O que fazemos quando nossos heróis morrem?
- Siqka
- há 2 dias
- 3 min de leitura
Hoje, 23 de maio, morreu, aos 81 anos, Sebastião Salgado. Um nome que dispensa apresentações e comentários, assim como a grandiosidade que o antecede. Diante de sua partida, abro mão do jornalismo técnico e de suas normas formais de redação. Neste texto, falo como homem, como fotógrafo, como alguém que foi profundamente tocado por sua obra. Deixo aqui, a quem possa interessar, meu mais sincero sentimento de perda e minhas confissões.

Não foi por acaso que optei por construir a identidade visual do Jornal Clandestino exclusivamente em preto e branco. Sempre que me perguntavam o porquê, eu me esquivava, respondendo apenas: “Mas ele não é preto e branco?”. Eu preferia deixar que as pessoas sentissem — que mergulhassem na mesma profundidade que experimentei quando conheci o trabalho de Salgado. Quando retiramos as cores de uma imagem, o que resta são os sentimentos mais puros. É o branco de um sorriso, o brilho de uma lágrima escorrendo por uma face, o contraste das rugas e cicatrizes deixadas pela vida na pele do trabalho. No preto e branco, sentimos medo, paixão, até o gosto da poeira levantada por uma manada de elefantes. Sem as cores, eliminamos preconceitos e estereótipos. Restam apenas a essência e a nudez da natureza.
Mas essa escolha não surgiu da noite para o dia.
Como jovem fotógrafo, ainda me buscando no ofício, experimentei o amarelo solar do México, os laranjas intensos da Índia, os muitos tons de verde e azul que se espalham entre o Caribe e o Mar Vermelho. Mas tudo me soava falso. Era como repetir imagens que o mundo já esperava ver. Nada ali era verdade. Foi então que, contra tudo e contra todos, decidi que minha fotografia seria em preto e branco. Sempre que possível, mais preto do que branco.
Claro que fui criticado. Disseram que eu só queria copiar Salgado. E sim — ele foi minha maior influência. Mas não apenas por estética. Foi pela subversão. Pela profundidade. Pela carga de verdade silenciosa que carregava em cada imagem. Foi daí que nasceu o Lucas Siqueira fotojornalista. E mais tarde, o Jornal Clandestino como ele é hoje: não uma cópia de Salgado, mas um veículo que, como ele, busca unir arte e jornalismo na sua forma mais crua, mais honesta e mais necessária.
Apaixonado por sua obra, fui em busca de sua história. E não me surpreendi ao descobrir a longa trajetória de ativismo de meu herói. Como poderia alguém retratar com tanta dignidade e precisão a dor humana e a beleza do planeta sem ser alguém profundamente engajado nas relações entre as pessoas, e entre as pessoas e a natureza? Saber disso apenas reforçou minha admiração.
Hoje, Sebastião Salgado deixa este mundo. E deixa em mim, e em tantos outros profissionais e admiradores, um profundo vazio. Mas também uma inspiração que transborda. Seu legado transcende a fotografia. É, para mim, a expressão mais verdadeira de arte que meus olhos já testemunharam.
E o que fazemos quando nossos heróis morrem?
– Heróis não morrem! Eles se tornam legado!
Sua arte ensinou que resistir pode ser um ato silencioso — uma imagem em preto e branco, um olhar demorado sobre a dor alheia. Que o mundo não precisa de neutralidade, mas de coragem, de empatia, e de beleza comprometida. Nesta despedida, que minhas palavras sejam sementes, como as árvores que ele plantou no sertão mineiro. Que nossas imagens — do Jornal Clandestino — sejam denúncias, como as que ele eternizou com suas lentes. E que nossa rebeldia seja, como a dele, enraizada no amor pelos povos da terra.
Vá em Paz!
Se minhas palavras puderem, de alguma forma, alcançar os olhos de Lélia Salgado, deixo aqui meus sentimentos à família. Meu obrigado eterno por tudo que vocês construíram juntos. E, da minha parte, meu compromisso inabalável com o legado de Sebastião.
Commentaires