O que eu, como ateu, desejo para o seu Natal
- Clandestino
- 24 de dez. de 2024
- 3 min de leitura
O que desejo para o mundo neste Natal? Nos meus primeiros anos de vida, eu repetia mecanicamente as palavras que ouvia na igreja: “Feliz Natal, amor, a paz de Cristo”. Era automático, desprovido de reflexão, e tinha gosto de hipocrisia. Afinal, como desejar algo genuíno a pessoas que eu mal conhecia, sem sequer saber se aquelas mesmas pessoas haviam ignorado alguém com fome ou propagado ódio ao longo do ano? Cansado desse ritual vazio, passei a responder apenas “Pra você também”, algo mais rápido e impessoal.
Mas o tempo passou, e com ele veio um olhar mais aguçado sobre o mundo. Um mundo dilacerado pela fome, intolerância, preconceitos e racismo. Esse despertar me levou a romper com a crença em um deus. Tornei-me ateu, e preciso explicar: minha mente se recusa a aceitar que em um planeta onde a maioria clama por um ser superior, haja tanta desarmonia, ódio e miséria. Como conciliar fé em um ser perfeito com um mundo tão imperfeito? Foi uma das razões que me afastaram da religião, mas isso não significa que eu rejeite a figura histórica de Jesus.
Jesus, para mim, não é um mito. Ele é tão real quanto Sócrates, um homem revolucionário cuja mensagem desafiava o poder romano e a hipocrisia dos homens. Pregava liberdade, igualdade, fraternidade – ideias tão ameaçadoras que levaram um império à beira do colapso a absorvê-las e transformá-las em ferramentas de opressão. É irônico que o ensinamento de um homem que falava aos pobres e marginalizados tenha sido sequestrado para subjugar esses mesmos grupos.
Mesmo assim, é impossível não reconhecer a força de sua mensagem. Por isso, eu comemoro seu aniversário, ainda que saiba que o dia 25 de dezembro seja apenas um sincretismo entre o cristianismo e o paganismo romano. Comemoro porque acredito no Jesus histórico, o rebelde que falou de amor e justiça em um mundo sedento de ambos. Naquela época, quando me desejavam “Feliz Natal”, retribuía com “liberdade, igualdade e fraternidade”. Não porque espero que entendam, mas porque é isso o que desejo – até mesmo para os filhos da puta que não merecem.
Nos últimos anos, contudo, a celebração do Natal tornou-se ainda mais amarga para mim. Antes, eu via o ódio e a miséria pela janela; nos últimos anos, eu abri a porta e me atirei por ela. Agora eu os encaro diretamente. Vi a fome que corrói corpos e almas. Vi pessoas reduzidas a existências que mal podem ser chamadas de vida. Conheci jovens sem direito de sonhar, amigos sufocados pela angústia de um futuro incerto. Vi escravidão moderna, tanto literal quanto simbólica. E ao mesmo tempo, vi a indiferença: risos, deboche e conivência com um sistema que massacra enquanto serve banquetes para os próprios escravizados.
A cada ano, cresce em mim o asco por nossa espécie. Somos, coletivamente, hipócritas autodestrutivos. No dia 25 de dezembro, vestidos de vermelho, com mesas fartas e luzes cintilantes, desejamos “Feliz Natal” enquanto ignoramos os 120 milhões de refugiados pelo mundo, as 733 milhões de pessoas que enfrentam a fome, ou as 1,6 bilhão que vivem em condições precárias de moradia. E, no dia seguinte, jogamos as sobras da ceia no lixo.
Se há algo que eu desejo neste Natal, é que essa hipocrisia seja substituída por um choque de realidade. Que amanhã, ao acordar, cada um de nós se lembre do sofrimento que persiste enquanto celebramos. Que aqueles que acreditam em Jesus simplesmente sigam o que o cara pregou. Que abandonemos a fachada brilhante e nos voltemos para o que importa: dignidade, justiça e humanidade.
Como ateu, não desejo milagres ou bênçãos. Desejo que sejamos menos hipócritas e mais humanos. É pedir muito? Talvez. Mas, se você acredita no homem que nasceu para nos ensinar a amar, saiba que ele também acharia pouco.
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