições, olhando para cima daquelas telas e vendo aquele monte de lixo acumulado sobre suas cabeças é revoltante e me fez pensar: Que tipo de ser é capaz de jogar lixo em pessoas que estão tentando sustentar suas famílias? Ou como nomear alguém que atira ovos, urina e fezes em cima dos outros?

Olhando para os velhos com seus keffiyehs pela rua do mercado, ou para os comerciantes mais jovens, tive a sensação de que trabalhar naquele mercado e naquelas condições é a mais pura maneira de dizer para ocupação israelense que a resistência palestina permanece viva e forte. Como W. nos disse, “cada vez que os israelenses demolem uma casa, eles abastecem com pedras a resistência palestina.”

Sob a mira dos fuzis que só são abaixados quando a câmera de um estrangeiro se levanta, sentimos um pouco do medo de que as crianças palestinas sentem todos os dias para ir à escola, como um grupo que vimos a nossa frente. A ocupação é o nível mais baixo da podridão humana, Hebron é a cidade que evidencia essa faceta.

Após cruzar o mercado, passando pela rua dos mártires, chegamos a nosso destino: o Túmulo dos Patriarcas, conhecido em árabe como Mesquita Abraâmica. Esse complexo religioso, abriga o Túmulo de Abraão e o local de sepultamento de seus filhos e esposas. Trata-se de um lugar sagrado para as três religiões monoteístas, já que Abraão é considerado o “pai de todas as nações”. Esse templo, não obstante, guarda uma memória ainda mais cruel do que o arremesso de lixo que presenciamos no caminho.

Em 1994, logo após a divisão dos territórios, o supremacista americano judeu e naturalizado israelense, Baruch Goldstein entrou armado na mesquita e esperou até que os muçulmanos se prostrassem com as cabeças no chão, em posição de prece, para disparar contra eles. Goldstein assassinou 29 palestinos e baleou outras 125 pessoas. O atentado desencadeou uma série de respostas e tréplicas.

O atentado terrorista do americano-israelense visava afetar as negociações de paz entre a Autoridade Palestina e o governo do Estado de Israel. A situação que já estava ruim, pioraria e muito. No ano seguinte, o Primeiro-ministro Rabin participou de uma manifestação em massa na Praça dos Reis de Israel (agora Praça Rabin) em Tel Aviv, organizada para promover a paz entre israelenses e palestinos, mediante aos Acordos de Oslo. Quando a manifestação terminou, Rabin desceu os degraus da prefeitura em direção à porta aberta de seu carro, momento em que Yigal Amir – outro israelense que discordava da paz com os palestinos – disparou três tiros assassinando o Primeiro–ministro.

Com Rabin assassinado estava posto também uma pedra sobre as negociações de paz com os palestinos. Nenhum dos Primeiros–ministros que sucederam a Rabin optaram por negociações com a Autoridade Palestina.

Instalado o caos, os sionistas impuseram uma nova subdivisão a uma cidade já dividida. Hebron seria novamente segmentada em zonas H1 e H2: um lado para os muçulmanos, outro para os judeus. O mesmo foi imposto ao Túmulo dos Patriarcas.

Estar em Hebron e ver com os próprios olhos o que é a colonização é ainda mais devastador do que podemos descrever. Antes de adentrar ao templo sagrado, um soldado que apontava um fuzil na altura de nossos estômagos me perguntou se eu carregava uma faca. Fiquei indignado, mas respondi obviamente que não. Passando pela catraca, uma outra soldada – de no máximo 20 anos – nos perguntou, da forma mais arrogante possível, o que iríamos fazer ali e qual era nossa religião. Gostaria do fundo do coração de dizer a verdade, ou no mínimo dar uma boa resposta, mas me fiz de idiota mais uma vez ao afirmar que sou cristão e insistir que Abraão estava na Bíblia.

No Túmulo dos Patriarcas, centenas de muçulmanos oravam e prestavam respeito ao mortuário daqueles que foram os primeiros personagens do monoteísmo. Contudo, a maioria ali presente era de estrangeiros, pois o Estado de Israel mantém seus cães de guarda na porta do santuário universal, não para garantir que outro Goldstein repita seu massacre, mas para reprimir e humilhar os palestinos – sobretudo as mulheres.

O que acontece em Hebron é indigesto, repugnante e faz qualquer um questionar a própria humanidade. Ainda hoje a cidade é um dos alvos mais atingidos pela ocupação israelense. Ano após ano, jovens como W. são agredidos e assassinados por colonos ilegais que vieram de qualquer parte do mundo para viver na Terra Santa; quando não, esses jovens são presos, torturados e assassinados pelos soldados israelenses. Como todos os outros templos e santuários reivindicados pelo Estado de Israel, a Tumba dos Patriarcas serve como uma desculpa religiosa para dar legitimidade ao que realmente os interessa: tomar e ocupar mais território.

Como alguém que não possui uma religião, não consigo compreender bem os limites da fé. Deixo para você leitor a pergunta: – Entrar armado em um templo e promover um massacre contra fiéis de costas e abaixados em oração tem algo a ver com religião? – Será que Deus seria conivente com tal crime?

Antes de ser assassinado por outro judeu, Rabin considerou que não ter fechados os assentamentos de Hebron, foi um de seus maiores erros políticos, ele chegou a se referir aos colonos como “câncer” para a sociedade israelense. Durante o governo Rabin, a maioria dos israelenses apoiava a retirada dos colonos de Hebron, a situação atual é bem diferente.

NABLUS

Nablus, 25 de janeiro de 2023


Pegamos uma van para Nablus. Durante o caminho, a Ruayda nos mostrou os mais variados estágios de construção de assentamentos ilegais na Cisjordânia . Os israelenses começam a construção pelo topo das colinas onde colocam pilhas de contêineres para dar início à ocupação. Geralmente, muros de contenção são construídos para dar “segurança” aos invasores. Seguindo o processo, casas são levantadas para dar lugar aos colonos. Conforme a ocupação avança, as construções descem as colinas para ocupar cada vez mais as terras palestinas. Pela janela da van, acompanhamos todos os processos da ocupação.

O caminho até Nablus levaria pouco mais de uma hora, mas, se locomover pela Palestina é uma missão que demanda paciência. Já estávamos há trinta minutos presos em um engarrafamento. Quando isso acontece, provavelmente é porque os soldados israelenses fecharam alguma rota. A todo momento os motoristas se comunicam entre si pelo celular, antes e durante cada viagem, se orientando para saber qual rota está liberada. Cansado de esperar e após ouvir uma bronca da Ruayda, o motorista resolveu voltar e seguir por outra estrada.

Após duas horas chegamos a Nablus, cidade localizada entre o Monte Ebal e o Monte Gerizim; é possível que você a conheça pelo nome bíblico de Siquem.


Veio uma mulher de Samaria tirar água. Disse–lhe Jesus: Dá–me de beber. Porque os seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. Disse–lhe, pois, a mulher samaritana: Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? (porque os judeus não se comunicam com os samaritanos). Jesus respondeu, e disse–lhe: Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o que te diz: Dá–me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva. Disse–lhe a mulher: Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? És tu maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, bebendo ele próprio dele, e os seus filhos, e o seu gado? Jesus respondeu, e disse–lhe: Qualquer que beber desta água tornará a ter sede;Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna. João 4:7–14

As citações bíblicas referentes a esta cidade, como todas as outras, servem como justificativa, ou melhor, “desculpa” para a ocupação israelense. Diariamente canais como o RamallahMix e o Eye.on.Palestine divulgam a violência dos soldados contra os moradores palestinos. Nablus é uma das cidades mais agredidas pela ocupação. Com toda a ocupação servindo como combustível, cresce no seio dessa comunidade também o apoio incondicional à resistência.

A “justificativa” para a invasão se faz, principalmente, apoiada na reivindicação pela Tumba de José . Santuário de importância para o monoteísmo, próximo ao Poço de Jacó. Por se tratar de um patriarca a tumba foi ao longo dos anos local de veneração dos judeus, cristãos e muçulmanos.

Não há nenhuma evidência arqueológica que estabeleça a tumba como legítima, até mesmo Rabin quando Primeiro-ministro israelense afirmou isso. Os estudiosos modernos afirmam que não existem fontes (judaicas ou cristãs) anteriores ao século V que determinam a veracidade da tumba.

Depois que Israel capturou a Cisjordânia em 1967, os muçulmanos foram proibidos de adorar no santuário e ele foi gradualmente transformado em uma sala de oração judaica. A ocupação trouxe muitos assentamentos israelenses para a cidade, estes que já mencionamos são vistos como ilegais pela ONU e a maioria da comunidade internacional, com ressalva, claro, dos Estados Unidos da América.

As reivindicações concorrentes de judeus e muçulmanos sobre a tumba tornaram-se frequentes. Embora tenha caído sob a jurisdição da Autoridade Nacional Palestina (ANP) após a assinatura dos Acordos de Oslo, permaneceu sob guarda das IOF. Na década de 1980 os israelenses edificaram um posto militar avançado – semelhante ao que existe em Hebron. Em 1997, os rolos da Torá foram trazidos, o nicho de oração voltado para Meca foi coberto e o local foi declarado uma sinagoga.

Nos últimos 20 anos, a Tumba de José serviu como palanque para reivindicação sionista. Atualmente, a cidade está sob jurisdição da Autoridade Palestina, mas a Tumba de José permanece sob controle das IOF, servindo como posto avançado para soldados e colonos lançarem suas incursões contra a cidade e os moradores de Nablus.

Andando pelas ruas do mercado da Cidade Velha, também marcado como um dos mais antigos do mundo, pudemos ver que o símbolo de resistência palestina permanece ativo entre os moradores que exibem faixas e homenagens aos mártires palestinos de várias épocas, incluindo os atuais como Ibrahim al-Nablusi; um combatente da resistência martirizado pelo exército aos 18 anos, tornando-se símbolo para a nova geração.

No ano passado, seu enterro foi acompanhado por milhares de pessoas. Na semana da morte de Nablusi, milhares de contas em redes sociais de jornalistas palestinos e ativistas internacionais foram bloqueadas por noticiar sobre o assassinado ou prestar homenagens ao mártir.


“Eu nem quero dar a eles minhas lágrimas. Ibrahim é um mártir, al-hamdulilah.” Mãe de Ibrahim.

Ibrahim Nablusi se tornou combatente da resistência tão cedo quanto sua própria morte. Seu assassinato foi divulgado como uma vitória para Israel contra o terrorismo. Te faço a pergunta: – Se Nablusi que lutava armado contra os soldados de uma ocupação colonial é considerado “terrorista”, por que os jovens que lutam contra os soldados na ocupação da Ucrânia são considerados heróis? Remontando ao passado, George Washington, Dom Pedro I, também lutaram por independência e nunca foram chamados de terroristas, mas sim de patriotas. O mesmo com Mahatma Gandhi e Nelson Mandela. Ah, quase me esqueci, como não eram brancos, eles também foram chamados de “terroristas”; assim como Nablusi.

Nablusi significa “da cidade ‘de Nablus’”. Ibrahim Nablusi nasceu em Nablus durante a Segunda Intifada, um dos períodos mais sangrentos na história palestina. Nablusi tinha o mesmo direito de se defender de qualquer um que lute contra uma ocupação estrangeira. Segundo Jhon Locke:


“À doutrina da legitimidade de resistência ao exercício ilegal do poder reconhece ao povo, quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção, o direito de recorrer à força para a deposição do governo rebelde aos interesses que lhe deram origem. O direito do povo à resistência é legitimo tanto para defender-se da opressão de um governo tirânico como para libertar-se de domínio de uma nação estrangeira.” Jhon Locke

Mas não nos baseamos apenas em um dos maiores filósofos da humanidade. O direito internacional reconhece o direito à autodefesa de uma nação contra uma ocupação estrangeira como parte do direito à legítima defesa. Este princípio está consagrado na Carta das Nações Unidas, que afirma o direito inerente de todos os Estados à autodefesa individual ou coletiva contra um ataque armado. Segundo o Artigo 51 da Carta das Nações Unidas estabelece o direito à legítima defesa está sujeito a certas limitações e requisitos, como a necessidade de que a resposta seja proporcional ao ataque inicial e que seja notificado imediatamente ao Conselho de Segurança da ONU. Além disso, o direito internacional reconhece o direito dos povos à autodeterminação, que inclui o direito à resistência contra ocupações estrangeiras.

Amparado pelo direito internacional de autodefesa, Nablus exporta heróis e uma rica cultura de grande importância para a cultura árabe. Todas suas contribuições podem ser encontradas no mercado da Cidade Velha, como a culinária, o vestuário típico, o artesanato e o famoso sabão “Nablusi”, feito com azeite de oliva virgem, exportado para o mundo todo como artigo de luxo.

Fomos até o hipódromo enquanto Ruayda fazia a aula do seu curso de doces. Sentamo-nos um pouco no parque próximo ao centro fervoroso da cidade. Assistindo as famílias passeando, crianças brincando em meio aos vendedores de milho e pipocas; a vida quase parece não ser afetada pela ocupação! De certa forma viver o mais normal possível é bem uma maneira de resistir à ocupação. É incrível que em Israel nos sentimos em um clima de tensão o tempo todo. A impressão é que as pessoas estão o tempo inteiro se preparando para “ataques terroristas”, parece que os israelenses não descansam nunca. Já para os palestinos vandalizados diariamente o clima é exatamente outro. Aqui as pessoas sorriem sem se importar com as dificuldades da vida, como se não tivessem medo da incursão que o exército israelense com certeza fará essa noite. Sorrir é resistir!

Ficamos pouco no parque, logo a Ruayda nos ligou para retornar e conhecer o chefe de cozinha especialista em doces palestinos. Ela disse que o chefe convidou suas alunas para um almoço e estendeu o convite para nós também. Levantamos e “picamos a mula” sem pensar, nem nos importamos de já ter comido nas barracas do mercado. Quando chegamos o chefe preparou um café “nablusi” e nos mostrou um pouco das massas finas que estava preparando para os doces. O café estava ótimo, mas e o “rango?” Perguntei para Ruayda. Como as mulheres que fazem o curso moram longe e todas precisam pegar a estrada para ir embora “elas cancelaram o almoço”, disse ela.

Saímos de Nablus com água na boca, principalmente porque esperávamos uns docinhos feitos pelo chefe. Por sorte, a Ruayda levou a massa para casa e preparou alguns para nós. Já poderíamos ir dormir dizendo que o dia hoje foi completo.

Para encerrar o dia em grande estilo, antes de dormir presenciamos a festa da libertação de um prisioneiro palestino de Kobar. Carros escoltaram o ex-prisioneiro, finalmente em liberdade após 15 anos de cárcere. A questão é que os prisioneiros palestinos não são prisioneiros comuns, a grande maioria é encarcerada por resistir contra a ocupação; e quando digo resistir, não estou me referindo a fuzil e luta armada, esses, como Nablusi são mortos à tiros e geralmente seus corpos são retidos pelos israelenses e a casa de seus pais é demolida. Me refiro a participar de alguma organização de defesa dos direitos humanos, ser jornalista, ou mesmo uma criança que atira pedras .

Todo palestino detido por Israel é julgado por um tribunal militar, o que deveria ser feito somente em casos excepcionais, mas é o protocolo de segurança desde à ocupação da Cisjordânia em 1967. Na qual ficou estabelecido a Proclamação Militar nº 2, concedendo ao comandante militar da área plenos poderes legislativos, executivos e judiciais sobre os prisioneiros.

Existe a chamada “Detenção Administrativa”, na qual, qualquer “suspeito” pode ser colocado em prisão por tempo indeterminado, mesmo sem ter passado pelo devido processo legal. O Estado de Israel alega que as detenções administrativas são estipuladas com base em “provas secretas” que garantem a “segurança nacional”.

O sistema de “justiça” de Israel, por si só, viola várias leis internacionais. Seria uma piada se não roubasse longos anos de palestinos que passam vidas inteiras atrás das grades da ocupação. Por isso toda vez que um prisioneiro é solto, a alegria toma conta das ruas. Em Kobar a recepção foi comovente, embora tivéssemos passado um dia calmo e tranquilo em Nablus, fomos dormir com a sensação de que o Estado de Israel não permitiria aquela festa a troco de nada, sabíamos que algo de ruim estava para acontecer.


CHACINA EM JENIN

Kobar, 26 de janeiro de 2023


Após ter conhecido a resistência das ruas de Nablus, pretendíamos ter um dia tranquilo para conhecer um pouco dessa história. Mas, como tudo por aqui depende da vontade israelense, acabou saindo tudo completamente diferente do que esperávamos. Se a ideia era conhecer o significado de resistência, hoje foi o dia para sentir na pele.

A primeira parte do dia foi dedicada ao museu Mahmoud Darwish, poeta e escritor adotado como um símbolo da luta de libertação nacional. Na juventude, Darwish escrevia e recitava poemas sobre uma vida que conhecia bem, o sofrimento dos refugiados e a inevitabilidade de seu retorno. Em maio de 1965, Darwish leu em público pela primeira vez o poema “Bitaqat huwiyya”, em português “Cartão de Identidade”. Em poucos dias, seu nome e seu poema se propagaram pela Palestina e outros países árabes.

Darwish se tornou militante da Organização para Libertação da Palestina (OLP) na década de 1970, anos depois foi eleito para o Comitê Executivo da OLP. Em 1988, Yasser Arafat leu em Argel a Declaração de Independência da Palestina, as palavras no documento foram escritas por Mahmoud Darwish.

A influência do escritor atingiu tamanha proporção que em 2000, Yossi Sarid, Ministro da Educação israelense, propôs que dois dos poemas do palestino fossem incluídos no currículo do ensino médio israelense. Ehud Barak, Primeiro-ministro à época, rejeitou a proposta protestando “não é o momento certo” para ensinar Darwish nas escolas.


"Cartão de Identidade [...] Registra–me, sou árabe tu me despojaste dos vinhedos de meus antepassados e da terra que cultivava com meus filhos e não os deixastes nem a nossos descendentes[...]" Mahmoud Darwish.

Entre os livros, prêmios, fotos e manuscritos inacabados em exposição, um artigo pessoal do autor nos fez parar; um velho livreto de páginas amareladas e corroídas pelo tempo: o famoso Cartão de identidade.

Visitado o museu e o mausoléu onde está enterrado o poeta revolucionário, seguimos até o próximo destino, outro museu e mausoléu, desta vez de Yasser Arafat.

Entre um ponto e outro da cidade, percebemos que todos os comerciantes começaram a guardar suas mercadorias e fechar as portas das lojas. As pessoas que circulavam pela rua também começaram a acelerar o passo, como se quisessem terminar o que estavam fazendo e voltar logo para casa. Não sabíamos o que estava acontecendo, mas era perceptível que aquilo era uma resposta para algo muito ruim. A primeira coisa que pensamos foi no comboio de escolta do prisioneiro liberto em Kobar. Tínhamos certeza de que alguma merda iria acontecer. Mandamos mensagens para Abu Khaled e para Ruayda. Nos preocupávamos de algo ter acontecido na cidade.

Como estávamos perto, e nem Abu Khaled, nem Ruayda haviam nos respondido ainda, decidimos seguir até o museu de Arafat.

Localizado no centro de Ramallah, este museu constitui a memória nacional palestina e sintetiza a história de um povo através de seu maior líder. Exibindo o icônico keffiyeh, armas, passaporte, fotografias e outros pertences do líder da OLP, incluindo o Prêmio Nobel da Paz de 1994. O museu constitui a narrativa de um povo que resistiu ao Império Otomano, Mandato Britânico, as guerras e ataques para formação do Estado de Israel, e agora contra a ocupação colonial, o regime de apartheid e o plano de limpeza étnica sionista. A visita acaba nas salas da Mukata’a, quartel-general onde Arafat ficou enclausurado enquanto o exército israelense o bombardeou de 2001 a 2004, véspera de sua morte – diga-se de passagem, repleta de controvérsias, com fortes indícios de envenenamento.

A visita foi realmente emocionante. Devo confessar que já visitamos muitos memoriais de outros heróis, não vou comentar quais para não ser injusto com os outros, mas o memorial de Yasser Arafat foi o mais emocionante de todos, principalmente por estar vinculado ao mausoléu do Presidente proibido por Israel de ser enterrado em Jerusalém, como era de seu desejo. O mausoléu onde se encontra o corpo de Arafat, foi construído com esmero, sobre a água para expressar que no futuro, com a libertação da Palestina e o reconhecimento de um estado independente, seu corpo será movido para a capital, Jerusalém.

Assim que finalizamos a visitação, o Lucas pegou o celular para verificar as horas, foi quando percebeu que Abu Khaled tinha ligado algumas vezes. Ele estava tão envolvido pelos corredores da Mukata’a que nem percebeu. Retornamos a ligação e Abu Khaled pediu para encontrarmos com ele no Centro Cultural Khalil Sakakini. Teríamos que retornar para Kobar com ele porque o transporte público logo pararia de funcionar.

Ele disse que o motivo do comércio ter sido fechado em Ramallah foi mais uma chacina promovida contra o campo de refugiados em Jenin . Até o momento que nos falamos, nove palestinos haviam sido assassinados e outros 20 estavam feridos, quatro em estado grave. A Autoridade Palestina declarou luto oficial de três dias em todo território.

Chegando em casa, passamos o restante do dia acompanhando as notícias. Infelizmente, todos na frente da televisão sabíamos que aquele seria o início de mais uma escalada de violência e morte promovida pelos israelenses. Segundo reportado pelos veículos de comunicação, às 7h05 da manhã os soldados israelenses fecharam as estradas em direção à Jenin e cortaram a comunicação e internet da região, indicando uma ação premeditada. A seguir, as IOF invadiram o campo de refugiados ao norte do território palestino e abriram fogo contra pessoas que se organizavam em um centro de convenções para uma manifestação na comunidade. O governo israelense alegou uma ação preventiva contra células da Jihad Islâmica. – Mentira! Os soldados sionistas atiraram indiscriminadamente, tanto que uma senhora de 60 anos morreu enquanto observava a invasão da janela de sua casa.

Estranhei que nenhum amigo ou parente mandou mensagem, ou ligou para saber se estávamos vivos. Na prática, já sabíamos que notícias sobre as violações israelenses, superficialmente ou raras vezes são noticiadas no Brasil. Nossos familiares e amigos – pelo menos os que não estão vinculados à nossa luta pela causa palestina – jamais ficariam sabendo o que estava acontecendo ao nosso redor se dependesse do interesse da mídia. Esse fenômeno de desinteresse não acontece só no Brasil, deploravelmente isso acontece em todo o ocidente, que “normalizou” e “aceitou” o estágio de genocídio permanente perpetrado pelos sionistas.

Após conhecer a história do povo palestino e ver o acervo documentado nos museus de Mahmoud Darwish e Yasser Arafat, fomos dormir pensando estarmos vivenciando, pela primeira vez de dentro dos muros do apartheid, algo com que os palestinos aprenderam a conviver em seu cotidiano. É lamentável que o genocídio palestino aconteça há tanto tempo, enquanto a comunidade internacional assiste a tudo isso de camarote, enquanto chamam os palestinos de “terroristas” e as agressões israelenses de “legítima defesa”. Fomos dormir com mais uma certeza: amanhã, a violência continuará!


Dedicado às famílias dos mártires de Jenin.


A SANTIDADE DA TERRA

Kobar, 27 de janeiro de 2023


"Nossa família palestina! Allah nos colocou no caminho das oliveiras palestinas; elas nos receberam com o acolhimento e grandeza que só as grandes árvores podem oferecer. Tivemos o privilégio de ajudar a cuidar da terra mais amada do mundo e, trabalhar de corpo, mente e alma nesse campo foi o presente mais inspirador dessa viagem! Obrigada grandioso Allah por me trazer aqui e me fazer reconhecer os teus sinais." Diana Emidio


Queria muito participar de uma manifestação e ver de perto, quem sabe registrar, a violência dos soldados israelenses no violar do direito de reunião e manifestação dos palestinos. No entanto, ontem quando nos aquecíamos na fogueira de Abu Khaled, ele nos convidou para o acompanharmos na tarefa de cuidar da terra e das oliveiras. Ele confessou que momentos como esse são difíceis, pois sabe da necessidade de lutar e se manifestar, porém, o único filho que ficou em casa tem apenas 13 anos, e nessa fase os jovens, principalmente os meninos, ficam inflamados com os movimentos de resistência e acabam se colocando em risco. É realmente uma fase perigosa. Por isso, toda vez que acontece algo assim, ele levava seus filhos para cuidar da terra, assim ocupava suas mentes e os mantinha longe das agressões. Entendendo bem o que Abu Khaled estava dizendo e até concordando sem ressalvas, decidimos ir junto para a terra e ver a Palestina como ela deveria ser se não houvesse um regime de ocupação.

Carregamos o carro com água, ferramentas, alguns produtos para combater os insetos que atacam as oliveiras e algumas comidas. Peguei meu boné do MST e minha hattah (como os palestinos chamam a keffiyeh) e lá fomos nós com nossa família palestina.

Falando de terra, Palestina e MST, gostaria de contribuir com uma informação a este diário. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é visto pela direita como um movimento “terrorista”; quanto a isso não vou entrar no mérito da questão, afinal não é bom dar palco para louco. O que poucos sabem é que o MST defende a luta camponesa também além das fronteiras brasileiras. Em 2002 a Via Campesina esteve em Ramallah, enquanto a Mukata´a e Yasser Arafat estavam sob bombardeio israelense. Desde então os “sem terras” brasileiros intensificaram suas relações com os movimentos populares na Palestina. Entre 2010 e 2011 o MST chega à Palestina com a decisão de ajudar a construir o processo de filiação da União dos Comitês de Trabalho Agrícola (UAWC) à Via Campesina.


[...] Estivemos nesse período na Palestina, e tivemos condições de acompanhar todo esse processo de integração da UAWC na Via Campesina, fato ocorrido em 2013, na IV Conferência Internacional da Via Campesina, em Jacarta, Indonésia. Entre 2010 e 2013 o MST e a Via Campesina emitiram comunicados defendendo o “direito do povo palestino de lutar por todas as suas terras, sejam as ocupadas em 1948, em 1967 ou mesmo depois dos Acordos de Oslo (1993/1994)”. Buzetto, 2018

No campo de oliveiras, a Ruayda e a Di acenderam uma fogueira para preparar o café da manhã. Enquanto isso, eu e Abu Khaled fazíamos a poda de algumas árvores e Ayman jogava o pesticida. Preparado o café, nos sentamos para comer embaixo da sombra de uma das oliveiras. Aproveitando os pães com azeite e zatar e outras delícias típicas das produzidas na região conversamos muito sobre a terra e os cuidados para com ela.

À nossa frente estava outro morro com mais oliveiras, onde outra família fazia o mesmo que nós: tomava seu café da manhã enquanto se preparava para um dia de trabalho. Por ver as crianças ao longe, entendi que eles estavam ali pelo mesmo motivo que Abu Khaled me falou ontem: para evitar que os jovens se colocassem em posição de perigo frente às manifestações que estavam acontecendo por todo país.

Olhando para aquelas árvores fiquei pensando quanto tempo demoraria para que também fossem arrancadas da terra para construção de novos assentamentos ilegais de colonos estrangeiros. Fiquei pensando quanto tempo demoraria para que Abu Khaled e Ayman não tivessem mais oliveiras para cuidar.

Deixando os pensamentos ruins de lado e com a barriga cheia, era hora de trabalhar. Juntamos as coisas e fomos todos pegar no pesado. Começamos a poda de baixo para cima, este não é um trabalho fácil. Me lembrei que o MST organiza também a Brigada de Solidariedade Ghassan Kanafani, na qual reúne grupos de trabalho voluntário durante o período de colheita de azeitonas na Palestina. Quando lembrei disso estava em cima de uma árvore com a Di; contei para ela sobre esse movimento e sorri dizendo: vou sugerir ao MST que venha da próxima vez no período de poda das árvores, isso é que é trabalho duro!

Já faz um tempo, eu escrevi sobre as oliveiras de Kobar. Durante a pesquisa desse material naveguei com os satélites do Google até aqui para entender a geografia da região, vi fotos, li documentos e muitas outras coisas para alimentar minha percepção. Aqui, carregando os galhos podados para uma fogueira vejo como é bem diferente. Sinto o cheiro das árvores, sinto o calor da fogueira, procuro uma sombra larga para me esconder do sol, o verde que via pelas fotos é diferente. Tudo, presencialmente, é bem melhor e muito mais bonito, sei que vou sentir saudades, não só do local, mas dessa família maravilhosa que nos adotou.

O dia que começou cedo foi de trabalho duro, minhas mãos estão ambas machucadas de espinhos, minhas costas doem e meus joelhos parecem não aguentar mais meu corpo. Mas posso dizer que estou realizado e feliz. Hoje eu entendi o valor dessa terra para os palestinos. Entendi que a santidade não está nos velhos templos bíblicos, a santidade está em um pai, uma mãe e um filho trabalhando juntos no campo. Acho que encontramos parte do que viemos buscar.

Nota: Como mochileiro já expliquei que sou desenraizado e não me sinto verdadeiramente ligado à terra que nasci, talvez porque nunca tivesse trabalhado nas oliveiras de São José dos Campos. Mas consegui entender que a relação dos palestinos com sua casa, suas terras e suas oliveiras é algo que transcende a imaginação.


“O colonialismo israelense será derrotado, pois é impossível subjugar e oprimir um povo para toda a vida. A Palestina é, hoje, o nosso Vietnã, e de lá retiramos a energia necessária para levar a justiça a todos os rincões de nosso planeta. A luta do povo palestino nos alimenta com a ousadia e a resistência de quem nunca teve medo de defender sua pátria, sua terra e seus princípios e valores.” Buzetto, MST, 2018.


TERRORISMO

Kobar, 28 de janeiro de 2023


A Palestina amanheceu em chamas! Nada novo por aqui! Acordamos com muitas mensagens no celular perguntando se estávamos vivos e bem. Já sabíamos o motivo para tamanha preocupação. Ontem à noite, em resposta ao massacre de Jenin, um palestino armado disparou contra israelenses que saíam de uma sinagoga, em Jerusalém. O ataque matou 9 israelenses e deixou outros 10 feridos. Na televisão, o Ministro de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, anunciava, sem qualquer comprovação, que o atentado havia sido orquestrado pelo Hamas.

Antes de continuar, preciso dar um panorama de quem é Itamar Ben-Gvir. Para começar, lembra que falei sobre o massacre na Tumba dos Patriarcas em Hebron, cometido pelo americano naturalizado israelense Baruch Goldstein. Então, Goldstein era membro do Kach, um partido judaico-ortodoxo e nacionalista que prega, a expulsão de todos os árabes da Palestina. Dentre outras coisas, o movimento pedia ao governo medidas como: anexação de toda Palestina; soberania da Esplanada das Mesquitas e a construção de uma sinagoga no local; oferecer terras palestinas para todo judeu que se casar; autonomia de tiro aos soldados contra atiradores de pedras; e censura da imprensa e submissão aos Estado Judeu.

O Kach, era obviamente liderado por outro lunático fascista, Meir Kahane. Daí o nome kahanismo para aludir aos mais cruéis e lunáticos sionistas. Meir Kahane foi um Rabino ultranacionalista nascido nos EUA, onde chegou a ser consultor do FBI. Migrou para Palestina em 1971, no mesmo ano foi condenado por conspiração e fabricação de explosivos para fins terroristas. Kahane foi preso mais de 60 vezes pelas autoridades israelenses e proibido de entrar em diversos países. Sua principal ideologia era expulsão de todos os árabes da Palestina e troca da população por imigrantes judeus. Em 1984, o Comitê Eleitoral Central de Israel o proibiu de ser candidato alegando que Kach era um partido racista, mas a Suprema Corte de Israel anulou a proibição alegando que o comitê não estava autorizado a proibir a candidatura de Kahane. A Suprema Corte sugeriu que o Knesset aprovasse uma lei excluindo partidos racistas de futuras eleições. O Knesset respondeu em 1985 alterando a Lei Básica para incluir uma proibição contra o registro de partidos que e incitam o racismo. – É claro que isso é puramente para fins de marketing, já que a maioria dos partidos fazem o mesmo.

O Kach pregava ideias tão boçais que nem mesmo os sionistas aguentaram, e declararam-no como uma organização terrorista. Não que chamar algum grupo de terrorista é algo novo para o Estado de Israel, mas dessa vez era um grupo político-judaico e israelense. Logo após o massacre na Tumba dos Patriarcas, as autoridades israelenses realizaram busca e apreensão em suas instalações. Os policiais apreenderam armas escondidas no local e colocaram alguns de seus integrantes em detenção administrativa.

Explicado quem é Meir Kahane, e o que prega o Kach, sua organização criminosa, vamos especificar o atual Ministro de Segurança de Israel. Itamar Ben-Gvir, é seguidor de Kahane e não esconde sua participação no Kach. Ben-Gvir já foi denunciado dezenas de vezes por discurso de ódio, enfrentando algumas poucas acusações que não deram em nada. Em outubro de 2021, Ben-Gvir foi visitar um prisioneiro que estava em greve de fome há mais de três semanas, um protesto contra sua detenção administrativa. O ministro declarou ironicamente que foi visitar o prisioneiro para “ver de perto esse milagre que uma pessoa permanece viva apesar de não comer por vários meses”.

Ben-Gvir foi investigado em 2021 depois aparecer puxando uma arma para seguranças árabes durante uma disputa de estacionamento na garagem subterrânea do centro de conferências Expo Tel-Aviv. Tudo foi filmado e distribuído em vídeo. Ben-Gvir aparece sacando uma pistola e apontando para os árabes desarmados. Também não deu em nada, afinal, as vítimas eram palestinas.

No ano passado, esse lixo a quem chamam de ministro participou de confrontos entre colonos judeus ilegais e moradores palestinos do bairro de Sheikh Jarrah. Há anos o governo de Israel vem expulsando os palestinos desse bairro de Jerusalém para construção de novos assentamentos ilegais. Nesse episódio Ben-Gvir participou empunhando uma arma contra palestinos, enquanto gritava “Nós somos os proprietários aqui, lembre-se disso, eu sou seu proprietário”.

Depois de tantos crimes e episódios deploráveis, advinha o que aconteceu com Itamar Ben-Gvir: Se uniu ao governo de outro lixo chamado Benjamin Netanyahu, tornando-se Ministro de Segurança Nacional em dezembro de 2022, mesmo sob muita pressão de israelenses e até mesmo da mídia internacional.

Conhecendo um pouquinho dessa figura ilustre do governo israelense, podemos entender que suas palavras não se apoiam em fatos, elas são motivadas pelo mesmo ódio e desumanidade que motivam todos os psicopatas.

Referente ao ataque em Jerusalém, o Hamas afirmou que nenhum de seus militantes estavam envolvidos e não assumiu autoria sobre o crime cometido contra os israelenses na rua da sinagoga. Fundado durante a Primeira Intifada em 1987, o Hamas é um partido palestino de posição nacionalista e islamista cujo objetivo é garantir a libertação do povo palestino e lutar pelo fim de Israel como um Estado. Em 2006, o Hamas ganhou a eleição para o Parlamento Palestino, mas sendo considerado mais radical que o Al-Fatah , o Hamas foi impedido de assumir sendo exilado na Faixa de Gaza. O Hamas passou a atingir alvos civis em Israel e orquestrar atentados terroristas depois do massacre de Baruch Goldstein na Tumba dos Patriarcas, antes disso, seus avos eram direcionados apenas contra os militares israelenses, assumindo autoria por todos seus ataques. Gostando ou não, concordando ou discordando das táticas operacionais; seja como for e chamando como preferir, seja de partido político ou de organização terrorista, uma coisa é certa: se o Hamas disse que não cometeu, é porque não cometeu.

Antes de ser acusado por essas linhas, quero esclarecer algumas coisas: eu não pertenço ao Hamas; nenhuma organização política paga meu salário; e não sou eu quem devo escolher qual partido é certo e qual é errado para o povo palestino. Meu objetivo com meu trabalho é ajudar à emancipação palestina, quem deve escolher o partido para seguir ou votar, é o povo palestino. Afinal, eu voto no Brasil!

Ontem fomos até às 3h da manhã, acompanhando as notícias, sabíamos que o que seguiria seria um banho de sangue. Durante a madrugada, o Estado de Israel bombardeou a Faixa de Gaza e colonos israelenses invadiram territórios palestinos para propagar o terror. Lembrando que tudo isso aconteceu em resposta ao massacre de Jenin do dia 26. Conhecendo o desserviço prestado por algumas das maiores mídias de informação no Brasil, as quais noticiaram superficialmente o ataque de Jenin, fomos dormir sabendo que depois do ataque em Jerusalém alguém ligaria. E ligou!

As notícias que circularam eram que Israel estava se defendendo de terroristas. Como previsto, passamos algumas horas convencendo familiares e amigos de que estávamos bem e seguros. Embora estivéssemos vivos, não estávamos nem bem, muito menos seguros. Próximo de Kobar, existe um assentamento ilegal chamado Halamish , esses colonos passaram a noite propagando o terror entre os palestinos. Mas nada disso, nem o massacre de Jenin, nem os bombardeios à Gaza, muito menos os ataques de colonos israelenses, tiveram ênfase na mídia brasileira; somente o “atentado terrorista contra judeus em Jerusalém”.

Não que eu concorde com o ataque contra civis, mas veja bem a história como, na verdade aconteceu. O atirador palestino que cometeu a chacina e depois foi morto pela polícia, foi identificado como Heiri Alkam, de 21 anos. Alkam é morador do bairro de A-Tor, em Jerusalém Oriental (na Palestina). Uma foto do atirador circulou na televisão, nela o jovem aparece na sala de casa, com um quadro de um senhor ao fundo. Aquele senhor era Hayeri Alkam, avô do atirador, assassinado a facadas em 1998 na rua Shmuel HaNavi em Jerusalém. Obviamente, nenhum israelense foi preso pelo crime. Não que uma coisa justifique a outra, mas naquela noite Heiri Alkam, que não possuía antecedentes criminais, saiu de casa sabendo que iria morrer. Como disse, um ataque não justifica outro, mas a pergunta a se fazer é: como uma pessoa que cresce convivendo com tamanha violência consegue tomar outro rumo que não a própria violência?

O mundo consegue intitular o povo árabe, em especial os palestinos, como “terrorista”, mas não é capaz de intitular de terrorista os presidentes americanos que invadiram os países árabes e perpetraram tantos massacres; não é capaz de chamar de terrorista o sistema de genocídio permanente ostentado pelo sionismo. O mundo não se cansa de dizer que a Ucrânia e os ucranianos têm todo o direito de se defender contra Vladimir Putin e os soldados russos. Mas um palestino não tem esse direito, e quando se levanta, seja com uma pedra contra a ocupação israelense, eles são chamados de terroristas. Se nada justifica uma agressão, como pode a agressão contra os palestinos ser justificada por nada?

Depois de responder às mensagens e publicar alguns vídeos e informações sobre o que realmente estava acontecendo na Palestina; e já que não poderíamos sair para lugar nenhum, fomos novamente com Abu Khaled, Ruayda e Ayman cuidar das oliveiras.


SILENCIANDO JORNALISTAS

Ramallah, 29 de janeiro de 2023


No Brasil, o dia 29 de janeiro é lembrado como Dia do Jornalista. A data foi escolhida em memória de José do Patrocínio, que morreu neste dia, no ano de 1905. Ainda hoje, José do Patrocínio é considerado um dos maiores jornalistas da abolição.

Coincidentemente, fomos convidados pelo amigo Musa Al-Shaer, secretário executivo do Sindicato de Jornalistas Palestinos (PJS), para participar de uma conferência sobre as violações dos direitos humanos cometidas contra os profissionais de imprensa. O evento foi realizado na sede do Crescente Vermelho da Palestina, nas cidades de Ramallah e Gaza simultaneamente.

Abu Khaled nos deixou próximo à sede do Crescente, como tínhamos uma hora antes do início da conferência, aproveitamos para conhecer o campo de Refugiados de Al-Amari. Este campo foi estabelecido como provisória para abrigar os palestinos expulsos de suas casas durante à Nakba. Inicialmente os abrigos eram tendas precárias, como o problema dos deslocados internos nunca foi resolvido, os habitantes resolveram trocar suas tendas por casas de alvenaria. Como a maioria dos campos na Cisjordânia, Al-Amari sofre com superlotação, além de precárias redes de água e esgoto.

Andando pelo campo, percebemos algumas pichações de líderes da OLP e mártires palestinos, desenhos que mandam um recado muito claro para a ocupação. Vimos também outro símbolo muito comum, na porta de entrada de uma das casas haviam chaves penduradas. Para os palestinos, em especial se refugiados, a chave possui um simbolismo muito forte. Quando foram expulsos, muitas pessoas guardaram as chaves para o dia que pudessem retornar para suas casas. No entanto, não há casas para voltar. Em 1948, Ben-Gurion deu ordem para demolir as casas para anular possibilidade de retorno. As casas ruíram para dar lugar aos assentamentos israelenses, mas as chaves ficaram. Infelizmente, já se passou tanto tempo que muitos daqueles que foram expulsos já morreram enquanto esperavam pelo dia de poderem voltar.

Queria muito conversar com algum morador do campo de Al-Amari, saber mais sobre suas histórias, de certa forma, muito que precisava saber já estava marcado nas paredes ou nas portas das casas; e como estava cedo, não tinha ninguém na rua.

Voltamos para o local da conferência para esperar. O Crescente Vermelho Palestino é uma organização humanitária que faz parte do Movimento Internacional da Cruz Vermelha. Uma curiosidade é que o centro foi fundado por Fathi Arafat, irmão de Yasser Arafat, em 1968. A organização fornece hospitais, serviços de medicina de emergência e ambulância e centros de cuidados de saúde primários na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Do lado de fora pudemos acompanhar os palestinos carregando um caminhão com colchões e outros artigos humanitários.

Musa nos encontrou do lado de fora, mas pediu para outra jornalista do sindicato nos acompanhar. No elevador, um jornalista palestino nos viu conversando. Hanzim Manoly, que havia morado em Madrid falava muito bem espanhol, e acabou se oferecendo para nos guiar. Pegamos os crachás de identificação na recepção e seguimos para o auditório.

Esses anos que trabalho escrevendo sobre a Palestina, acabei identificando o incansável esforço do Estado de Israel para combater jornalistas. Dessa maneira, entrevistei muitos profissionais, desde então, venho reportando as violações que esses profissionais enfrentam diariamente no exercício de sua profissão.

Me emocionei logo no vídeo de abertura do evento, quando as primeiras imagens a serem exibidas foram as do fotojornalista Muath Amarneh, o primeiro jornalista que entrevistei na Palestina.

Após ver o vídeo do resgate de Muath – jornalista que se tornou amigo –, foram apresentadas imagens de Yasser Murtaja, assassinado na Grande Marcha do Retorno (GMR), em 2018. Não tive a honra de conhecer Murtaja; porém, conheço muito bem seu trabalho e sua história. No ano passado, seu irmão, Motassem Murtaja, também me concedeu uma entrevista.

Quando comecei a escrever sobre as violações dos direitos humanos na Palestina, percebi que ferir, prender e matar profissionais de imprensa são estratégias do estado colonial sionista para silenciar os “mensageiros da paz” – como Hanzim, nosso tradutor, os chama. Segundo dados fornecidos durante a conferência, somente no ano de 2022, ao menos 900 crimes e violações foram cometidos contra o jornalismo palestino pelo regime de ocupação israelense.

O PJS alertou também para escalada de violência no campo de refugiados de Jenin, como o que presenciamos na última semana. O caso mais recente mencionado, o qual emocionou a todos os 1500 presentes na conferência, aproximadamente, foi o assassinato da jornalista Shireen Abu Akleh, baleada na cabeça em 11 de maio de 2022, enquanto cobria uma invasão militar em Jenin. Outros casos de violência contra os profissionais de imprensa palestina foram mencionados durante a conferência. Vale recordar dos relatos de Janna Jihad e Adham Al-Hajjar .

Os ataques da ocupação israelense contra jornalistas palestinos se tornaram um caso tão pessoal que, em 2020, iniciei uma pesquisa científica sobre o assunto. Neste entremeio, me deparei com uma situação adversa de reclamações de profissionais sobre a liberdade de imprensa durante a Copa do Mundo do Catar. No entanto, desta vez, os reclamantes eram repórteres israelenses, que decidiram batizar o evento de “Copa do Ódio”. O próprio governo de Israel aconselhou aos jornalistas e torcedores israelenses que não usassem símbolos ou bandeiras do Estado sionista e que evitassem o idioma hebraico em público. Após anos escrevendo sobre as violações contra jornalistas palestinos e conhecendo tão intimamente suas histórias, não pude deixar minha indignação de lado e acabei escrevendo um artigo sobre isso, intitulado Intifada das Chuteiras, no que relato como é desproporcional o que palestinos e israelenses consideram uma violação da liberdade de imprensa.

A violência contra os jornalistas palestinos é parte dos esforços israelenses para impedir que os crimes da ocupação sejam reportados ao mundo. Intimidar, prender, agredir e violentar esses profissionais é o modus operandi sionista para calar a voz palestina. Hoje, em um dia tão especial para todos nós, “mensageiros da paz”, convido todos os colegas a refletirem: como podemos ajudar nossos colegas da Palestina ocupada a conquistarem sua própria abolição, como fez José do Patrocínio?

Terminado a Conferência, Hanzim nos deixou na garagem onde vans aguardam os passageiros no centro de Ramallah. Mesmo com todos nos dizendo que ir até Jericó àquela hora do dia seria complicado, seguimos assim mesmo, afinal, nossos dias pela Palestina também estão passando e ainda tem muitos lugares para visitar e coisas para ver aqui.

Pegamos um transporte até Ariḥa, como Jericó é chamada em árabe e seguimos pela estrada. É muito louco como a Palestina é um território tão pequeno e possui uma adversidade natural tão rica. No caminho para a cidade mais antiga do mundo (aproximados 10 mil anos), vimos uma paisagem desértica completamente diferente de todas as outras que já vimos. Conosco na van havia um senhor beduíno que desceu no meio do nada, foi quando vimos que ele caminhou na direção de algumas tendas que havia no meio daquele deserto. Os beduínos palestinos são outra história de violação ao qual gostaria de me aprofundar, mas como sei que não teremos tempo, seguimos nosso caminho.

Em Jericó, no Vale do Jordão é completamente diferente. Ao longe vimos as pedras e areias serem tomadas por um oásis. Me senti como o jovem alquimista Santiago . Tem tanta coisa para ver. Para citar algumas: a Fonte Ein as-Sultan (Fonte de Eliseu para judeus e cristãos); Qasr al-Yahud, onde Jesus foi batizado; O Mosteiro Ortodoxo Grego, onde Jesus jejuou por 40 dias; O sicômoro de Zaquel, árvore que o homem subiu para ver Jesus passar; o Mosteiro de São Jorge; e o que eu mais queria ver, o Jebel Quruntul (Monte da Tentação), local onde o demônio tentou Jesus, que agora possuí até um teleférico.


“Novamente o transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares. Então disse-lhe Jesus: Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás. Então o diabo o deixou; e, eis que chegaram os anjos, e o serviam.” Mateus 4:8–11

Optamos em ir ao Hisham´s Palace. O palácio é mesmo um mistério, sabe-se que pertence ao período omíada graças as escavações arqueológicas. Nossa visita foi acompanhada de sossego e calmaria, éramos os únicos no local. Pudemos fazer tudo com a calma e tranquilidade, apesar da falta de tempo. No pátio de entrada, há uma Janela de pedra em formato de estrela de seis pontas com um círculo oco no meio. A janela, durante o califado, era o ponto mais alto do palácio.

De todas as escavações do sítio arqueológico, a joia mais preciosa foi recuperada com apoio do governo japonês, ao qual, guarda uma placa de agradecimento na entrada. Entrando no galpão coberto nos deparamos com gigantescos mosaicos coloridos. Mandalas geométricas que são verdadeiras obras de arte; milhões de pedrinhas coloridas formando um dos maiores mosaicos que sobreviveram do mundo antigo. O mais belo de todos é o da “Árvore da Vida” com um leão atacando uma gazela, ao qual existem muitas interpretações, mas não vou me arriscar em nenhuma, pois considero a arte uma manifestação com diversas possibilidades para cada pessoa.

O Hisham’s Palace é um dos monumentos islâmicos mais importantes da Palestina e uma grande atração para visitantes estrangeiros e palestinos. Em 2010, segundo dados levantados pelo Ministério de Turismo e Antiguidades da Palestina, o local recebeu 43.455 visitantes. Dentro do sítio arqueológico existe uma escola que ensina e dá cursos sobre a confecção de mosaicos, é mais uma tentativa de recuperação e preservação da cultura local. Caminhamos até ele, mas estava fechado.

Chegando perto da hora do sol se pôr, tratamos de acelerar o passo e quem sabe ver mais alguma coisa no centro de Jericó. Não havia táxi ali, decidimos voltar os 4km andando. Por sorte, acabamos pegando uma carona com um palestino e um gringo que vivem em Jericó, eles nos deixaram bem no centro, onde pegaríamos a van de volta para Ramallah.

Antes de conhecer outro lugar na cidade, fomos nos informar sobre o último horário do transporte. O motorista nos mandou entrar no carro, disse que os israelenses fecharam a estrada principal e aquele seria o último carro. Não era papo furado, era real, a van saiu antes da hora e não tivemos tempo para ver mais nada. A situação era tão crítica que o motorista nem esperou o carro lotar, saiu com a metade da capacidade de passageiros.

Quinze minutos pela estrada e lá estavam eles, os soldados realmente fecharam a estrada. A fila parecia interminável. Para nossa sorte, pela segunda vez no dia, conseguimos embarcar há tempo; se não tivéssemos pego uma carona com estranhos ou tivéssemos ido para outro ponto turístico, teríamos que dormir em Jericó, o que não seria legal, visto que ontem houve conflito entre soldados e manifestantes na cidade. Ficamos mais de 40 minutos parados, olhando pela janela a Di falou “olha isso”, quando olhei também, vi meninos (no máximo 15 anos) correndo em direção aos soldados com camisas e hattas amarrados no rosto e pedras na mão. Estávamos muito perto dos soldados, e presos em uma van, se eles atirassem na direção dos meninos não daria tempo de se esconder. Ficamos apreensivos, mas ver os palestinos que estavam conosco tão calmos, como se aquilo não fosse nada demais, acabou nos dando conforto.

Não conseguimos ver se os meninos atiraram mesmo as pedras, e só os vimos voltar. Acho que não aconteceu nada, porque quase uma hora parados a fila começou a andar. Os soldados param os carros um a um, a fim de dificultar ainda mais o dia. Quando chegou nossa vez, o palestino no banco da frente pediu nosso passaporte para entregar aos soldados. Quando uma soldada mulher abriu a porta da van, como quem abre uma jaula, ela começou a gritar. Como estávamos sentados no último banco ela não nos viu, mas o palestino fez questão de exibir nossos passaportes em primeiro lugar. Sem pensar, depois de ver que tinha dois gringos no carro, a soldada devolveu os documentos, bateu a porta e mandou o motorista sair logo dali.

A ordem é sempre a mesma, se livrar dos estrangeiros o mais rápido possível, para que não vejam fotografem ou reportem os crimes cometidos pelos soldados. Acelerando o motorista seguiu o conselho da soldada e saiu sem olhar para trás. O homem que estava com nossos passaportes nos entregou e agradeceu por estarmos ali.

Foi um dia quase tão acelerado quanto aquela van que nos levou embora depois de horas parado em um bloqueio de soldados israelenses em uma estrada palestina. No caminho, lembramos que não tínhamos comido nada além de um falafel e uns morangos que ganhamos de boas-vindas logo que chegamos em Jericó. Quando chegamos em casa, dessa vez não por sorte, mas por carinho mesmo, a Ruayda havia preparado um jantar maravilhoso; e para sobremesa, alguns dos doces que aprendeu na aula em Nablus.


BETHLEHEM, CIDADE DE JESUS

Bethlehem, 30 de janeiro de 2023


Mesmo arriscando ficar mais uma vez presos na estrada, pegamos uma van com destino à cidade onde Maria deu à luz ao menino Jesus. Ficamos mais de 2h na estrada, em um trajeto de apenas 28km, mas chegamos. Bethlehem (nome em árabe) ou Belém como a conhecemos, estava bem tranquila e tão vazia quanto esperávamos, com apenas alguns poucos grupos de turistas.

A Igreja da Natividade foi o primeiro ponto a ser visitado. Encomendada por Constantino, começou a ser construída em 300 d.C. Adentramos no salão principal e vislumbramos meticulosamente cada obra de arte que resistiu ao tempo e as mudanças entre um império e outro. Abaixo do altar principal existe uma gruta onde uma estrela de prata marca o local do nascimento de Jesus. Descemos entre os fiéis e vimos diversas manifestações de devoção religiosa. Enquanto a Di fazia suas orações, olhei para Ruayda e perguntei: Será que eles sabem o que aconteceu aqui?

Em 2 de abril de 2002, o governo de Israel enviou as Forças de Ocupação Israelense (IOF) para invadir a cidade de Belém na tentativa de capturar fedayins da Organização para Libertação da Palestina (OLP). Os fedayins fugiram para a Igreja da Natividade onde foram acolhidos pelos padres e outros civis que estavam rezando. As autoridades israelenses montaram um cerco ao redor da Igreja com tanques, helicópteros, franco-atiradores e outros soldados de infantaria. O governo israelense reivindicava a imediata libertação dos reféns, no entanto, a ordem franciscana, uma das que administra a igreja , se pronunciou dizendo que todos os monges e as outras pessoas – mais de 200 – que estavam presentes na igreja eram voluntários em defesa dos guerrilheiros palestinos. O chefe da Igreja Católica Romana (outra administradora da igreja) na região disse que os homens foram recebidos em um santuário e que “a basílica é um lugar de refúgio para todos, até mesmo para os combatentes. Temos a obrigação de dar refúgio a palestinos e israelenses.”

No dia 4 de abril, o palestino Samir Ibrahim Salman, que estava dentro da Natividade, foi baleado várias vezes no peito por um franco-atirador israelense e acabou morrendo; ele não era guerrilheiro, era um sineiro da Igreja. Um porta-voz dos monges católicos na Terra Santa acusou os israelenses de “ato indescritível de barbárie”. O Vaticano também se manifestou dizendo para Israel respeitar o local sagrado; o Papa João Paulo II descreveu a violência como tendo atingido níveis “inimagináveis e intoleráveis”. No dia 10 de abril, outro monge foi baleado, e os israelenses culparam a própria vítima por estar usando roupas civis durante o ataque.

O cerco israelense durou semanas. Os monges e as autoridades negociavam a evacuação da Igreja desde que Israel garantisse a vida de todos os combatentes, mas as negociações foram frustradas e fizeram mais fatalidades. Em 2 de maio, dez ativistas estrangeiros do Movimento de Solidariedade Internacional conseguiram driblar os israelenses e adentrar na igreja para proteger os combatentes. Após 39 dias, um acordo foi alcançado, segundo o qual os militantes se entregaram a Israel e foram exilados na Europa e na Faixa de Gaza. O saldo foi de 8 pessoas mortas dentro da Igreja construída para marcar o local de nascimento de Jesus Cristo.

Admito que essa Igreja também me emocionou, mais ainda por saber que pessoas, lutadores pela liberdade de seu país, morreram ali enquanto fugiam de soldados colonizadores, os mesmos que agora exploram o turismo religioso em território ocupado. Por isso, enquanto fiéis se curvavam para tirar suas fotos beijando a estrela de prata, preferi fazer a clássica pose dos dedos em “V” e pronunciar um “free Palestine”, algo que incomodou a maioria dos religiosos.

No lado de fora da Igreja da Natividade, encontramos mais uma vez com Musa Al-Shaer, o jornalista do PJS. Ele nos levou até a gruta do Leite. Segundo conta a história, esse foi o local onde a Sagrada Família se escondeu de Herodes antes de fugir para o Egito.

A gruta se tornou simbólica, sobretudo para casais com dificuldades para engravidar. O simbolismo decorre da lenda de que aqui, uma gota do leite de Maria caiu na rocha, tornando-a e ao seu redor branco. Se verídico ou não, cabe a crença e a fé de cada um. A Gruta do Leite, assim como a Igreja da Natividade, são importantes santuários protegidos por cristãos e muçulmanos, também visitados por eles. Em nosso grupo por exemplo, havia dois muçulmanos, uma devota de São Jorge, e eu.

Nosso amigo Musa, nos levou para conhecer a região de Belém onde acontecem os maiores confrontos entre as pedras palestinas e as balas e bombas israelenses. Almoçamos bem em frente ao portão dos confrontos. Pedi para nos sentarmos bem em frente a janela. Olhando para a torre de vigilância queimada, a comida que apesar de maravilhosa, custava descer. Caminhamos um pouco ao redor do muro. Vimos manifestações artísticas em apoio a causa palestina e outras causas que clamam por urgência em todo mundo. Murais enormes, com aproximadamente 8 metros (tamanho do muro neste setor), os rostos estampados eram de Yasser Arafat, Abu Jihad , Ahed Tamimi , Shireen Abu Akleh , Leila Khaled e outros.

Neste muro, encontra-se também manifestações artísticas como apoio a outras causas de justiça social, como o rosto de George Floyd e as artes de Banksy .

Visitamos também The Walled off Hotel, também um projeto do artista e ativista Banksy. Inaugurado em 2017 esse projeto é parte importante na demonstração e conscientização para os crimes e danos causados pela ocupação sionista.

A Di estava tão impactada que não quis entrar. A Ruayda ficou com ela passeando pelo lado de fora. Circulando pelo Museu, passei por uma sala na qual só havia um telefone tocando. Por ser todo interativo, entendi a mensagem e atendi o telefone. A voz do outro lado se identificava como um oficial do governo israelense e notificava que esse prédio seria bombardeado e que eu teria somente cinco minutos para deixar o local. Bati o telefone e corri para o lado de fora, obvio que eu sabia que era uma encenação, no entanto, eu já entrevistei pessoas que passaram por esse momento e me coloquei no lugar delas; senti o desespero que elas sentiram, lógico que em outra proporção, mas senti. Saí dali correndo, sem olhar para trás. Encontrei com a Di e a Ruayda do lado de fora e pedi um copo de chá, precisava tirar aquele nó preso na garganta. Fiquei muito perturbado, eu só queria naquele momento, desabafar.

Depois de nossa visita a Belém, Ruayda nos levou até a cidade de Al-Khader, uma cidade próxima, para conhecer a casa de São Jorge. A Igreja estava fechada, mas Ruayda buscou, em uma casa em frente à Igreja, um senhor muito educado que saiu para abrir as portas da igreja e nos guiar por uma visita.

Como dito antes, São Jorge nasceu na Capadócia, Turquia, mas foi viver com sua mãe na Palestina. São Jorge doou toda sua fortuna, mas a casa de sua mãe foi preservada pela comunidade cristã da época. Ruayda nos guiava e contava algumas histórias sobre a Igreja e a vida de São Jorge e outras histórias eram contadas pelo palestino que abriu a igreja para nossa visita exclusiva. Alguns pontos da igreja haviam sido restaurados recentemente pelo senhor que nos acompanhava, já em outros anexos ele explicava o que faltava restaurar. Depois de nos mostrar as salas usadas como creche e outras como salas de aulas para crianças, o senhor nos convidou a tomar um café. Claro que aceitamos, iríamos tomar um café na casa da mãe de São Jorge!

Sentados à mesa, o palestino nos contou sobre os ataques israelenses no campo de oliveiras nos fundos da igreja; e como uma bomba de gás lançada pelas IOF incendiou o campo, quase destruindo a igreja; ele contou que precisou de dois caminhões de bombeiro para controlar o incêndio e da ajuda de cristãos e muçulmanos. “Como assim cristãos e muçulmanos” perguntei. “Sim”, ele disse, e completou “aqui rezamos e cuidamos da igreja juntos”. Ruayda explicou que a Igreja é frequentada tanto por cristãos como por muçulmanos, mesmo aquele senhor que era como um caseiro, cuidador e restaurador também era muçulmano.

Não se sabe exatamente quando a igreja passou a ser cuidada pelos palestinos muçulmanos. Estudiosos acreditam que al-Khadr – mesmo nome da cidade – um servo de Deus mencionado no Alcorão, tenha sido o próprio São Jorge. Mesmo que os detalhes dessa história sejam desconhecidos por uns e rejeitado por outros, os palestinos enxergam São Jorge como protetor da fé e dos necessitados, e por isso seguiram protegendo o monastério ao longo dos séculos, inclusive o protegem agora do exército colonizador de Israel.

Tudo o que vimos em um único dia, nos mostrou quanto cristãos e muçulmanos são próximos e convivem harmoniosamente na Palestina, demonstrando que o problema não tem nada a ver com religião e sim com ocupação territorial. Tanto é que pouco antes de nos curvarmos para adentrar pela “porta da humildade” na Igreja da Natividade, Ruayda nos mostrou um entalho discreto, mas com muito simbolismo; um entalho de uma meia lua que representa a religião islâmica na porta da Igreja que guarda o local de nascimento de Jesus e o assassinato de oito mártires palestinos durante o cerco israelense de 2002.

O Estado de Israel não se importa se a Igreja de Jorge é ou não importante para cristãos e muçulmanos, pois os judeus que costumavam também frequentar a igreja, já não a frequentam mais. Assim, como não respeitam o local do nascimento de Jesus, a menos que possam lucrar com o turismo religioso, ou usá-lo como desculpa para o seu plano de limpeza étnica e estado de genocídio permanente contra a população palestina. Conhecendo um pouco da história de Jesus Cristo, um palestino que nasceu em Belém, ou melhor Bethlehem, não tenho dúvidas que se o cerco israelense tivesse acontecido hoje, Jesus e São Jorge estariam lá defendendo os seus compatriotas e acabariam sendo os primeiros a serem baleados assim como foi o padre Samir.


CAMPO DE DHEISHEH

Dheisheh, 31 de janeiro de 2023


A chuva caiu assim que colocamos os pés em Ramallah. O primeiro compromisso do dia foi uma entrevista com Hussam Gush, Diretor do Centro Cultural Sakakini. A entrevista foi ótima, e Abu Khaled é um ótimo tradutor. Quando encerramos, tomamos um café e expliquei para Abu Khaled que iria até o centro de Ramallah conhecer o amigo Muath Amarneh, mas que depois voltaria para nos encontrarmos próximo à academia onde Ayman treina Muay Thai. Acho que se não estivesse tão frio, a Di já teria feito um treino também.

Troquei algumas mensagens com Muath pelo caminho. Ele pediu desculpas, atrasaria um pouco devido à chuva. Enquanto esperávamos, a Di resolveu comprar um vestido que vinha namorando desde Hebron. Entramos em uma loja e fomos recebidos por um “buenos dias”, despejados por um senhor muito simpático. O homem parecia muito contente por poder “hablar um poquito con nosotros”; devia estar esperando há um tempo por aquela oportunidade. No passado, aquele senhor optou por morar fora, uma tentativa de fugir da ocupação israelense, assim como tantos outros palestinos. Ele viveu um tempo em Porto Rico até que decidiu voltar para sua casa, sua terra e seus costumes.

Desde que comecei a conviver com os palestinos, venho presenciando o que chamam de “palestinidade”. Esse conceito é usado para explicar os vínculos dos palestinos com sua terra e com sua cultura. A “palestinidade” inata, é o que os identifica como indivíduos. Esse fenômeno acontece até mesmo com aqueles que já nascem na diáspora. Por exemplo: quando um palestino nasce na Jordânia, ele não deixa de ser palestino. Seus documentos, sua comunidade, escolas, trabalhos e acesso a todos os serviços públicos são fornecidos de acordo com sua condição de nascimento. Para esses palestinos da diáspora, eles podem ter começado a vida fora do território, mas, geralmente, a maioria da sua família permanece na Palestina, a que eles são proibidos de entrar. Um palestino que nasce filho de um refugiado, cresce ouvindo as histórias de seus pais e seus avós, e tudo em suas vidas se relaciona a “NeverLand” que “nunca” poderão conhecer. Ouvi relatos de várias pessoas que sonham em conhecer os tios e tias, avós, primos e outros parentes que ainda permanecem na Palestina. É como se aquilo tudo os identificassem como o que nasceram para ser, palestinos!

— Ah, mais e os israelenses não podem sentir o mesmo? — E a identidade judaica?

David Ben-Gurion , nasceu na Polônia. Moshe Sharett, nasceu na Ucrânia. Levi Eshkol, nasceu em Kiev, Ucrânia. Yigal Allon, nasceu na Palestina, mas seus pais emigraram da Bielorrússia. Golda Meir, nasceu na Ucrânia; quando criança migrou para os EUA; e quando jovem migrou para Palestina. Yitzhak Rabin, nasceu na Palestina, seus pais nasceram na Ucrânia e Bielorrússia. Menahem Begin, nasceu na Bielorrússia. Yitzhak Shamir, nasceu na Bielorrússia. Shimon Peres, nasceu na Polônia. Benjamin Netanyahu, o primeiro da lista nascido em Israel, seus pais vieram da Polônia. Ehud Barak, nasceu no Estado de Israel, seus pais vieram da Lituânia. Ariel Sharon, nasceu na Palestina durante o Mandato Britânico, seus pais são de Tiblisi, na Geórgia. Ehud Olmert, nasceu na Palestina durante o Mandato Britânico, seus pais são da Ucrânia e Rússia. Naftali Bennett, nasceu em Haifa (Território Palestino Ocupado em 1948), seus pais são dos Estados Unidos e suas avós da Polônia, Alemanha e Holanda. Yair Lapid, nasceu em Tel Aviv; seu pai nasceu na Iugoslávia (atual Sérvia) e seus avós paternos na Hungria; seus avós maternos são originários da Transilvânia (atual Romênia). Todos nesta lista foram primeiros-ministros do Estado de Israel, alguns, mais de uma vez. O que quero dizer é que, se você perguntar para qualquer palestino, onde seus avós, ou dependendo da idade seus pais estão enterrados, ele te dirá Palestina. Se perguntar onde estão seus familiares ou quais histórias cresceu ouvindo ele dirá o mesmo, já que toda a sua vida ainda está entrelaçada com sua terra. Se fizer as mesmas perguntas para um israelense, ele vai contar histórias e mostrar que sua relação é com algum país da Europa, provavelmente um que tenha sido parte do Império Russo, onde o Czar permitia e até incentivava os pogroms contra os judeus.

Toda pessoa tem o direito de procurar uma vida melhor em outro lugar, o problema é quando essas pessoas transformam a vida dos nativos um inferno. Os crimes cometidos contra os judeus por toda Europa e em diferentes épocas, são crimes injustificáveis, cruéis e desumanos, porém nenhum desses crimes foi cometido por palestinos. O mundo tem sim uma dívida com o povo judeu que deve ser paga, mas não as custas do povo palestino. – Quando será que a comunidade internacional entenderá que a tentativa de saudar a dívida do holocausto deveria assumir as responsabilidades sobre ela, não jogar nas costas do povo palestino. – Comunidade Internacional, sua dívida agora é com o povo palestino!


“Israel não é um Estado de toda a sua cidadania [...] é o Estado do povo judeu e apenas deles”. Postagem publicada pelo Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, 2018.

Que os judeus possam se identificar como um grupo unido por sua religião, isso é completamente compreensível, no entanto, eles não podem dizer que estão unidos como grupo étnico; até porque o hebraico , idioma oficial em Israel, foi adotado para criar uma identidade nacional fictícia e facilitar a comunicação entre imigrantes que falavam diversos idiomas diferentes. Antes disso, os primeiros-ministros israelenses, seus pais e avós, falavam russo, ucraniano, polonês, alemão e outros idiomas europeus, há pelo menos 2 mil anos. Assim, o sentimento de pertencimento palestino é uma característica étnica e o judaísmo é uma característica religiosa. Por conta dessa mesma “palestinidade”, depois de décadas morando no Caribe, aquele senhor estava de volta à sua terra, e vendendo lindos vestidos de bordados tão originalmente palestinos como ele.


“O pedido por um lar nacional para os judeus não me convence. Por quê eles não fazem, como qualquer outro dos povos do planeta, que vivem no país onde nasceram e fizeram dele o seu lar? A Palestina pertence aos palestinos, da mesma forma que a Inglaterra pertence aos ingleses, ou a França aos franceses.” Mahatma Gandhi, em 1938.

Muath mandou mensagem, fomos encontrá-lo. Ele parecia nervoso, mesmo estando com dois celulares nas mãos, por conta da chuva, nenhum deles tinha sinal; e como também não falava inglês, sentiu-se incomodado por não conseguir se comunicar. Eu escrevi no meu tradutor, mas Muath não podia responder porque meu celular não possui os caracteres para escrever árabe. Como que um lapso, olhei para o Muath e para Di e soltei um “yalla, yalla”. Voltamos até o senhor que falava espanhol para poder traduzir pelo menos cinco minutos de nossa conversa.

O senhor, extremamente prestativo, traduziu que o Muath estava nos convidando para ir até sua casa no campo de Dheisheh, em Bethlehem. Pedi para o tradutor dizer que já estava tarde e que não poderíamos ir e voltar a tempo. A Di olhou para mim e quase me bateu “O cara saiu nesse temporal e dirigiu até aqui para te conhecer, você vai mesmo deixar ele ir embora?” Realmente eu nem tinha pensado nisso, estava preocupado com o transporte e com a violência dos soldados e colonos atacando carros palestinos na estrada, mas a Di tinha razão. Antes do tradutor terminar, corrigi dizendo novamente “yalla, yalla”.

Tudo que tinha para chover na Palestina parece que choveu hoje, mas o dia começou a mudar assim que entramos no carro. O céu se abriu, o sol apareceu e deu até para tirar uma camada de casaco. Muath parou conosco em algumas partes da estrada, conhecemos uma fonte natural e alguns locais que não estão e nenhum mapa turístico. Em uma das paradas, caminhamos por uma trilha em direção a um riacho, mas como havia chovido, o rio estava transbordado e tivemos que retornar. Mais adiante, o carro parou novamente no acostamento e descemos. Estávamos no alto de uma colina, abaixo de nós se estendia um profundo e longo vale. Apontando para uma cadeia de montanhas que se erguiam no horizonte, nosso amigo nos certificou que aquela era a Jordânia. Tão perto e tão longe. Queríamos muito ter conhecido esse país, principalmente as cidades de Omã e Petra, mas vai ficar para próxima, por hora, nos contentamos em apenas observar o horizonte.

Seguimos por mais alguns quilômetros até Muath perceber que estava no horário da oração. Ele nos pediu licença e parou novamente o carro, mas não sem antes escolher a vista mais bela de todas. Ele pegou seu tapete e estendeu no local mais alto, a qual pegava os últimos raios do sol. Olhando para Muath, pensei em todos os outros palestinos, sírios e afegãos que cruzamos pelo caminho, todos religiosos. Fiquei pensando em tudo que essas pessoas haviam passado por suas vidas até o ponto que nossos caminhos se cruzaram. Percebi que apesar de minha arrogância ser tão grande quanto minha descrença, nem se comparava ao tamanho da fé daquelas pessoas. Me senti um ignorante completo, e um idiota por tantas vezes ter descredibilizado as crenças alheias. A Di, minha mãe, e todas as pessoas com quem refutei sobre Deus estavam certas, e eu estava errado. Não que tenha tido uma iluminação espiritual, ou tenha de uma hora para outra acreditado em uma divindade soberana, mas me senti injusto por reclamar tanto da vida enquanto outros (com verdadeiros motivos para reclamar) estavam apenas agradecendo. Compreendi que enquanto eu reclamava, pessoas que sofreram tantas perdas, uma dor que eu não tenho nem como descrever, estavam parando suas vidas no meio da estrada para agradecer por aquele momento do dia; Muath agradecia por nos conhecer e eu me sentia um bosta de não agradecer por tê-lo conhecido. Nunca em minha vida eu senti vontade de orar, algumas vezes, eu cheguei a repetir as palavras na missa, ou mesmo negociar e fazer as minhas exigências para Deus; mas nunca, nunca mesmo, senti vontade de agradecer por mais um dia de vida; mas ali com Muath, achei que não tinha o direito de não o acompanhar. O que senti, falei para Deus ou as palavras que joguei aos ventos, é algo que ainda estou tentando decifrar. Quem sabe um dia, quando tiver uma opinião menos arrogante e deixar de ser um bosta, eu possa colocar em palavras, mas hoje, ainda não estou pronto.

Chegamos no Campo de Dheisheh à noite. Este campo foi estabelecido como abrigo temporário para três mil pessoas expulsas de Jerusalém e Hebron durante a Nakba. Como em todos os campos de refugiados dentro da Palestina, ou em outros países limítrofes, essas pessoas nunca puderam voltar, portanto, transformaram o que era temporário em permanente, e o que era três mil pessoas se multiplicou em dezenas de milhares. O Campo de Dheisheh, também se tornou muito importante para a luta de libertação nacional, principalmente durante os eventos da Primeira Intifada, quando a única entrada e saída foi fechada pelo exército israelense com cercas e arames farpados. Toda história, batalhas e mártires, estão estampados em grafites nos muros de Dheisheh. Lendo tudo que já escrevi sobre sua casa, Muath sabia que era importante para mim estar ali. Ele dirigiu um pouco por aquelas ruas estreitas, uma a uma, apontava para as casas e dizia os nomes das pessoas que habitavam ou habitaram um dia, alguns que eu conhecia bem a história. Não fosse pela chuva que voltou a cair, eu teria pedido para descermos para caminhar um pouco.

Muath estacionou e nos convidou para entrar, era sua casa. Seus filhos chegaram para nos receber. As crianças estavam muito curiosas, principalmente sua filha de 11 anos. A menina trouxe uns copos pequenos para nos servir, pensei “Será que é álcool?” Não bebemos há pelo menos uns sete anos, e não queria a voltar a beber logo hoje, seria difícil, mas eu teria que recusar; como fazer isso pelo Google tradutor é que é complicado. Peguei o copo, a Di perguntou o que era, cheirei e disse que não sabia. A esposa de Muath entrou na sala e me pegou com o nariz dentro do copo, ela sorriu e, sem menosprezar minha ignorância, disse uma única palavra “Zamzam”. — “Ufa!” Resmunguei baixo para Di.

Segundo o islamismo, o anjo Jibril (Gabriel) abriu o Poço para Hagar (serva egípcia de Sara, também esposa de Abraão) e seu filho Ismael não morrerem de sede no deserto. O poço fica próximo à Kaaba na cidade sagrada de Meca, na Arábia Saudita. Milhões de peregrinos que viajam à Meca todos os anos trazem água desse poço, ao qual dizem possuir propriedades medicinais e divinas. Coincidência ou não, ontem havíamos conversado com a Ruayda sobre essa água, e hoje estávamos ali prontos para provar. Fomos servidos da água de Zamzam não uma, mas duas vezes; uma das maiores honras que um visitante estrangeiro pode receber em uma casa de muçulmanos.

Conversamos todos pelo celular até que sua esposa nos trouxe um jantar maravilhoso. Comemos todos juntos. Um tio de Muath chegou, um homem muito educado, sua voz ecoava pela sala com toda calma do mundo. Ele estava entusiasmado para saber mais sobre nós, e nós, ainda mais para saber sobre ele, afinal estávamos na presença do Mufti da cidade de Belém, um dos mais queridos da Palestina. Enquanto conversávamos com o Mufti, outro tio de Muath, esse bem mais velho, chegou para ajudar com a comunicação. O velhinho morou um tempo no Brasil e na Argentina. Apesar de estar há mais de 40 anos sem falar português ou espanhol, conseguiu traduzir nossa conversa muito bem. A Di não conseguia disfarçar, ela não tirava o olho daquele senhor e eu sabia exatamente o porquê. Esse segundo tio de Muath tinha todos os trejeitos do seu João, o avô da Di falecido há pouco tempo. O mesmo jeito encolhido na cadeira, jeito de sorrir, coçar a cabeça, andar, se movimentar com dificuldade, falar, absolutamente tudo naquele senhor lembrava o Sir John. Percebi que a Di ficou emocionada e eu sabia que era saudade. Conversamos muito com toda família.

A hospitalidade Palestina não tem comparação. Ficamos algumas horas com a família Amarneh, até que pedi, contra vontade, para nosso anfitrião nos deixar no local onde pegaria o transporte para Ramallah, ele insistiu que nos levaria até lá. Insisti um pouco mais que já era tarde e que ele já tinha dirigido muito. Ele insistiu ainda mais. Não tinha como debater se íamos ou não com ele de volta para Ramallah, pedi pelo menos para ajudar com a gasolina, Muath encerrou a assunto.

A chuva não deu trégua nem no caminho de volta. A Di pediu para que eu parasse de falar com Muath (pelo celular) porque iria atrapalhar ele a dirigir. Mas eu não conseguia parar de falar e pelo jeito, ele também não. Passamos o dia todo assim, escrevendo e traduzindo pelo celular. Eu escrevi em português e mostrava para ele, que; traduzia a resposta enquanto dirigia e me mostrava de volta. A Di tentou dormir para não ver o momento exato do acidente. Realmente, a estrada de Belém é perigosa, em uma das curvas, Muath puxou o volante com força, jogando o carro de lado e cantando pneu. A Di deu um pulo no banco de trás perguntando o que tinha acontecido. Meio a uma curva fechada, havia um monte de areia derrubado no meio da pista, e Muath conseguiu tirar o carro a tempo. Olhei para Di, ela estava pálida, tentei acalmá-la dizendo: – Israel pode até ter arrancado um olho dele, mas o que sobrou é bom mesmo! A Di não achou graça e ficou ainda mais brava. Traduzi o que tinha dito para Muath, ele sim riu, mas disse: nem tanto, ou você acha que estou usando óculos para o olho que não tenho? – O que sobrou também não funciona muito bem! Ouvir, isso de um motorista que está dirigindo em uma estrada perigosa à noite, com chuva enquanto traduz mensagens no celular não é muito confortável, admito.

Muath nos levou até a portaria da universidade de Birzeit, lá, liguei para Abu Khaled que foi nos buscar com Ayman. Abu Khaled chegou rindo de nossa aventura, quanto mais contávamos sobre nosso dia, mais Abu Khaled e Ayman riam. Ayman não conseguia acreditar que fizemos tudo aquilo em um único dia sem saber falar árabe, “tem coisa que não tem explicação pequeno gafanhoto”, disse para Ayman. Ficamos todos ali conversando uns dez minutos na frente da universidade, até que percebemos que Abu Khaled estava com o carro estacionado em fila dupla, e havia uma viatura da polícia atrás, esperando para passar. Muath nos deu um abraço apertado, e foi embora.

Já em casa, repassei os áudios gravados da entrevista com o diretor do museu Sakakini com Abu Khaled. A Di, não conseguia disfarçar o cansaço, ela queria apenas um banho quente e a cama, eu também, mas ainda precisava transcrever o material.


VELADO

Kobar, 1 de fevereiro de 2023


Mulheres são mulheres em qualquer parte do mundo. Seja no Brasil, Afeganistão ou Austrália, todas carregamos o peso das culturas e costumes de nossas próprias sociedades; isso sem contar o peso de nossas próprias histórias. Antes de vir para Palestina, eu e o Lu conversamos muito sobre a posição da mulher nas sociedades do Oriente Médio e principalmente nas comunidades islâmicas. Eu tinha uma visão muito diferente. Quando estivemos no Egito, vi uma cena muito impactante para mim, uma mulher de burkini na praia e ao lado uma jovem europeia fazendo topless – isso sem falar no camelo. Fiquei pensando o quão a vida daquelas mulheres é diferente da minha. Desde que passei por essa cena, o uso ou não do véu é algo que tem me intrigado. Apesar de Turquia, Egito e Palestina estarem no Oriente Médio e todos serem países predominantemente islâmicos, o uso do véu, hijab, xador, niqab ou burca são bem diferentes: na Palestina usa-se bastante; no Egito bem menos; na Turquia menos ainda. Isso porque em todos esses países cobrir a cabeça é, ou deveria ser uma escolha.

Costumamos pensar – eu pensei um dia – que o véu havia sido uma criação islâmica. A religião teve papel fundamental na adoção dessa prática, mas longe de ter sido inventada por ela, menos ainda da maneira como vemos. O uso do véu vem bem antes do surgimento do islã. Você já parou para pensar que Maria, mãe de Jesus, usava véu? Ela não era muçulmana.

O véu se originou nos seios de antigas culturas indo-europeias . Em um texto assírio datado do século anterior a Era Comum, a prática do véu é mencionada como reservada às mulheres de famílias ricas e proibido para mulheres pobres. Além de proibidas de usar o véu, se fossem pegas, essas mulheres eram castigadas; e olha que naquela época o apedrejamento estava na moda. – Mas não está fazendo sentido, né! Vou chegar lá. – O véu era destinado somente para as mulheres ricas para evitar que as filhas ou esposas de alguém “importante” fosse molestada, violentada ou sofresse qualquer outro tipo de agressão, “comum” às mulheres de todas as épocas. As mulheres ricas eram vistas como joias preciosas e intocáveis. Por isso as mulheres pobres eram proibidas de usar; essas sim podiam ser estupradas ou agredidas na rua sem ninguém se importar ou apedrejar um homem por isso.

Com a revelação da palavra de Deus ao profeta Muhammad, para evitar que as mulheres muçulmanas fossem tocadas pelos homens – principalmente os bizantinos e cruzados cristãos – o véu foi designado para todas as mulheres muçulmanas; ricas, pobres, brancas ou negras, absolutamente todas! Aos olhos do islamismo, e do profeta, todas as mulheres eram intocáveis.

Ficou fácil para mulheres cristãs questionar o uso ou proibição de um país com outra cultura e outra religião. Comecei a perceber os olhares das pessoas nas ruas do Brasil quando veem uma mulher de véu ou hijab; eu mesma já usei e uso. Os olhares não são só de curiosidade, são de preconceito e discriminação, dessa maneira me pergunto: – Não seria o preconceito, o machismo, a misoginia, e a discriminação uma prática mais velada e comum de nossa sociedade?


MÃES FEDAYINS

Kobar, 2 de fevereiro de 2023


Cheguei na Palestina com uma imensa vontade de pintar, queria muito expressar tudo que estava sentindo. Pintar é a maneira que tenho para colocar todo sentimento para fora, mesmo os desenhos que fiz pelo caminho, não foram suficientes para suprir essa necessidade. Minha vontade era deixar aqui um pouco da minha arte, para mostrar como me importo com o que estava acontecendo. Mas, como nada é por acaso e um artista não escolhe o que sente ou quando sente, minhas ideias e meus sentimentos acabaram se transformando, tão rápido como mudam as dunas no deserto.

Parte das mudanças aconteceram por conta da alteração em nosso roteiro, já outra parte por conta do que vivemos nos últimos dias. Para começar, ficaríamos na casa do Jehad, além dele não poder vir, sua família ainda teve alguns problemas pessoais enquanto estávamos na Turquia. Acontece que a hospedagem em Israel é muito cara, a mais cara que já pagamos na vida, sem contar que ficamos em um hotel racista, qual o dono tinha até uma bandeira do batalhão Azov . Na Palestina o hotel é um pouco mais barato, mesmo assim você precisa estar atento aos acontecimentos e onde as IOF estão atacando. No fundo, eu sabia que os planos para a segunda parte da viagem daria tudo errado. Já tinha até desistido de pintar e resolvi vestir o manto do “seja o que Deus quiser”. Acabamos sendo acolhidos pela Ruayda, Mohammad e Ayman, o “errado” não poderia ter dado mais certo, o que ascendeu novamente minha vontade de pintar, porém, eu ainda tinha outro problema para resolver, meu emocional.

Geralmente, gosto de pintar coisas bonitas que transmitam a felicidade ou “a cor da minha vida” como o Lucas costuma dizer, era isso que eu queria fazer na Palestina. Pintar essas mulheres lindas com seus hijabs, lenços e vestidos bordados, tão lindas quanto elas merecem. Quando vimos pela Al-Jazeera, a felicidade das mulheres – mãe, irmãs, sobrinhas, filha e avó – abraçando e recebendo calorosamente seu filho que voltava para casa depois de 15 anos de cativeiro sionista, pensei ser aquela felicidade que queria passar para tela. Aquele sentimento de “a dor foi superada”, não esquecida, mais superada. Eu não sabia, mas o sentimento que assistimos no jornal, na noite seguinte se transformou em outro completamente diferente. A alegria foi tomada pela tristeza e a dor das mães de Jenin que perderam seus filhos em mais um ataque israelense. Eu vi as cenas de mães em completo desespero velando seus filhos. Eu sou mãe, não consigo imaginar uma dor maior que carregar o caixão de um filho; geralmente são os filhos que carregam os caixões de suas mães, não o contrário, mas a ocupação consegue inverter até mesmo a ordem natural da vida; e só aqui essa desumanidade acontece com tanta frequência. Não há a menor possibilidade de qualquer mãe assistir à perda de outra sem se deixar abalar. Desde que chegamos aqui, eu tenho acompanhado e sentido o sofrimento dessas mães, esposas e filhas. Mulheres que lutam diariamente contra a ocupação com qualquer outro fedayin, e ainda por cima carregam o peso dos caixões dos próprios filhos.

Quando estivemos em Hebron, conversei com a mãe do W., enquanto falávamos pelo tradutor, fiquei pensando no sofrimento que aquela mulher sentiu ao ver o filho ser espancado pelo exército colonizador. Eu tenho um filho da mesma idade que o W. Como mãe, me coloquei no lugar daquela mulher diante de mim, fiquei pensando em quantas orações aquela mulher já pediu para que Allah protegesse seu filho para não ser preso ou assassinado; ou mesmo quantas vezes agradeceu a Deus por trazer seu filho vivo para casa. Benção que as mães de Jenin não tiveram; benção que a mãe de Jerusalém que teve o filho queimado vivo não teve; benção que, outras incontáveis mães palestinas não tiveram.

No tempo que estamos na aqui, pude assistir um pouco do sofrimento daquelas mulheres. Fiquei com a imagem de cada um de seus rostos em minha cabeça. Ainda pior era sentir a dor de cada uma delas, uma dor que só cresce em terras palestinas.

A raiva de saber que o mundo se cala perante a dor dessas mães, me fez repensar, eu não me permitiria ficar só como telespectadora como o resto da comunidade internacional que vem aqui, tiram suas fotos e vão embora. Eu gritaria junto com as mães palestinas e colocaria através do que faço de melhor toda minha solidariedade, mesmo que isso custasse minha própria sanidade. A ideia de pintar lindas palestinas ainda existe, mas saber que tantas mães, irmãs, tias e avós sofrem diariamente com a ocupação da Palestina, não pode nem deve esperar, eu não esperaria mais. Essas mulheres precisam saber que não estão sozinhas, precisam saber que nos importamos e dividimos a sua dor!

Quando disse que tudo de “errado” acabou dando certo, me referia a família que nos acolheu de última hora e sem nenhum plano específico. Com a Ruayda, vi que a mulher palestina é forjada em sofrimento, mas permanece de pé, não por conta desse sofrimento, mas apesar dele; assim como por conta do amor; seu amor pela vida, pela família, pela terra, e pela Palestina.

Entendo que as mulheres são os pilares de qualquer sociedade, mas, na Palestina seu papel é de protagonista. Essas mulheres não se curvam a submissão, seja a imposta pela força de ocupação ou mesmo por sua própria sociedade. É certo que ainda existem muitos costumes patriarcais e outros que devem ser tratados na Palestina – como em todas as outras sociedades –, no entanto a emancipação com maior urgência aqui é, obviamente, a luta contra a ocupação israelense, é essa que prende, tortura e mata os filhos e filhas dessa terra.

Como mulheres, enquanto suportamos ou mesmo superamos caladas as desigualdades que nos são impostas, sofreremos. Enquanto nos calarmos por tantas outras que sofrem os horrores mais inimagináveis, seremos coniventes. Eu sei que se um dia nos unirmos e lutarmos contra todas as injustiças cometidas contra outras mulheres, sem distinção de cor, nacionalidade ou religião, o mundo vai poder evoluir de verdade.

Com ajuda de Mohammad e Ayman, consegui comprar um pouco de material de pintura e hoje estou aqui, com uma tela em branco e uma ideia: retratar as mães fedayins. Tentar mostrar através da arte que faço, um pouco da força daquelas que compõem metade das linhas de resistência, e que ao mesmo tempo, deram a vida a outra metade!


SOLDADOS

Tel Aviv, 3 de fevereiro de 2023


Jesus disse: “Mas, quando virdes Jerusalém cercada de exércitos, sabei então que é chegada a sua desolação.” Lucas 21:20


Soldados circulam por todos os lados, meninos e meninas cheios de si, como se fossem os últimos defensores da pátria. Eles passam por nós desconfiados, se distanciam, mas os cães os trazem de volta, deve ser por causa dos pacotes de zatar e sálvia que estamos carregando, ou quem sabe nos acham parecidos com os palestinos. Enquanto aguardamos o horário de embarcar de volta para casa sentados aqui no aeroporto, escrevo sobre surreal dia que enfrentamos. É melhor escrever agora, deixar para depois minimizaria a raiva que estamos sentindo.

Sendo nosso voo às 4h, saímos de Ramallah com 12 horas de antecedência. É doentio ter que sair todo esse tempo com antecedência para atravessar menos de 70 km. Para chegar ao aeroporto teríamos que ir para Ramallah e pegar um ônibus com destino a Jerusalém e de lá um trem para Tel Aviv. Passando pela capital administrativa palestina, compramos mais uma mala para colocar as encomendas do Jehad. Viajar no frio é bom, mas carregar 4 malas, uma bolsa e duas mochilas é um “saco”. Nossa família adotiva nos levou até o estacionamento das vans. Abu Khaled saiu perguntando sobre o transporte para Jerusalém; um dos motoristas disse que não teria mais carros e teríamos que ir até Qalandiya e atravessar pelo checkpoint até o lado israelense. Sem problemas, tínhamos tempo e estamos acostumados com essas mudanças de planos; só não estávamos a fim de ficar cara a cara com os soldados sionistas, mas tudo bem.

Toda vez que nos despedimos de alguém que gostamos sabendo que não nos veremos mais, ao menos não tão cedo, é mesmo complicado. Nos últimos dias essa família nos acolheu e fez de tudo por nós, nos sentimos realmente como membros de um clã palestino, dificultando ainda mais o momento de dar tchau. Nos abraçamos, trocamos as últimas palavras. Ayman, gentil como sempre, me passou a última lição de português/árabe ali mesmo. Abu Khaled e Ruayda aproveitaram para fazer as últimas recomendações quanto ao trajeto e nos despedimos à maneira típica palestina, curto e grosso, porém transbordando carinho. Nunca, “nunca esqueceremos de tudo que fizeram por nós”, foram nossas últimas palavras antes de subir no táxi.

Em Qalandiya o motorista nos apontou para o checkpoint, descarregamos as malas, iria começar o inferno. Pelo lado de fora, a barreira sionista parece com um abatedouro de gado, de fato é! Estava vazio, caminhamos pelos corredores externos. Sabe aquelas filas intermináveis de aeroporto que você fica andando em zig-zag por entre fitas? Usando sua imaginação, substitua as fitas por paredes de ferro com grade como cobertura. Ainda para ser mais cruel, aqueles intermináveis corredores que milhares de palestinos precisam passar ao menos duas vezes por dia, ficam do lado externo. A engenharia sionista é tão cruel que não bastava construir aquela monstruosidade, eles colocaram grades na parte do teto, assim, enquanto esperam nas filas do abate, os palestinos enfrentam o frio, a chuva, ou o intenso sol de verão do Oriente Médio.

Ao tratar os palestinos como animais, os próprios sionistas se transformam na pior, mais cruel e selvagem de todas as espécies.

Na parte interna passamos pela primeira verificação com os soldados. Fui colocando as malas no raio X enquanto a Di passava pelo detector de metais. Pi pi pi. Aquela merda apitou, foi então que a primeira besta selvagem começou a bater no vidro e gritar em hebraico. Se não falamos nem inglês, quem dirá hebraico. Começamos a responder em português. Uma observação: costumamos aprender pelo menos as palavras correspondentes à boa educação em cada país que visitamos; obrigado, com licença e por aí vai; mas como ali os soldados são tão estrangeiros como nós, não existia a necessidade de aprender nada. A soldada, uns vinte anos de puro ódio, ficou irritadíssima. Outro rapaz, também de uns vinte e poucos anos, apareceu para dar apoio para menina. Ele falava em inglês, mas como nós não falamos bem e não estávamos nem um pouco dispostos a sermos simpáticos, bati o passaporte no vidro e respondi um alto e claro “no speak english”. A fila foi se formando atrás de nós, a essa altura uns 5 palestinos tentavam nos ajudar com as malas pelo raio X e o inferno daquele detector de metais que não parava de apitar.

Com muito custo, depois de umas trezentas tentativas, a Di conseguiu passar. Na minha vez eu já tinha tirado tudo dos bolsos, os casacos, a bota, a touca, tudo que podia; passei sem apitar.

Em um corredor longo, chegamos às portas giratórias. Passamos por umas três. A Di ia à frente e uma a uma eu passava as malas e mochilas. Profundamente irritado, minha vontade era de largar aquele monte de mala ali mesmo. Essas portas não são como as dos bancos, elas são roletas de ferro do chão ao teto, e também muito espremidas. Soldados em outra guarita a frente se divertiam em nos ver passando pela última catraca, o que me irritava ainda mais. Quando íamos girar a última roleta entre nós e Jerusalém, outra israelense, ainda mais insana que a primeira começou a gritar com a Di. Estressada com a abordagem, a Di seguiu o plano de só falar português. A menina espumava pela boca enquanto socava o vidro. Por um buraco na cabine passamos os passaportes. Enquanto a menina gritava em hebraico como se o volume da voz fosse nos fazer compreender o idioma, a Di comentou que parecia o zumbi que tenta quebrar o vidro com a cabeça no filme “Eu sou a lenda”, realmente parecia. Como na guarita anterior, saiu outro soldado com um fuzil na mão, ele me perguntou em inglês o que estávamos fazendo em Qalandiya. Não vou nem comentar o que pensei em responder, disse em português “no Qalandiya, Jerusalém, Je–ru–sa–lém”. Enquanto a zumbi continuava a bater a cabeça no vidro, com outras amigas que se juntaram a ela para assistir o circo, o soldado fez perguntas, as quais algumas eu não entendi e outras ignorei, só respondia, e em português, “i´m Brazil, no speak english, you speak portuguese?” Ele insistiu e perguntou se conhecíamos alguém na Palestina. Eu queria muito responder que sim, conhecíamos pessoas, seres humanos maravilhosos, educados, amáveis, carinhosos e gentis, tudo que os israelenses não são, mas não podia. Se passássemos por uma revista, encontrariam em nossas malas muitas coisas árabes e turcas, e de alguma maneira poderiam chegar a Ruayda e Abu Khaled; se abrissem minha lista de contatos no whatsapp seria ainda pior; portanto, obviamente, neguei conhecer pessoas na Palestina!

Com muita dificuldade passamos. Por estarmos na Palestina, aqueles jovens queriam tentar de alguma maneira nos atrasar, eles sabiam que se estávamos ali, naquele checkpoint é porque somos simpáticos a luta de emancipação palestina. Liberados pela roleta saímos sem olhar para trás, só ouvíamos ao longe os gritos dos zumbis. De certa forma os soldados são mesmo zumbis, e o sistema de educação israelense faz de tudo para que isso se torne possível. Nurit Peled-Elhanan, professora de língua e educação na Universidade Hebraica de Jerusalém, após ter a filha assassinada em um atentado suicida, iniciou uma pesquisa científica sobre a ideologia e a propaganda usada nos livros didáticos israelenses. O resultado da pesquisa apontou que a educação e os materiais didáticos são ferramentas utilizadas para alienar os jovens que em poucos anos estarão fardados e com um fuzil apontado pra os palestinos.

Nas escolas israelenses as crianças passam por todos os anos escolares sem ver uma única fotografia de uma pessoa palestina nos livros que estudam. Geralmente quando retratados, os palestinos são representados por ilustrações infantis de árabes do século XIX, como se todo palestino fizesse parte de uma comunidade internacional árabe que compartilha dos mesmos hábitos e culturas; essa estratégia visa o argumento de que os palestinos podem se mudar para qualquer país árabe. Outras vezes, ao se falar dos Territórios Palestinos Ocupados, as áreas da Cisjordânia, como Hebron, permanecem vazias e sem informações sobre quem habita ou o que há no local, um “espaço em branco pronto para ser habitado”.

Essas “categorias de discurso racista” tentam apagar a existência das pessoas nativas, transformando-as no “problema palestino”. Os livros didáticos israelenses objetivam desumanizar os palestinos, deturpar as incursões de limpeza étnica, glorificar os heróis da causa sionista e, acima de tudo, criar zumbis alienados e cheios de sede de sangue.

Andando pelo último corredor, dessa vez muito escuro, mal iluminado, sem nenhuma sinalização e as moscas, chegamos a uma bifurcação. “Fudeu”! – e agora? Como não tinha um único palestino para seguir, escolhemos o caminho da direita. Caminhamos um pouco e quando vimos, estávamos na frente do matadouro novamente, agora pior, não tinha como voltar. Teríamos que fazer o trajeto da morte tudo de novo. No fundo eu sabia que a direita sempre é o caminho de merda que nos faz andar para trás.

Com mais fúria, e agora com muito mais motivos, passamos novamente pelos percursos: labirinto externo de ferro; porta giratória; porta giratória; porta giratória; raio X; detector de metais; soldados furiosos; porta giratória; porta giratória; porta giratória; guarita dos zumbis. Quando a zumbi viu a Di novamente ali, ela ficou ensandecida – eu nem sabia que era possível um zumbi passar de nível, agora sei. A menina só faltava enfiar a cabeça pelo buraco da guarita para morder. Estávamos realmente muito irados, e tínhamos motivos para isso, era exatamente o que a menina queria ver. Falei para Di, vamos rir e mostrar que não temos medo, embora tivéssemos, afinal, eram jovens sem nenhum bom senso e com um fuzil enorme. Começamos a rir e passar as malas, como dois turistas burros ao estilo “Debi & Loide”. Passando do nível “hard”, a menina se levantou para bater no vidro e olhar para Di, ainda mais provocante, além de rir, a Di não olhou para ela uma única vez, como se ela não estivesse ali dando aquele show. O soldado novamente nos deixou passar, embora a menina discordasse, com os cabelos já bagunçados ela gritava e espumava com o soldado. Passamos, quando olhei para trás, “puta que pariu, esquecemos uma mala”. “Caralho, merda”, recitando todos os palavrões que conhecia, pensei “vou ter que dar a volta tudo de novo”, mais que “porra!”.

A fim de se livrar logo de nós, e fazer aquela menina calar a boca e parar de gritar, o soldado saiu da guarita e foi buscar a última mala. Dessa vez, o ódio da zumbi se voltou para seu companheiro, ela tentou agarrar seu braço no intuito de impedi-lo de ir buscar a mala. Ela queria um motivo para nos dar um tiro, e uma mala para trás pode ser justificado como “sinal de bomba”, aí eles atiram mesmo, já fizeram antes, e se não fosse gringos, teriam feito novamente. O soldado pegou a mala, me entregou e apontou para a esquerda, por uma passarela escura.

Agora falta pouco para chegar em casa, porém, como você mesmo “leitor” já se cansou de nos ver escrever aqui, andar pela Palestina demanda da vontade dos soldados israelenses, por isso saímos quase 12 horas antes, para atravessar um caminho de 60 km de puro ódio. Os soldados tentaram de todas as maneiras nos atrasar, embora uns ou outros tentassem nos morder eu espalhar nossos miolos pelo chão com um tiro. No fim das contas, cá estamos, já fizemos o check-in e agora aguardamos para voltar para casa. Mas parece que essa odisseia não acaba. Aqui mesmo no aeroporto, já respondemos mais algumas perguntas idiotas, como: foram vocês que arrumaram as próprias malas? Estão juntos? Quanto tempo vocês estão casados? Possuem algum explosivo? – Fico com a língua coçando com todas essas baboseiras. Agora é hora de voltar para nossas vidas e continuar lutando contra esse sistema que oprime por um lado e por outro cria zumbis e os alimenta com o mais puro ódio; o resultado disso, são massacres como o do campo de refugiados de Jenin.

Naturalmente os soldados israelenses, assim como o jovem que cometeu o atentado em Jerusalém foram jogados para essa situação ocasionada por um regime de apartheid que propaga cada vez mais o racismo. Assim como nem todos os palestinos acreditam na luta por meio de armas, alguns soldados israelenses também não estão dispostos a agredir e violar os direitos palestinos. Em Israel alguns ex-soldados das forças de ocupação entenderam como e o que é o sionismo. Após o serviço militar obrigatório, arrependidos de suas próprias contribuições, os jovens fundaram a organização Breaking the Silence, a qual se dedica a palestrar nos territórios ocupados para outros jovens soldados, e também participam de manifestações a favor da Palestina.

Como essa organização é israelense, judaica e de ex-militares, estava moldando a opinião pública e denunciando os crimes e violações, o Estado de Israel resolveu classificá-los também como organização terrorista. Claro, para qualquer regime autoritário, “se você não está conosco, está contra nós!”

Apesar das tentativas de silenciamento e repressão por parte do Estado de Israel, organizações como a Breaking the Silence continuam a desafiar a narrativa oficial e a lutar pelos direitos humanos e pela justiça na Palestina. Esses veteranos, ao reconhecerem os horrores da ocupação e do sionismo, estão contribuindo significativamente para conscientizar outros jovens israelenses sobre a realidade da vida na Palestina e os abusos cometidos pelo Estado de Israel.

A trajetória desses militares que se tornaram ativistas é um exemplo poderoso de como é possível questionar e desafiar sistemas de opressão, mesmo quando se faz parte deles. Suas vozes são essenciais na luta contra a desumanização dos palestinos e na promoção de uma paz verdadeira e duradoura na região.

À medida que mais pessoas em Israel e ao redor do mundo se conscientizam sobre a situação na Palestina e se engajam em ações de solidariedade e defesa dos direitos humanos, há esperança de que um dia a injustiça e a opressão sejam superadas e que todas as pessoas na região possam viver em paz e dignidade.



SHUKRAN FALESTINE

Madrid. 4 de fevereiro de 2023


Saímos de casa há trinta e poucos dias à procura da Terra Santa. Porém, encontramos diversos conceitos para “Terra Santa”. Tantos que não há mochila ou mala grande o suficiente para colocar.

Na Turquia aprendemos que o conceito de santidade está profundamente vinculado ao conceito de “liberdade”. Se nos perguntarem se encontramos a santidade na Turquia, podemos dizer que sim. Na Capadócia reviramos igrejas cristãs primitivas esculpidas em cavernas; em Istambul vislumbramos mesquitas tão antigas quanto o próprio Islã. Entretanto, Izmir nos ensinou que a verdadeira santidade repousa na diversidade religiosa e em sua liberdade de escolha individual. No passado, os turcos tiveram liberdade para escolher a própria religião, e assim o fizeram; mas também optaram por manter um estado secular livre da imposição religiosa. Fé e espiritualidade existem em cada indivíduo de maneira diferente, portanto, um estado tão plural como a Turquia não pode ser livre e democrático se impuser os dogmas de uma única religião. Encontramos a Terra Santa na Turquia exatamente pelo fato dos turcos poderem escolher por sua própria vontade o que consideram ou não santo.

Para a Palestina. Ah, Palestina! Mãe de tantos mártires e heróis; essa carregamos em espaço cativo no coração. Se encontramos a Terra Santa aqui, sim! Em coisas completamente diferentes das quais pensávamos. Encontramos a santidade, não em igrejas, muros, mesquitas, tumbas, sinagogas ou estações da Via Crucis. A santidade palestina reside em seu povo. Santidade que descobrimos um pouco devido aos amigos que fizemos; outros tantos pelas histórias que ouvimos; pelas coisas que vimos; e claro, por todas as lágrimas que derramamos juntos.

Agora, a caminho de casa, ou pelo menos da cidade onde nasci, relembro todos os momentos vividos nos últimos dias e aproveito para reler algumas notas escritas. Abro a primeira, qual já nem lembrava ter escrito; nota que escrevi ao começar esta viagem, justamente quando fazia o caminho oposto ao que faço agora.

“Estou cruzando São José dos Campos. Olhando pela janela percebo como essa cidade mudou nos 13 anos em que já não vivo mais aqui. Observo as mudanças externas e reflito como eu também mudei nesses últimos 13 anos. Mas assim como São José, apesar das mudanças, ainda preserva muito do que a torna a cidade que é – seja para bem ou para mal – assim como eu – seja para bem ou para mal. Gosto de pensar que estou completamente desenraizado, principalmente quando deixo a cidade passar sem olhar para trás, mas como disse, ainda tenho minhas raízes conectadas nesta terra como um cordão umbilical, que não consigo ou não quero que seja cortado.” 1 de janeiro de 2023.

Relendo essa pequena nota, entendo que saí para procurar o que sempre es¬teve diante de meus olhos; algo que os palestinos descobriram há muito tempo. Explico: passamos por checkpoints com os palestinos; vimos casas sendo demolidas pela ocupação; sentimos medo durante a noite; viajamos em transporte público; ficamos presos em estradas; fomos humilhados por soldados; choramos juntos por jovens assassinados no meio do dia. Por outro lado, rezamos juntos; jantamos no mesmo prato – como de costume; cuida¬mos da terra; podamos oliveiras; sorrimos, nos divertimos e, acima de tudo, amamos e nos sentimos amados. Dessa maneira entendi que a Terra Santa, para os palestinos é sua própria terra; onde eles vivem ou sonham em viver com todos aqueles que amam. É por essa terra que os palestinos morrem, para que um dia ela seja liberta e seus entes queridos possam retornar.

O conceito de Terra Santa é diferente para turcos, israelenses e palestinos, tão quanto é para mim, para Di, ou para você caro “leitor”. No último mês procurei pela santidade em três países diferentes, encontrei vários conceitos, mas nenhum era o meu. Olhando para o lado vejo a minha própria Terra Santa, ela estava no mesmo lugar onde sempre esteve: sentada na poltrona ao lado olhando pela janela.

 
 
 

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