HAMAS, UM GUIA PARA INICIANTES - Khaled Hroub (parte I)
- Clandestino
- 16 de abr.
- 88 min de leitura
PREFÁCIO
O Hamas costumava chocar o mundo com seus atentados suicidas no coração das cidades israelenses – uma retaliação sem reservas aos contínuos ataques israelenses contra cidades e civis palestinos. Com impacto não menor, o Hamas surpreendeu o mundo de forma inesperada em 25 de janeiro de 2006 ao conquistar uma vitória esmagadora nas eleições do Conselho Legislativo Palestino (PLC). O PLC, embora seja um parlamento quase simbólico com poderes soberanos limitados, representa a encarnação da legitimidade política palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Em virtude dessa vitória, o Hamas formou um governo e tornou-se a força dominante na luta nacional palestina pela primeira vez desde sua fundação no final de 1987.
O resultado das eleições abalou o mundo. Como poderia uma “organização terrorista”, como sempre foi rotulada no Ocidente, com uma imagem obscura e secreta, como a retratam constantemente os meios de comunicação ocidentais, emergir como uma força política popular e vitoriosa? O principal rival do Hamas era o movimento secular Fatah, que liderava os palestinos há quase meio século, praticamente sem interrupções. Israel, os Estados Unidos, a Europa, os regimes árabes, a ONU e muitos outros atores regionais e internacionais desejavam a vitória do Fatah. Contra todas as probabilidades e inimigos, o Hamas triunfou! O mundo inteiro lamentou: “O que deu errado?”
Na verdade, não havia um “certo” com o qual se pudesse medir o “errado” no contexto das eleições palestinas. O que de fato deu errado foi a persistente e prevalente má compreensão do Hamas e a subestimação de seu poder e influência. Aos olhos de muitos ocidentais, tanto autoridades quanto cidadãos comuns, o Hamas sempre foi reduzido a um mero “grupo terrorista” cuja única função seria matar israelenses sem propósito. No terreno, em seu próprio país, muitos palestinos viam o Hamas como uma força sociopolítica e popular profundamente enraizada. Aos olhos dos palestinos, o Hamas vinha conseguindo traçar caminhos paralelos e harmônicos entre o confronto militar contra a ocupação israelense e o trabalho social de base, mobilização religiosa e ideológica e articulação com outros Estados e movimentos.
Este livro tem como objetivo contar a história do “Hamas real”, e não a versão deturpada e mal interpretada. Por “Hamas real” quero dizer a realidade do Hamas como ele se manifesta no terreno, em todos os seus aspectos – desmascarando qualquer abordagem reducionista. No entanto, não há aqui nenhuma intenção de oferecer uma defesa apologética do Hamas. Cabe ao leitor ou à leitora formar sua própria opinião sobre esse movimento palestino. O propósito deste livro, no entanto, é fornecer informações básicas e uma análise esclarecedora necessária.
Os capítulos do livro seguem o formato de perguntas e respostas, o que pode parecer pouco familiar. Mas isso visa simplificar o que para muitos pode parecer uma questão complicada. Apresentar as “perguntas mais frequentes” sobre o Hamas (dentro do conflito árabe/israelense) e tratá-las separadamente permite uma leitura mais direta e acessível. Os capítulos são estruturados tanto de forma cronológica quanto temática, começando pelas origens do Hamas e terminando com o “novo Hamas” (o Hamas após as eleições), passando por todos os outros aspectos e questões relacionados ao movimento.
Nos últimos 16 anos, tenho acompanhado os acontecimentos relacionados ao Hamas e dentro do próprio movimento. Escrevi extensivamente sobre seus aspectos sociais, políticos, militares e religiosos. Publiquei livros, capítulos de livros, artigos acadêmicos e muitos outros textos tentando compreender o Hamas e transmitir meu entendimento aos leitores. Entrevistei líderes do Hamas e conheci muitos de seus formuladores de políticas. Com base nesse conhecimento próximo e contato direto com pessoas do Hamas, tomei a liberdade de libertar o texto deste livro de notas de rodapé e referências exaustivas. Em meus outros trabalhos, essas referências e documentação estão amplamente disponíveis, caso sejam procuradas.
Minha própria percepção do Hamas vai além da mera questão de ser a favor ou contra o movimento. Como pessoa secular que sou, minha aspiração é que a Palestina, e todos os demais países árabes, sejam governados por leis criadas por seres humanos. No entanto, vejo o Hamas como um resultado natural de condições ocupacionais não naturais e brutais. O radicalismo do Hamas deve ser entendido como um resultado completamente previsível do contínuo projeto colonial israelense na Palestina. Os palestinos apoiam qualquer movimento que sustente a bandeira da resistência contra essa ocupação e prometa defender os direitos palestinos à liberdade e autodeterminação. Neste momento histórico, veem no Hamas o defensor desses direitos.
Palavras de gratidão são, de fato, devidas desde o início à família, amigos e colegas cujos esforços e ajuda tornaram possível a publicação deste livro. Agradeço a Roger van Zwanenberg, da Pluto Books, por seu incentivo e persistência amigável em me fazer escrever este livro. Também agradeço à equipe da Pluto Books que se empenhou no processo de produção do livro – Melanie Patrick, Helen Griffiths, Alec Gregory e Susan Curran, da Curran Publishing. Meus sinceros agradecimentos vão para minha amiga e editora em Cambridge, Pam Manix, que esteve ao meu lado capítulo por capítulo, colada ao computador durante todas aquelas noites em claro de escrita. Também agradeço a Abed al-Juebeh, meu querido amigo e colega da Al Jazeera, por seu apoio e ajuda. As discussões constantes e perspicazes com ele, junto com sua mente crítica e às vezes cínica, foram fontes de inspiração para mim. Os agradecimentos e o amor finais vão para minha preciosa pequena família: Kholoud, minha esposa e amiga, e meus filhos Laith e Mayce, que, como sempre, suportaram o pouco tempo que lhes dediquei durante a escrita deste livro, mas que me cercaram de amor, carinho e afeto.
INTRODUÇÃO
Em janeiro de 2006, o Hamas surpreendeu o mundo ao vencer as eleições democráticas para o Conselho Legislativo Palestino da limitada Autoridade Palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Colocando o Hamas sob os holofotes de forma inédita, essa vitória chocou muitos palestinos, Israel, os Estados Unidos, a Europa e países árabes. Também deixou o derrotado movimento Fatah – principal rival do Hamas, que liderava o movimento nacional palestino há mais de 40 anos – completamente abalado.
Apesar do choque e da surpresa, a vitória do Hamas nessas eleições era, na verdade, quase inevitável. O fracasso acumulado ao longo dos anos em pôr fim à contínua e brutal ocupação israelense das terras e do povo palestino apenas aprofundou a frustração e o radicalismo entre os palestinos. A frustração e o sofrimento palestinos jamais cessaram desde a criação de Israel pela guerra em 1948. Com a conivência britânica e o apoio americano – e contra a vontade e os interesses da população nativa –, a porção de terra que fora conhecida por centenas de anos como Palestina tornou-se Israel. Nessa guerra para criar Israel, os palestinos perderam mais de 78% do território da Palestina, incluindo a parte ocidental de sua capital, Jerusalém. O que restou aos palestinos foram duas porções de terra separadas: a Cisjordânia (do rio Jordão), próxima ao país Jordânia, que incluía um fragmento da antiga capital, Jerusalém Oriental; e a Faixa de Gaza, no Mediterrâneo, fazendo fronteira com a península egípcia do Sinai.
Como resultado da guerra de 1948, centenas de milhares de palestinos foram expulsos de suas cidades e vilarejos para países vizinhos pelas forças sionistas. Esses “refugiados” tornaram-se o problema mais intratável do conflito, crescendo em número com seus descendentes para mais de 6 milhões até o ano de 2006.
Em 1967, Israel lançou outra guerra bem-sucedida, dessa vez não apenas contra os palestinos, mas também contra todos os países árabes vizinhos. As perdas palestinas foram quase totais. Com essa guerra, Israel ocupou a Cisjordânia e a parte oriental de Jerusalém, que estavam sob controle jordaniano, e a Faixa de Gaza, que era administrada pelo Egito desde a guerra de 1948. Israel também invadiu as Colinas de Golã, da Síria, no norte, e o deserto do Sinai, do Egito, ao sul – e ocupou todos esses territórios em nome da segurança israelense. Para os palestinos, porém, as perdas foram múltiplas. O exército israelense forçou outra transferência em massa de refugiados palestinos, desta vez das cidades e vilarejos da Cisjordânia para países vizinhos. Muitos dos refugiados que haviam sido deslocados para a Cisjordânia durante a guerra de 1948 foram mais uma vez expulsos, e agora com ainda mais novos refugiados gerados pela guerra de 1967. O problema dos refugiados palestinos agravou-se ainda mais.
Os países árabes enfraquecidos, junto com a nascente movimento nacional de libertação palestina, fracassaram em seus esforços militares para recuperar as terras perdidas para Israel em 1967. Dois anos antes dessa guerra, Yasser Arafat e outros ativistas palestinos na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e em países árabes vizinhos fundaram o Fatah, o movimento nacional de libertação palestino. O Fatah declarou não ter filiação ideológica e adotou uma postura secular. Mais ou menos na mesma época, juntamente com outras pequenos grupos de esquerda, foi criada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) como frente nacional ampla da luta palestina, sob clara liderança do Fatah. O objetivo da OLP era “libertar a Palestina” – ou seja, o território ocupado na guerra de 1948 e que passou a ser conhecido como Israel. No entanto, após a perda devastadora da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em 1967, o objetivo da OLP teve de ser reduzido. Em vez de “libertar a Palestina”, passou a se concentrar na libertação apenas das duas partes mais recentemente perdidas: Cisjordânia e Faixa de Gaza. Esse objetivo era visto, naquele momento, apenas como uma fase intermediária que não afetaria o objetivo de longo prazo de libertar toda a Palestina.
Do meio da década de 1960 até quase a metade dos anos 1980, o movimento nacional palestino liderado pela OLP adotou a luta armada como principal estratégia para “libertar a Palestina”. A fraqueza dos países árabes, combinada com o contínuo apoio internacional e ocidental a Israel, tornava quase impossível a missão dos palestinos de recuperar suas terras. Sem alcançar sucesso em décadas de luta, a OLP fez duas concessões históricas no final dos anos 1980. Renunciou ao objetivo de longo prazo – a “libertação da Palestina” – ao reconhecer Israel e seu direito de existir. Também abandonou a luta armada como estratégia, em nome de uma solução negociada que esperava recuperar a Cisjordânia e a Faixa de Gaza e estabelecer um Estado palestino independente.
Em 1991, os Estados Unidos convocaram a Conferência de Paz de Madri, após a Primeira Guerra do Golfo e a expulsão das tropas de Saddam Hussein do Kuwait. Com os árabes fragmentados por toda parte por causa da invasão do Kuwait pelo Iraque, da guerra subsequente e da posição enfraquecida dos palestinos – já que a OLP havia se aliado (verbal e politicamente) ao Iraque contra a coalizão liderada pelos EUA –, a posição de negociação da OLP em Madri era frágil. Como era de se esperar, a Conferência não produziu um tratado de paz entre palestinos e israelenses, mas confirmou a mudança histórica da OLP: da luta armada para a negociação como estratégia preferencial para encerrar o conflito.
Em 1993, um acordo inicial foi alcançado entre a OLP e Israel – o Acordo de Oslo – após meses de negociações secretas na Noruega. Endossado em Washington pela administração Clinton, o acordo foi, em teoria, dividido em duas fases: uma fase intermediária de cinco anos (essencialmente destinada a explorar e testar a capacidade dos palestinos de governarem pacificamente a si mesmos e controlarem os grupos de resistência armada consideradas “ilegais”), com início em 1994, que, se bem-sucedida, seria seguida por uma segunda fase de negociações para um “acordo final”.
Os palestinos estavam quase igualmente divididos em relação aos Acordos de Oslo. Aqueles que os apoiavam argumentavam que era o melhor acordo que os palestinos poderiam esperar, dadas as condições desfavoráveis que enfrentavam e o desequilíbrio de poder amplamente favorável a Israel. Os que se opunham alegavam que o acordo representava simplesmente uma rendição a Israel, ao reconhecer oficialmente o Estado israelense e abandonar a luta armada sem qualquer ganho concreto.
Durante o período intermediário de cinco anos, nenhuma das principais questões palestinas seria abordada – como o direito de retorno dos refugiados, o status de Jerusalém, o controle das fronteiras palestinas e o desmantelamento dos assentamentos israelenses construídos intensivamente na Cisjordânia ocupada e na Faixa de Gaza. De acordo com os Acordos, essas questões seriam adiadas para as negociações finais – que, como se veria, jamais ocorreriam.
O Hamas sempre se opôs ao Acordo de Oslo, acreditando que ele foi elaborado para servir aos interesses israelenses e comprometia direitos palestinos fundamentais. Após mais de dez anos de Oslo, os palestinos estavam completamente frustrados, e sua já frágil confiança na sinceridade das negociações de paz com Israel havia se dissipado. Durante o período intermediário, que supostamente abriria caminho para uma paz duradoura, Israel fez todo o possível para piorar a vida dos palestinos e intensificar sua ocupação colonial da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Nesse período, por exemplo, o tamanho e o número de assentamentos coloniais israelenses na Cisjordânia – um dos principais obstáculos a qualquer acordo de paz final – duplicaram.
Com o fracasso de Oslo, uma segunda intifada eclodiu em 2000 contra Israel, conferindo mais poder e influência ao Hamas e ao seu “projeto de resistência”.
Em março de 2005, o Hamas tomou três decisões históricas sucessivas, cada uma representando um marco na vida política do movimento. A organização decidiu concorrer às eleições para o Conselho Legislativo Palestino na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Decidiu também, junto com outros grupos palestinos, suspender todas as atividades militares por um período indefinido e sob seus próprios termos. E considerou a possibilidade de integrar a OLP.
O Hamas parecia decidido a avançar com firmeza rumo à liderança do movimento palestino. A mais importante dessas três decisões foi a de participar das eleições legislativas em janeiro de 2006. Essa decisão representou uma mudança completa em relação à sua recusa anterior em participar das eleições de 1996, as quais o Hamas via como um desdobramento dos Acordos de Oslo. Como justificativa para a nova postura, o grupo apontou as novas condições criadas desde a intifada de setembro de 2000. O Hamas também demonstrava confiança em sua própria força, após ter vencido quase dois terços das cadeiras nas eleições municipais parciais de janeiro de 2005.
A decisão do Hamas de participar das eleições teve um impacto profundo na natureza do movimento, no cenário político palestino e no processo de paz em geral. No âmbito interno, essa decisão contribuiu para politizar o movimento – ainda que em detrimento de seu conhecido caráter militarista.
HAMAS
Fundado no final da década de 1980, o Hamas surgiu como um movimento de libertação religioso-nacionalista com dupla motivação, que prega pacificamente o chamado religioso islâmico enquanto adota harmoniosamente a estratégia da luta armada contra a ocupação israelense. Seus críticos diziam que parecia que o Hamas começava de onde a OLP havia parado. Já seus apoiadores sentiam que o Hamas surgira no momento exato para resgatar a luta nacional palestina de uma capitulação completa a Israel.
Na prática, o Hamas trilhou seu próprio caminho, quase na direção oposta à rota pacífica então adotada pela OLP e por outros países árabes que haviam firmado tratados de paz com Israel, como Egito e Jordânia. Recusou-se a subordinar-se à OLP como guarda-chuva mais amplo da luta nacionalista palestina e adotou o antigo chamado pela “libertação da Palestina”, conforme originalmente formulado pelos fundadores da OLP em meados da década de 1960. O Hamas rejeitou a ideia de firmar tratados de paz com Israel que fossem condicionados ao reconhecimento pleno do direito de existência do Estado israelense.
Diante da ausência de qualquer avanço sério rumo à obtenção de um mínimo de direitos palestinos, o Hamas tem mantido um crescimento contínuo desde sua fundação. Após anos de luta persistente, tornou-se um ator-chave tanto no âmbito do conflito árabe e palestino-israelense quanto no campo do Islã político na região. No nível palestino, demonstrou apelo popular constante. Utilizando estratégias múltiplas e interligadas – que vão de ataques militares a atividades educacionais, sociais, caritativas e de pregação religiosa –, o Hamas conseguiu popularizar-se entre diferentes segmentos da população palestina, dentro e fora da Palestina.
Com a erosão gradual tanto da legitimidade quanto da popularidade da OLP, o poder do Hamas manifestou-se em vitórias esmagadoras nas eleições municipais, nas eleições de sindicatos estudantis, e em pleitos sindicais e outros realizados na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
No campo do Islã político e de suas várias abordagens para com a política, o Hamas ofereceu um caso contemporâneo singular de um movimento islamista engajado em uma luta de libertação contra uma ocupação estrangeira. Os movimentos islamistas, em geral, foram motivados por uma variedade de causas, a grande maioria delas voltada contra os regimes corruptos de seus próprios países. Um outro grupo, os “jihadistas globalizados”, expandiu suas “campanhas sagradas” para além das fronteiras geopolíticas, promovendo noções pan-islâmicas que rejeitam a ideia de Estados-nação muçulmanos individuais.
Ao contrário de ambos, o Hamas manteve-se, de certo modo, baseado na lógica do Estado-nação, limitando sua luta à Palestina e combatendo não um regime local, mas um ocupante estrangeiro. Essa diferenciação é importante porque expõe a superficialidade da generalização (principalmente ocidental) que reduz todos os movimentos islamistas a uma única categoria de “terrorismo”.
O Hamas passou por vários desenvolvimentos e experiências, e há diferenças claras de maturidade entre seus primeiros anos e suas fases posteriores. Ao longo dos anos de luta, em momentos históricos decisivos e sensíveis, o Hamas ofereceu não apenas um caso fascinante de estudo, mas, mais importante, um exemplo de ator emergente capaz de influenciar o curso e o desfecho do conflito palestino-israelense.
Oscilando entre suas fortes bases religiosas e as agendas políticas nacionalistas, o Hamas busca manter um equilíbrio entre sua visão de longo prazo e as realidades imediatas e urgentes. Embora continue sendo uma questão em aberto até que ponto o “religioso” e o “político” compõem a essência do Hamas, é significativo observar a interação entre essas duas forças dentro do movimento. Embora o grupo reprima qualquer tensão implícita ou explícita entre os dois polos, talvez seja apenas uma questão de tempo, espaço e da natureza de certos acontecimentos até que um deles prevaleça sobre o outro. Nos momentos mais politizados da trajetória do Hamas, tem sido evidente que o “político” ocupa energicamente o banco do motorista.
Militarmente, o Hamas adotou a tática controversa dos “atentados suicidas”, tática com a qual seu nome passou a ser associado no Ocidente e no restante do mundo. O primeiro uso dessa tática foi em 1994, em retaliação a um massacre de palestinos que oravam em uma mesquita na cidade palestina de Hebron. Um colono judeu fanático abriu fogo com uma metralhadora contra os fiéis, matando 29 pessoas e ferindo muitas outras. O Hamas prometeu vingança por esses assassinatos – e assim o fez.
Desde então, todos e cada um dos ataques violentos do Hamas contra civis israelenses estiveram diretamente ligados a atrocidades específicas cometidas por Israel contra civis palestinos. Embora não mais brutais do que aquilo que os israelenses vêm fazendo com os palestinos há décadas, os ataques suicidas prejudicaram a reputação tanto do Hamas quanto dos palestinos em escala global.
A justificativa do Hamas para conduzir esse tipo de operação se apoia em diversos argumentos. Em primeiro lugar, afirma que essas ações são exceções à regra e motivadas unicamente pela necessidade de retaliação – trata-se de uma política de “olho por olho”, em resposta à contínua matança de civis palestinos pelo exército israelense. Em segundo lugar, o Hamas declara que frequentemente propõe a Israel um acordo segundo o qual civis de ambos os lados seriam poupados como alvos, mas que Israel nunca aceitou tal proposta. Em terceiro lugar, os líderes do Hamas argumentam que a sociedade israelense como um todo deve pagar o preço da ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, tanto quanto a sociedade palestina já o faz: o medo e o sofrimento deveriam ser sentidos por ambos os lados.
No nível sociocultural, o Hamas teve resultados variados. Seu trabalho social de base, voltado para o auxílio aos pobres e o apoio a centenas de milhares de palestinos, foi admirado e elogiado. Esse trabalho contínuo, marcado por competência e dedicação sincera, conferiu ao movimento um alto nível de popularidade. Em períodos eleitorais, isso tem rendido resultados consideráveis.
Combinando essa atuação com suas ações militares e confrontos contra Israel, o Hamas tem operado em diversas frentes simultaneamente, o que tem causado uma impressão positiva entre os palestinos.
No entanto, muitos palestinos secularizados temem que o Hamas esteja, ainda que de forma gradual e indireta, transformando o tecido cultural e social da sociedade palestina. O Hamas aparentemente tem explorado seu capital sociopolítico e sua popularidade para promover sua agenda cultural e religiosa.
Embora tenham ocorrido apenas alguns episódios em que membros do Hamas tentaram impor certos valores morais religiosos à sociedade – e estes não possam ser descritos como uma tendência generalizada –, esses casos foram suficientes para gerar apreensão entre os palestinos mais seculares.
Muitos palestinos apoiam o trabalho nacionalista/libertador e social do Hamas, mas não seu ideal religioso. O Hamas, propositalmente, ignora esse fato e considera que qualquer voto a favor de sua agenda política também representa um voto a favor de sua agenda religiosa.
HAMAS NO PODER
As razões por trás da vitória do Hamas nas eleições do Conselho Legislativo Palestino (CLP) de 2006, assim como o significado dessa vitória, merecem um olhar mais atento. O Hamas triunfou por uma série de razões. Em primeiro lugar, o movimento colheu os frutos de anos de trabalho dedicado e de popularidade entre os palestinos. Pelo menos metade dos eleitores apoiou o Hamas por seu programa e seus objetivos declarados; também por sua acolhida calorosa e pela ajuda constante oferecida aos pobres e necessitados. A outra metade dos votos do Hamas foi motivada por outros fatores. O fracasso do processo de paz, combinado com a brutalidade crescente da ocupação israelense, deixou os palestinos sem fé na opção de negociar uma solução pacífica com Israel.
A lacuna no debate entre “negociações de paz” e “resistência” foi se estreitando à medida que se aproximava a data da eleição, com a noção de “conversações de paz” perdendo força, embora sem um apoio claro e definitivo ao conceito de “resistência” defendido pelo Hamas. Esse último era vago, e muitos palestinos tinham receio quanto ao seu significado e aos seus mecanismos. Mas o desgaste das negociações de paz já havia cobrado seu preço e contribuiu significativamente para a derrota do movimento Fatah, defensor e principal força por trás dos Acordos de Oslo e de seus desdobramentos.
Outro fator determinante que favoreceu a vitória do Hamas nessas eleições foi o fracasso da Autoridade Palestina, liderada pelo Fatah, em praticamente todos os aspectos. Ela fracassou não apenas externamente, no campo das negociações com Israel, mas também internamente, na gestão dos serviços cotidianos ao povo palestino. Má administração, corrupção e roubo passaram a ser os “atributos” que marcaram os principais líderes, ministros e altos funcionários do Fatah. Com o desemprego e a pobreza atingindo níveis sem precedentes, o estilo de vida extravagante dos altos funcionários palestinos indignava a população. As eleições deram ao povo a chance de punir esses dirigentes. Os ventos da responsabilidade finalmente sopraram, e o Hamas foi o beneficiário.
Assim, dificilmente se pode dizer que o povo palestino votou majoritariamente no Hamas por motivos religiosos. Certamente não houve uma conversão popular repentina ao fervor religioso do Hamas ou mesmo à sua ideologia política. Cristãos e pessoas seculares votaram no Hamas lado a lado com seus membros e apoiadores em todas as regiões. O apoio do Hamas a candidatos cristãos lhes garantiu assentos no parlamento. Um cristão foi nomeado ministro do Turismo no gabinete do Hamas. A ampla diversidade do eleitorado do Hamas nessas eleições reforça a ideia de que as pessoas estavam votando por renovação, por um movimento nacionalista de libertação que prometia mudança e reformas em todas as frentes, mais do que por um grupo religioso.
A vitória eleitoral do Hamas representa, por si só, algo significativo não apenas para os palestinos, mas também para outros árabes, muçulmanos e além. No contexto palestino, trata-se de um ponto de virada histórico, onde ocorreu uma mudança importante na liderança do movimento de libertação nacional. Pela primeira vez em mais de meio século, os islamistas palestinos assumiram a liderança do movimento nacional palestino. Parece que, quase da noite para o dia, os islamistas substituíram a antiga liderança secular que controlou o destino dos palestinos e suas decisões nacionais durante décadas. Essa mudança fundamental, além disso, ocorreu por meios pacíficos e sem violência, dando aos palestinos como um todo – incluindo o Hamas – um grande sentimento de orgulho. Os palestinos não apenas são, em teoria, capazes de praticar o governo democrático, como também o fizeram ao abraçar a democracia na prática e aceitar seus resultados. Ademais, as campanhas eleitorais, com suas plataformas contrastantes, ofereceram aos palestinos a oportunidade de reavaliar sua estratégia diante do conflito com Israel, anteriormente delineada e conduzida pelo movimento Fatah.
Para o próprio Hamas, essa vitória representa o maior desafio enfrentado pelo movimento desde sua criação. Quase que de forma abrupta, todos os seus ideais e slogans foram trazidos à realidade para encarar as duras condições do terreno. Pode-se dizer com segurança que o Hamas pós-eleições será consideravelmente diferente da organização que conhecíamos antes do pleito.
No âmbito árabe e muçulmano, a vitória do Hamas é praticamente única: o Islã político chegou ao poder por meio de um processo democrático e não será privado dessa conquista. Movimentos islamistas em toda a região celebraram com júbilo o triunfo do Hamas, considerando-o como sua própria vitória. Já os regimes árabes e muçulmanos existentes assistiram à ascensão do Hamas ao poder com evidente ansiedade e desconfiança, temendo que isso encoraje seus próprios islamistas locais a buscarem o poder com mais vigor. As bases e indivíduos seculares nos países árabes permanecem divididos. Apoiam o lado nacionalista e de libertação do Hamas, mas continuam inquietos com seu conteúdo religioso e social.
No plano internacional, um governo palestino liderado pelo Hamas foi um dos frutos mais indesejáveis da democracia. O Ocidente, em particular, viu-se diante do dilema de aceitar esse resultado perturbador – como forma de mostrar ao mundo árabe e muçulmano que seu apelo por democracia na região era sincero – ou de juntar-se aos esforços israelenses para derrubar o governo do Hamas, correndo o risco de perder sua credibilidade. O Ocidente decidiu, desde cedo, aderir ao bloqueio ao novo governo do Hamas, como parte de um esforço conjunto de Israel, Estados Unidos, União Europeia, alguns Estados árabes e o movimento Fatah para destituí-lo.
Do ponto de vista estratégico, muitos palestinos veem a vitória do Hamas como benéfica para os objetivos finais do movimento nacionalista palestino, tanto no curto quanto no longo prazo. A presença do Hamas no centro do mecanismo de tomada de decisões palestino confere mais legitimidade – e uma legitimidade muito necessária – à Autoridade Palestina. Além disso, traz mais integridade e confiança para toda a estrutura da política palestina. O Hamas nunca havia participado anteriormente da Autoridade Palestina construída pelos Acordos de Oslo, sob o argumento de que tanto os Acordos quanto a Autoridade haviam capitulado diante de Israel e feito concessões inaceitáveis.
Aproveitando um discurso do tipo “carona gratuita”, o Hamas não apenas conseguiu acumular uma popularidade impressionante: também desafiou a posição de liderança do Fatah, a espinha dorsal da OLP e o partido mais forte da sociedade palestina tradicional. A inclusão do Hamas no processo político agora priva o Fatah da política de carona gratuita que vinha abusando, e garante que ele seja responsabilizado por uma política mais “real”, ao lado de outros partidos palestinos.
Mais importante ainda, no nível do conflito com Israel, não pode haver um acordo de paz sustentável e definitivo sem um verdadeiro consenso palestino – e a contribuição do Hamas é central para isso. A posição política do Hamas é pragmática e gira em torno da aceitação do conceito de uma solução de dois Estados. Se for possível chegar a um acordo final decente, que reconheça os direitos palestinos com base nas referências da Conferência de Madri e nas resoluções da ONU, o Hamas não terá como se opor. Um Hamas moderado, cooptado e participante, mesmo que endureça a posição da Autoridade Palestina, é muito melhor do que um Hamas radicalizado e militarizado.
A HISTÓRIA DO HAMAS
ISLAMISMO E A LUTA PALESTINA
Como o Islã e a Palestina estão inter-relacionados?
Ao longo dos séculos, o Islã e a Palestina estiveram intimamente ligados no imaginário e na história dos muçulmanos. A Palestina foi dotada de santidade islâmica, além de possuir significado religioso para cristãos e judeus, por uma série de razões e eventos históricos. Jerusalém, e em especial al-Masjid al-Aqsa (a mesquita mais distante), foi o primeiro local para o qual os muçulmanos direcionaram suas orações quando o Profeta Muhammad começou a pregar o Islã na Arábia, no início do século VII. Bait al-Maqdes, ou Jerusalém, é o terceiro lugar mais sagrado do Islã, depois de Meca e Medina, na Arábia. Ela é frequentemente mencionada no Alcorão e aparece inúmeras vezes nos ditos – Hadith – do Profeta. A maioria das histórias sobre os mensageiros de Deus relatadas no Alcorão tem referências geográficas específicas à Palestina. Um capítulo inteiro do Alcorão, a surata al-Isra, é dedicado à viagem do Profeta Muhammad de Meca a Jerusalém, e sua ascensão aos céus para encontrar Deus. Este é um capítulo apaixonadamente reverenciado por muçulmanos de todo o mundo como uma das mais impressionantes histórias divinas. Na própria rocha de onde o Profeta partiu para o céu, foi construído o Domo da Rocha, adjacente ao local onde os judeus afirmam que foi erguido o antigo Templo de Salomão.
A importância religiosa da Palestina para cristãos e judeus também é reconhecida no Islã. Jesus Cristo, que nasceu na Palestina, e Moisés, que migrou para lá, são considerados pelo Alcorão e pelos muçulmanos como dois dos cinco profetas mais respeitados de Deus (os outros três são Muhammad, Ibrahim e Ismail).
Além de sua santidade religiosa, a Palestina ocupou por muito tempo uma posição geoestratégica, ligando as partes africana e asiática do Oriente Médio, oferecendo uma longa costa e uma passagem rica no Mediterrâneo entre a península Arábica, o Egito e a Grande Síria. Devido ao seu significado religioso e estratégico, a Palestina estava destinada a ser campo de guerras e invasões. Os muçulmanos conquistaram a Palestina e a colocaram sob seu controle em 638 d.C. Desde então, o Islã tem sido uma característica central da base política, cultural e emocional dessa antiga região.
Os cruzados ocidentais, a partir de 1097, por 200 anos travaram guerra após guerra para obter o controle da Palestina, em especial de Jerusalém, e incorporá-la à cristandade. Os muçulmanos, que àquela altura já governavam a Palestina há mais de 400 anos, há muito permitiam que pessoas de outras religiões vivessem em paz em suas terras. Os muçulmanos há muito recebiam peregrinos de todas as religiões e tornavam acessíveis todos os santuários históricos de importância religiosa tanto para eles quanto para os outros: cristãos, judeus, persas, cristãos ortodoxos, coptas e muitos outros. A Palestina fazia parte de uma região antiga, sagrada para muitos povos.
Após 400 anos de intercâmbio aberto, e para a humilhação dos muçulmanos, os cruzados tomaram Jerusalém de forma impiedosa, massacraram seus habitantes muçulmanos e conseguiram governar por 70 anos. Quando Saladino derrotou os cruzados em 1187 d.C., ele entrou no imaginário e na história do Islã como um de seus heróis mais proeminentes, cujos sucessos simbolizaram o fim da vergonha e da derrota muçulmanas. O nome de Saladino evoca, para muçulmanos e palestinos, memórias de glória e, para muitos deles, reforça a vontade e a capacidade inevitáveis de ressurgir das cinzas. Percebidas como invasões estrangeiras brutais lançadas por cristãos europeus, as Cruzadas ainda são vistas por muitos árabes e palestinos como o plano original da invasão sionista, que também teve raízes na Europa.
Qual é a relação entre o Islã e a Palestina dentro do conflito árabe-israelense?
Na consciência de muitos muçulmanos, a identidade de quem governa a Palestina indica a força ou a fraqueza do Islã e dos muçulmanos. Se a Palestina é governada e controlada por estrangeiros e não muçulmanos – dos cruzados medievais aos sionistas do século XX e do presente – então o Islã e os muçulmanos se percebem como fracos e derrotados.
Após a derrota final dos cruzados em 1291, a Palestina permaneceu sob domínio muçulmano por mais de 700 anos adicionais, até a desintegração do Império Otomano muçulmano, que havia governado a Palestina, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial. O colapso desse império turco decadente, que havia se aliado à Alemanha na Grande Guerra, foi recebido com pouco pesar ou lealdade específica por muitos na Palestina e no restante do mundo árabe, devido à brutalidade recente de seu regime. No entanto, a base otomana no Islã havia mantido a Palestina firmemente inserida no mundo árabe e muçulmano.
Com o colapso político completo do Império após o armistício, os territórios otomanos no Oriente Médio foram repartidos em protetorados temporários controlados pelas potências europeias vencedoras, até que configurações políticas mais permanentes fossem estabelecidas. A Palestina ficou sob controle colonial britânico entre 1917 e 1948. Embora as raízes seculares do patrimônio islâmico e da lealdade à Palestina fossem evidentes, fortes correntes de sionismo já haviam infiltrado o pensamento britânico. Já em 1917, Balfour havia expressado sua intenção de apoiar um lar nacional judaico na Palestina, e com a onda de refugiados judeus fugindo de partes cada vez maiores da Europa sob controle nazista, a imigração judaica para a Palestina administrada pelos britânicos se intensificou entre as décadas de 1920 e 1940.
Combatendo o que era claramente percebido como poderes coloniais, os movimentos de libertação árabes em todo o antigo território otomano uniram-se apesar de suas diversas versões do Islã e nacionalismos individuais, tentando maximizar a capacidade de mobilização de ambos os princípios. Na Palestina, os palestinos se revoltaram contra o mandato britânico entre as décadas de 1920 e 1940 sob justamente essa bandeira islâmica híbrida.
Mas o destino da Palestina seria irrevogavelmente agravado por fatores que iam além da simples luta entre colonizadores e colonizados. Em 1948, o controle britânico sobre a Palestina estava gravemente comprometido, tanto pelo seu estado de esgotamento econômico após a Segunda Guerra Mundial quanto, ironicamente, pela intensidade implacável dos ataques terroristas sionistas. Com a crescente simpatia internacional pelo assentamento judaico na Palestina, as Nações Unidas propuseram, em 1947, um plano de partilha que dava aos cerca de 600.000 judeus – em sua maioria imigrantes – 54% do território, a parte costeira e mais rica da terra, deixando o restante para os 1,4 milhão de palestinos. Na época da proposta de partilha, a posse judaica da terra era de apenas 5,5%. Em maio de 1948, o Reino Unido se retirou de uma Palestina já mergulhada em guerra entre árabes e judeus. Um Estado judeu, Israel, foi declarado quase imediatamente em 15 de maio e reconhecido instantaneamente pelos Estados Unidos. Os palestinos haviam sido lançados ao abismo do caos em sua própria terra.
Um dos movimentos de rebelião mais populares contra os britânicos, frequentemente lembrado com orgulho pelos palestinos, é o movimento de Izzedin al-Qassam, da década de 1930. Sheikh Izzedin al-Qassam foi um estudioso religioso que lançou uma jihad contra os colonizadores britânicos e seus aliados – os colonos sionistas europeus, cada vez mais militarizados, que então estavam inundando a Palestina. Décadas depois, no início da década de 1990, o braço armado do Hamas receberia o nome de Sheikh al-Qassam.
Quando as intenções sionistas de criar uma pátria judaica na Palestina tornaram-se evidentes, com o forte apoio das potências europeias, os palestinos tentaram, já no início da década de 1920, mobilizar seus irmãos muçulmanos em todo o mundo para defender Jerusalém e seus lugares sagrados. Em 1931, foi realizada em Jerusalém a primeira conferência islâmica para defender Bait al-Maqdes (nome árabe para Jerusalém), com delegações de países muçulmanos distantes como Irã, Tunísia e Paquistão. Organizações muçulmanas e suas atividades intensificaram-se na Palestina paralelamente ao aumento das atividades e à militarização das organizações sionistas e de seus colonos.
Com a criação de Israel em 1948, uma ampla onda de humilhação reverberou por todo o mundo muçulmano. Os judeus ocuparam mais de dois terços da Palestina e de Jerusalém, ficando a poucos passos da Mesquita de al-Aqsa. Os árabes haviam sido superados pelo poderio sionista e sua conivência com os britânicos. Essa derrota foi impressionante, e a desonra cortou profundamente a psique dos palestinos, árabes e muçulmanos. Desde então, o Islã foi, por vezes, convocado como uma ideologia nativa, enraizada em toda a sociedade muçulmana, que poderia ser usada como ponto de mobilização na luta contra o inimigo e seu Estado erguido na Palestina.
Nas décadas de 1950 e 1960, árabes e palestinos foram fortemente influenciados por ideologias nacionalistas e marxistas em sua campanha para combater Israel e libertar a Palestina. Como resultado, tanto na Palestina quanto nos países vizinhos – Egito, Síria e Jordânia – assim como em países mais distantes como Iraque, Líbia e Argélia, as tendências islamistas foram marginalizadas, e o Islã, enquanto ideologia de mobilização, foi relegado a segundo plano.
Outra derrota – ainda mais humilhante – se avizinhava para palestinos e árabes em 1967, quando Israel lançou ataques devastadores contra Egito, Síria e Jordânia, anexando mais terras de todos eles: o Sinai e a Faixa de Gaza do Egito, as Colinas de Golã da Síria e a Cisjordânia com Jerusalém Oriental e a Mesquita de al-Aqsa da Jordânia. Com o colapso dos exércitos árabes, as ideologias nacionalistas e marxistas começaram a dar lugar ao crescimento gradual dos movimentos islamistas e do islamismo político. A partir de meados da década de 1970, os islamistas palestinos – no uso atual do termo – começaram a estabelecer bases mais sólidas nas cidades palestinas. Com a vitória da revolução iraniana no final dos anos 1970 e a derrota da OLP no Líbano em 1982, os islamistas palestinos passaram a ganhar força constante. Seu principal rival nacionalista, o Movimento Nacional pela Libertação da Palestina (Fatah), havia iniciado seu longo declínio. O Islã estava sendo, mais uma vez, convocado ao centro da política palestina.
AS RAÍZES DA IRMANDADE MUÇULMANA NO HAMAS
Quem são os Irmãos Muçulmanos?
Em sua origem ideológica e estrutural, o Hamas pertence ao universo dos movimentos da Irmandade Muçulmana na região. Esses movimentos foram fundados inicialmente no Egito, em 1928, na véspera do colapso do Império Otomano. Como o principal movimento islamista, a Irmandade Muçulmana pode ser considerada a "mãe de todos os movimentos que compõem o Islã político" no Oriente Médio (com exceção do Irã). Ao longo das últimas oito décadas, suas ramificações foram estabelecidas em quase todos os países árabes – e além – mesclando religião e política ao mais alto grau. A filial palestina foi criada em Jerusalém em 1946, dois anos antes da fundação do Estado de Israel.
Embora a Irmandade Muçulmana tenha sido inicialmente um movimento convencional e relativamente moderado, ao longo das décadas muitos pequenos grupos radicais surgiram a partir dela. A influência de seus principais pensadores – especialmente Sayyed Qutob – teve um impacto enorme sobre diversas correntes do Islã político no mundo inteiro.
O principal objetivo dos diferentes movimentos da Irmandade Muçulmana é estabelecer Estados islâmicos em cada um de seus países, com a utopia final de unificar todos esses Estados islâmicos individuais em um único Estado que represente a Ummah, ou nação muçulmana.
Os movimentos da Irmandade Muçulmana – e os que compartilham a mesma base intelectual e ideológica – são atualmente os mais poderosos e ativos do cenário político no Oriente Médio. Estão fortemente representados na política institucional, com membros ocupando cadeiras parlamentares ou cargos no governo em países como Egito, Jordânia, Iêmen, Kuwait, Marrocos, Sudão, Argélia, Iraque e Bahrein. Também estão fortemente presentes na oposição clandestina ou proibida em lugares como Líbia, Tunísia, Síria e Arábia Saudita.
Embora compartilhem das mesmas origens e fontes doutrinárias, esses movimentos são profundamente moldados por preocupações e agendas nacionalistas próprias. Não existe uma estrutura organizacional hierárquica obrigatória que os una em uma única organização transnacional.
Os movimentos islamistas, tanto historicamente quanto atualmente, diferem bastante em sua compreensão e interpretação do Islã. Em qualquer discussão sobre o Hamas, duas questões principais devem ser distinguidas: as diferentes percepções entre os movimentos islamistas a respeito dos “fins” e dos “meios”.
A questão dos “fins” refere-se à medida em que a política está enraizada no Islã, enquanto a questão dos “meios” diz respeito à controvérsia sobre o uso da violência para alcançar esses fins. O espectro dessas interpretações oscila entre dois extremos. De um lado, há uma compreensão do Islã que politiza a religião e a transforma na autoridade final sobre todos os aspectos da vida, inclusive a política. Do outro, há uma interpretação diferente e apolítica do Islã, que defende que os esforços devem se concentrar na moralidade e nos ensinamentos religiosos, afastando-se da política e da formação de Estados, e onde os únicos meios aceitáveis de difusão da palavra islâmica são pacíficos.
Dentro desse espectro de movimentos islamistas, a Irmandade Muçulmana ocupa quase o centro do contínuo em termos de “fins” e “meios”. Ela acredita na religião politizada e na política religiosa, defendendo com convicção a criação de Estados islâmicos. Ficou estabelecido, desde os fundadores do movimento no Egito dos anos 1930, que os meios para alcançar esse fim deveriam ser pacíficos.
No entanto, ao longo das décadas seguintes, grupos dentro da Irmandade Muçulmana adotaram a violência e entraram em confronto com governos no Egito e na Síria. Desde meados dos anos 1980, no entanto, o movimento tem aderido majoritariamente a meios pacíficos – mesmo quando confrontado com medidas repressivas extremas, como foi o caso do movimento islamista tunisiano no final da década de 1980 e posteriormente.
De um lado dessa posição central da Irmandade Muçulmana no contínuo de fins e meios, estão grupos como a al-Qaeda, que adotam abertamente a violência para alcançar seus objetivos políticos. O Hamas também se encontra desse lado do espectro, mas mais próximo da Irmandade Muçulmana do que da al-Qaeda, em razão de sua especificidade: o uso da violência apenas contra potências estrangeiras ocupantes, e não contra governos nacionais.
Do outro lado da Irmandade Muçulmana, há grupos menores que se afastam da política, como o al-Dawa wal Tabligh, que acredita apenas na difusão de ensinamentos religiosos e da moralidade. Já o Hizb al-Tahrir apresenta uma politização da religião talvez até mais intensa do que a da Irmandade Muçulmana, mas não acredita na violência nem na participação política nos sistemas existentes. Para esse grupo, a luta é puramente intelectual.
Quais são os vínculos entre a Irmandade Muçulmana, a Palestina e o Hamas?O Hamas representa a metamorfose interna da Irmandade Muçulmana palestina, ocorrida no final da década de 1980. Oficialmente, o ramo palestino da Irmandade Muçulmana foi fundado em 1946, em Jerusalém, embora sua presença e atividades na Palestina remontem a 1943/44, em Gaza, Jerusalém, Nablus e outras cidades. Os objetivos, a estrutura e a visão da Irmandade Muçulmana palestina foram delineados com base nos principais princípios da organização-mãe no Egito, cuja meta principal é a islamização da sociedade. Naquela época, não existia ainda o Estado de Israel, e os islamistas lidavam com o mandato britânico e o crescente poder do movimento sionista.
Não há registros significativos da Irmandade Muçulmana palestina lutando contra as tropas britânicas na Palestina durante o período do mandato. A Irmandade Muçulmana egípcia, por outro lado, participou da guerra de 1948 contra os britânicos, enviando centenas de voluntários para lutar ao lado do então fraco exército egípcio. Após a criação do Estado de Israel, em 1948, a Irmandade Muçulmana palestina foi fisicamente dividida em duas partes: uma na Cisjordânia, anexada pela Jordânia, onde se juntou ao ramo jordaniano da Irmandade; e outra na Faixa de Gaza, sob administração egípcia, tornando-se próxima da Irmandade Muçulmana egípcia.
Com a guerra de 1967, novas realidades políticas e geográficas foram impostas, quando toda a Palestina histórica, incluindo Cisjordânia e Gaza, caiu sob controle israelense. Os dois ramos da Irmandade Muçulmana palestina, o de Gaza e o da Cisjordânia, se aproximaram e, ao longo dos anos, desenvolveram estruturas unitárias. Nas décadas de 1970 e 1980, a Irmandade acumulou força e estabeleceu presença em todas as principais cidades palestinas. No cenário político palestino mais amplo, no entanto, os movimentos nacionalistas e de esquerda vinham superando a Irmandade Muçulmana em Gaza e na Cisjordânia desde os anos 1940 até o fim dos anos 1980 – em especial o Fatah (Movimento de Libertação Nacional Palestino) e a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), que reunia os diversos movimentos nacionais palestinos e dominou a política palestina por décadas.
A década de 1980 testemunhou um rápido crescimento do poder da Irmandade Muçulmana. Em dezembro de 1987, eclodiu uma revolta popular palestina, a Intifada, contra a ocupação israelense, começando em Gaza e depois se espalhando para a Cisjordânia. Na véspera dessa revolta, a Irmandade palestina decidiu promover uma grande transformação dentro do movimento. Fundou o Hamas como uma organização adjunta, com a missão específica de enfrentar a ocupação israelense.
Existem outros movimentos islamistas na Palestina?
Sim, existiram – e ainda existem – outros movimentos islamistas além do Hamas na Palestina. O mais importante deles é o Movimento da Jihad Islâmica, criado no início da década de 1980, pelo menos cinco anos antes da emergência do Hamas. A Jihad Islâmica foi formada por ex-integrantes descontentes da própria Irmandade Muçulmana, do Fatah e de outros grupos palestinos nacionalistas e de esquerda. Inspirado pela vitória da Revolução Islâmica no Irã (1978/79), o movimento buscava construir uma ponte entre o Islã e a Palestina – domínios até então representados separadamente pela Irmandade Muçulmana e pelo campo nacionalista (OLP).
Enquanto a Irmandade palestina ainda estava imersa em programas religiosos nos primeiros anos da década de 1980, a Jihad Islâmica ofereceu uma nova versão do islamismo nacionalista, incorporando a luta contra Israel ao próprio cerne do discurso e da prática islâmica. Entre 1982 e 1987, a Jihad Islâmica representou um desafio sério à Irmandade por ter adotado a resistência armada à ocupação israelense. Ao mesmo tempo, desafiava também os grupos nacionalistas, cuja principal crítica à Irmandade era justamente sua demora em confrontar a ocupação. Se a OLP era suficientemente nacionalista, mas carecia de um elemento islâmico, e se a Irmandade era suficientemente islâmica, mas sem dimensão nacionalista, a Jihad Islâmica combinava ambos os componentes e dizia ter superado essa dissociação entre Islã e Palestina.
Na segunda metade da década de 1990, e durante a segunda Intifada (em 2000), a Jihad Islâmica realizou diversos atentados suicidas. Em determinados períodos, chegou a superar o Hamas e outros grupos nesse tipo de ação. Contudo, a Jihad Islâmica tem pouca força em termos de número de membros e redes de apoio, e por isso demonstra pouco entusiasmo em participar de eleições. Justifica isso afirmando que as eleições drenam a energia nacional que deveria ser dirigida à resistência contra Israel. Nas raras ocasiões em que participou de eleições menores – como as de sindicatos estudantis ou trabalhistas – seus resultados variaram entre 4% e 7%, enquanto o Hamas alcançava entre 45% e 55%.
Outro movimento islamista com alguma presença visível na Palestina, embora com pouca relevância atual, é o Hizb al-Tahrir (Partido da Libertação). Fundado em 1952 como um desmembramento da Irmandade Muçulmana, seu princípio é que a raiz de todos os males nas sociedades muçulmanas está na ausência do califado (Khilafa), a autoridade suprema islâmica. Assim, todos os esforços deveriam se concentrar na restauração do califado. Uma vez no poder, o califa (representante da autoridade islâmica suprema) poderia mobilizar os muçulmanos, por meio de seu apelo e, se necessário, da força, direcionando-os para qualquer causa. O Hizb al-Tahrir conclui que o fracasso dos muçulmanos (incluindo os palestinos) se deve à negligência desse princípio. Para o partido, esforços de base e islamização gradual são inúteis – a mudança deve vir de cima. Uma vez o califa no poder, muitos dos problemas enfrentados pelos muçulmanos seriam resolvidos.
Quanto à questão palestina e à ocupação israelense, o Hizb al-Tahrir adota uma postura passiva, o que lhe custou popularidade e influência entre os palestinos. O partido se opõe a todas as formas de participação política – como eleições – e, na ausência de um califa, também se opõe ao uso da violência, tanto contra governos nacionais quanto contra Israel.
A FORMAÇÃO DO HAMAS
Quando, por que e como o Hamas foi fundado?
O Hamas surgiu oficialmente em 14 de dezembro de 1987, declarando-se por meio de um comunicado oficial alguns dias após a eclosão da primeira intifada, a revolta palestina iniciada em 8 de dezembro. A decisão de fundar o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) foi tomada no dia seguinte à intifada, pelos principais líderes da Irmandade Muçulmana Palestina: Sheikh Ahmad Yassin, Abdul ’Aziz al-Rantisi, Salah Shehadeh, Muhammad Sham’ah, ’Isa al-Nashar, ’Abdul Fattah Dukhan e Ibrahim al-Yazuri. (Os três primeiros foram assassinados por Israel nos anos seguintes.)
O Hamas foi criado pela própria Irmandade Muçulmana Palestina em resposta a uma série de fatores que pressionavam a organização. Internamente, no momento da intifada, a base da Irmandade vivia um intenso debate sobre a postura passiva frente à ocupação israelense. Havia duas posições opostas: uma defendia a mudança de política em direção ao confronto com a ocupação, superando o pensamento tradicional focado na islamização da sociedade antes de tudo; a outra mantinha-se fiel à escola clássica do pensamento da Irmandade Muçulmana, que pregava a ideia de “preparar as gerações para a batalha” – uma batalha sem prazo definido.
Com a eclosão da intifada, os defensores da política de confronto ganharam força, argumentando que os islamistas perderiam muito, caso decidissem não participar do levante, ao lado das demais grupos palestinos envolvidas.
Externamente, as difíceis condições de vida dos palestinos na Faixa de Gaza, causadas e agravadas pela ocupação israelense, atingiram um nível sem precedentes. A pobreza, combinada ao sentimento de opressão e humilhação, criou o ambiente propício para uma revolta. A intifada foi o ponto de ignição, refletindo a acumulação de experiências e sofrimentos passados mais do que um evento específico que a tenha desencadeado. Do ponto de vista estratégico, foi uma oportunidade de ouro para a Irmandade Muçulmana se posicionar (e ser vista) como liderança do levante. Foi o que fez, ao criar o Hamas.
Outro fator externo foi a rivalidade com uma organização islâmica semelhante, embora menos nacionalista e não marxista, a Jihad Islâmica. Como mencionado anteriormente, o Movimento da Jihad Islâmica havia crescido nos anos anteriores à intifada. O próprio incidente que desencadeou a revolta envolveu membros da Jihad Islâmica que haviam escapado de uma prisão israelense e entrado em confronto com soldados israelenses. Vendo esses membros serem exaltados como heróis pelo povo palestino, a Irmandade Muçulmana sentiu-se ameaçada pela sua pequena, porém mais ativa concorrente. Isso acelerou sua transformação interna.
Por que os islamistas palestinos só iniciaram a luta armada contra a ocupação israelense em 1987, sendo que a ocupação começou em 1967?
Na visão da Irmandade Muçulmana – tanto na Palestina antes da criação do Hamas quanto em outros países – os fracassos dos muçulmanos (atraso, fraqueza e derrotas diante dos inimigos) eram consequência de seu desvio do verdadeiro caminho do Islã. Portanto, o processo adequado para corrigir esses fracassos, inclusive as derrotas frente a Israel, era educar os muçulmanos sobre sua religião e fortalecer sua fé. Transformar pessoas de muçulmanos ignorantes em devotos permitiria a reabilitação da sociedade islâmica como um todo, preparando-a para o combate a partir de uma base sólida. Essa lógica foi chamada, no discurso da Irmandade Muçulmana, de “preparação das gerações”.
Os Irmãos Muçulmanos Palestinos acreditavam profundamente nesse princípio, e usaram-no de forma consistente para justificar sua política de não confronto com a ocupação israelense durante as décadas de 1950, 1960, 1970 e até 1987. Diante de crescentes acusações de covardia ou até de conivência indireta com a ocupação israelense, os islamistas palestinos mantiveram sua estratégia de “preparar as gerações”. Argumentavam que seria inútil lutar contra Israel com um “exército corrompido”; era preciso primeiro formar um exército devoto e comprometido religiosamente, e só então entrar em guerra contra Israel.
Essa estratégia foi alvo de críticas constantes. Para nacionalistas e esquerdistas palestinos, essa abordagem era uma desculpa para se abster da luta nacional. Também foi criticada por ser ingênua em dois aspectos: primeiro, por associar a capacidade e a intenção de lutar à religiosidade de um indivíduo; segundo, por contrapor a abstração indefinida da “preparação das gerações” à necessidade concreta e urgente de se engajar com o inimigo no presente. Para os críticos, a verdadeira preparação se dá na própria luta, onde as pessoas aprendem e se fortalecem por meio da experiência e do sofrimento.
Além disso, Israel naturalmente via com bons olhos a ideia dos islamistas de adiar a luta armada até que as gerações estivessem espiritual e moralmente preparadas.
Os apoiadores do Hamas defendem retrospectivamente esse pensamento inicial de sua organização-mãe. Argumentam que foi essa estratégia que garantiu um início forte para o Hamas e seus sucessos contínuos nos anos seguintes. Para eles, a necessidade de preparação gradual e paciente era justificada, pois nos anos 1960 e 1970 os islamistas eram militarmente muito frágeis, e, caso tivessem optado por um confronto prematuro, teriam sido facilmente esmagados, sem beneficiar nem a Palestina nem o Islã.
Apesar de suas justificativas, os islamistas pagaram um preço alto pelas décadas em que adotaram uma política de não confrontação. Deram oportunidade para seus rivais nacionalistas ganharem terreno e se colocaram em posição desvantajosa. Mais importante ainda, privaram a luta palestina contra a ocupação israelense da participação de um segmento significativo da população palestina que havia sido influenciado pela Irmandade Muçulmana e seu modo de pensar.
A IDEOLOGIA, ESTRATÉGIA EOBJETIVOS DO HAMAS
A DEFINIÇÃO DO HAMAS, SUA MOTIVAÇÃO IDEOLÓGICA E VISÃO DE MUNDO
O que é o Hamas, e ele é movido por convicções religiosas ou políticas?
Talvez a resposta mais esclarecedora para essa pergunta comum possa ser encontrada em uma longa autodefinição que o Hamas produziu certa vez, ao se apresentar a um governo europeu, anos antes de assumir o poder em 2006. Nessa autodefinição, o Hamas expõe seus objetivos e estratégias, além de sua visão de longo prazo para a solução da questão palestina. O Hamas se descreve da seguinte forma:
O Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) é um movimento nacional de libertação palestino que luta pela libertação dos territórios palestinos ocupados e pelo reconhecimento dos direitos legítimos dos palestinos.
Embora tenha surgido logo após a eclosão da primeira intifada palestina (levante popular) em dezembro de 1987, como expressão da indignação do povo palestino diante da continuidade da ocupação israelense das terras palestinas e da perseguição ao povo palestino, as raízes do Hamas se aprofundam muito mais na história.
A motivação do movimento para a resistência foi expressa por seu fundador e líder, o Sheikh Ahmad Yassin:
“O movimento luta contra Israel porque é o Estado agressor, usurpador e opressor que, dia e noite, aponta o fuzil para o rosto de nossos filhos e filhas.”
O Hamas se considera uma continuação de uma antiga tradição que remonta à luta contra o colonialismo britânico e sionista na Palestina, no início do século XX. Os fundamentos dos quais deriva sua legitimidade estão espelhados no próprio nome que escolheu para si. Hamas, no idioma árabe, significa que seus princípios orientadores derivam das doutrinas e valores do Islã. O Islã é completamente o referencial ideológico do Hamas. É a partir dos valores do Islã que o movimento busca inspiração em seu esforço de mobilização – particularmente ao tentar lidar com a enorme disparidade de recursos materiais entre o povo palestino e seus apoiadores, de um lado, e Israel e seus aliados, do outro.
As formas de resistência adotadas pelo Hamas derivam das mesmas justificativas sobre as quais o movimento nacional de resistência palestino tem baseado sua luta há mais de um quarto de século. Pelo menos os dez primeiros artigos da Carta Nacional Palestina, emitida pela OLP (Organização para a Libertação da Palestina), mostram completa compatibilidade com o discurso do Hamas, conforme elaborado em sua própria Carta e outras declarações.
Além disso, as mesmas justificativas para a resistência já haviam sido reconhecidas, ou endossadas, antes do surgimento do Hamas em dezembro de 1987, por uma variedade de organismos regionais e internacionais, como a Liga Árabe, a Organização da Conferência Islâmica, o Movimento dos Não Alinhados e as Nações Unidas. Está claramente reconhecido que a ocupação israelense da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, iniciada em 1967, é ilegal, segundo as Resoluções 242 e 338 do Conselho de Segurança da ONU.
Apesar da imagem fortemente militarizada que muitos no Ocidente têm do Hamas, o movimento não é apenas uma facção militar. Trata-se de uma organização de base política, cultural e social que possui um braço militar separado, especializado na resistência armada contra a ocupação israelense. Com exceção desse braço militar estrategicamente sigiloso, todas as demais áreas do Hamas funcionam de forma aberta e pública. O braço armado tem sua própria liderança e mecanismos de recrutamento.
As atividades sociais e educacionais do Hamas nos Territórios Ocupados tornaram-se tão entrelaçadas à comunidade palestina que nem os israelenses nem seus parceiros de paz na Autoridade Palestina conseguiram separar uma coisa da outra. O fato é que o Hamas, ao contrário da avaliação israelense, atua como infraestrutura para inúmeras instituições culturais, educacionais e sociais em Gaza e na Cisjordânia, prestando serviços públicos valiosos e insubstituíveis. Em outras palavras, é o Hamas que dá vida a essas instituições, e não o contrário.
Os israelenses têm repetidamente pressionado a Autoridade Palestina para que feche essas instituições. A Autoridade tentou, mas fracassou. Reprimir essas instituições equivale a declarar guerra – não apenas ao Hamas, mas a toda a comunidade palestina.
Qual é o objetivo final do Hamas? Seria o estabelecimento de um Estado islâmico na Palestina?
A vaga ideia de estabelecer um Estado islâmico na Palestina, mencionada nas primeiras declarações do movimento, foi rapidamente deixada de lado e superada. Mesmo quando repetida por membros do Hamas, nunca chegou a constituir uma proposta realmente séria com detalhes pensados e elaborados. Se algo pode ser dito, é que essa existência relutante no início, seguida de quase completo desaparecimento da ideia na documentação e no discurso do Hamas, refletia a tensão nas mentes de seus líderes entre o político e o religioso.
De um lado, havia o impulso subconsciente de permanecer fiel à utopia religiosa pura do período anterior ao Hamas, onde o sonho de um Estado islâmico buscava alcançar os objetivos de um futuro longínquo. De outro, a simplificação excessiva e a ingenuidade desse sonho expunham o quanto o Hamas precisava tomar consciência das realidades enfrentadas diariamente pelos palestinos no terreno.
À luz disso, o sonho do Hamas de um Estado islâmico puro tornou-se praticamente embaraçoso, mas essa percepção levou ao desenvolvimento de um Hamas mais sofisticado – um Hamas disposto a focar nas necessidades reais de um povo palestino sob cerco.
Palestinos de todo o espectro político têm lutado desesperadamente há mais de oito décadas para obter sequer direitos mínimos legítimos – primeiro contra os ocupantes britânicos após o Mandato de 1922, no qual a Grã-Bretanha recebeu o controle da parte do antigo Império Otomano que incluía a Palestina; e depois a partir de 1948, quando a Grã-Bretanha se retirou da Palestina, deixando a organização sionista declarar o Estado judeu de Israel.
Desde então, Israel tem, essencialmente, ocupado e colonizado não apenas as partes da Palestina que lhe foram “atribuídas” pelo plano de partilha da ONU em 1947, mas também vastas áreas que não lhe foram concedidas. Após todas essas décadas de luta, o máximo que a liderança palestina conseguiu buscar – sem sucesso – foi a manutenção ou a recuperação de, no máximo, um oitavo do território histórico da Palestina.
O Estado islâmico mencionado nos primeiros textos do Hamas era visualizado como abrangendo toda a Palestina, do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. A questão passou a ser: o Hamas esperaria, na esperança de uma libertação total da Palestina histórica, ou buscaria impor um Estado islâmico temporário apenas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, caso esses territórios fossem devolvidos aos palestinos? Que tipo de Estado seria esse, e como lidaria com seus vizinhos, com Israel, com o mundo? Com base em quê o faria? E assim por diante.
Havia uma lista interminável de questões insolúveis em torno dessa ideia de estabelecer um Estado islâmico, e, eventualmente, isso levou à sua completa banalização, com o Hamas abandonando totalmente a ideia.
Se não é a formação de um Estado islâmico, então qual é, agora, o objetivo final do Hamas?
Uma resposta direta, sugerida pelas declarações formais do movimento, é a libertação total da terra histórica da Palestina – do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. No entanto, assim como o objetivo religioso utópico de estabelecer um Estado islâmico, esse objetivo nacionalista utópico tem sido cada vez menos mencionado nos documentos e declarações públicas do Hamas.
Na verdade, quanto mais o Hamas atua, menos interesse demonstra em adotar ou declarar “objetivos finais”. O Hamas se desenvolveu – e continua se desenvolvendo – em um movimento cada vez mais voltado para objetivos imediatos e de médio prazo.
Ao assumir o poder após as eleições de 2006, o Hamas passou a focar seu discurso, tanto antes quanto depois das eleições, no conceito de resistência explícita à ocupação israelense, ao mesmo tempo em que, de maneira implícita (ainda que relutante), aceitou o princípio de uma solução de dois Estados. Nem o Estado islâmico nem a libertação total da Palestina têm sido enfatizados. Os objetivos finais, assim, foram substituídos por metas de curto e médio prazo, mais urgentes e realistas.
Qual é a estratégia do Hamas?
Para confirmar sua saída do campo dos sonhos distantes, o Hamas começou a defender objetivos mais alcançáveis, tanto no curto quanto no médio prazo. Ele não apenas buscou alívio imediato e benefícios concretos para os palestinos no presente, como também passou a perseguir metas compreensíveis para audiências regionais e internacionais. Minimizado o tom religioso em sua linguagem, o discurso do Hamas tornou-se mais consciente, adotando um vocabulário jurídico e baseando-se nas normas do direito internacional. Ainda assim, o movimento continua tentando manter vivo, da forma mais branda possível, o princípio da “libertação total da Palestina”, dentro do contexto dos desafios imediatos enfrentados pelo próprio movimento e pelos palestinos em geral.
Nos poucos anos que se seguiram à Primeira Intifada, o Hamas desenvolveu consideravelmente sua estratégia, superando as declarações iniciais contidas em sua carta fundacional. Em 1993, divulgou um “Memorando Introdutório”. Sob o título “A Estratégia do Movimento”, lia-se:
O Hamas constrói sua estratégia para enfrentar a ocupação sionista da seguinte forma:
O povo palestino, sendo o alvo principal da ocupação, carrega a maior parte do fardo da resistência. O Hamas, portanto, trabalha para mobilizar as energias desse povo e direcioná-las para a firmeza.
O campo de confronto com o inimigo é a Palestina, sendo as terras árabes e islâmicas campos de apoio ao nosso povo – especialmente aquelas que foram enriquecidas com o sangue puro de mártires ao longo das eras.
Enfrentar e resistir ao inimigo na Palestina deve ser uma tarefa contínua até a vitória e a libertação.
A luta sagrada em nome de Deus é nosso guia, e combater e infligir danos às tropas inimigas e seus instrumentos ocupa o topo dos nossos meios de resistência.
A atividade política, em nossa visão, é um dos meios da luta sagrada contra o inimigo sionista e visa fortalecer a resistência e a firmeza do nosso povo, bem como mobilizar suas energias e as da nossa nação árabe-islâmica para tornar vitoriosa a nossa causa.
Nessa estratégia, o Hamas define claramente os “limites” do conflito armado, afirmando expressamente que não pretende realizar ações militares fora da Palestina: “o campo de confronto com o inimigo é a Palestina”. O movimento reiterou essa posição para assegurar ao mundo externo que atacar alvos ocidentais – ou mesmo israelenses – fora da Palestina não fazia parte de sua agenda.
Vale mencionar que essas diretrizes foram formuladas 13 anos antes de o Hamas chegar ao poder e assumir o controle da Autoridade Palestina em janeiro de 2006. Essas declarações amplas sobre sua estratégia foram traçadas com pouquíssima – ou nenhuma – expectativa sobre os rumos políticos e militares que o conflito israelo-palestino tomaria. Com certeza, estava além da imaginação daqueles que redigiram esse documento que o Hamas um dia venceria eleições democráticas livres e justas para controlar uma autoridade autônoma limitada, criada por acordos de paz entre seus rivais e Israel.
Essa nova situação colocou a pedra angular da estratégia do Hamas – a “resistência armada” à ocupação israelense – sob intenso escrutínio. Ao assumir um governo enfraquecido e sob cerco, o Hamas se viu submerso nas inúmeras questões relacionadas à vida cotidiana dos palestinos. Qualquer pensamento de resistência armada passou, por um tempo, a parecer um luxo que o movimento não podia se permitir. Como já mencionado, o Hamas havia reconhecido pragmaticamente que o bem-estar imediato do povo palestino sitiado era tão importante quanto quaisquer ideais de longo prazo. Conseguiu preservar sua imagem como partido da resistência ao adotar a fórmula de que “a atividade política... é também um dos meios de luta” – uma linha repetida frequentemente por seus líderes, segundo a qual a resistência militar não é um fim em si, mas um meio para um fim. Assim, estar envolvido em atividades de governo e atender às necessidades cotidianas do povo palestino passou a ser facilmente associado aos parâmetros amplos da resistência.
Como o Hamas percebe o mundo?
O mundo imediato do Hamas, conforme explicado em sua literatura, é composto por três círculos concêntricos: o núcleo palestino, o círculo árabe maior e o ainda mais abrangente círculo islâmico. Além desses círculos, está o resto do mundo. Para o Hamas, a questão da Palestina é o determinante fundamental na configuração das relações entre esses três círculos e o restante do mundo. A literatura do movimento afirma:
O Hamas acredita que o conflito contínuo entre árabes e muçulmanos e os sionistas na Palestina é uma luta civilizacional fatal que não pode ser encerrada sem eliminar sua causa, a saber, o assentamento sionista da Palestina.
O Ocidente é acusado não apenas de ter criado ilegalmente Israel, mas também de trazer devastação e desmembramento para toda a região:
Esse empreendimento de agressão [sobre a Palestina] complementa o projeto ocidental mais amplo, que busca despojar esta nação árabe-islâmica de suas raízes culturais, a fim de consolidar a hegemonia sionista-ocidental sobre ela – por meio da concretização do plano da Grande Israel e do estabelecimento de controle político e econômico sobre a região.
Fazer isso implica manter o estado [atual] de divisão física, atraso e dependência em que essa nação árabe-islâmica se vê forçada a viver.O conflito, tal como descrito, é uma luta entre a verdade e a falsidade, o que obriga árabes e muçulmanos a apoiar os palestinos no fardo de uma luta sagrada para extirpar a presença sionista da Palestina e impedir sua expansão para outros países árabes e islâmicos.
Dos círculos que cercam a Palestina, o primeiro é o árabe, o segundo é o islâmico e o terceiro é o resto do mundo. Naturalmente, há mais afinidade e intimidade com os círculos árabe e islâmico. Há também um nível considerável de frustração, crítica e ataque em relação à indiferença demonstrada pelo círculo mais externo – o “mundo” – diante do sofrimento dos palestinos. O Ocidente é frequentemente acusado não apenas de ter “transplantado” Israel à força no coração da região árabe, mas também de apoiar continuamente o “Estado sionista usurpador e agressivo”, que teria inclusive buscado expandir-se para além das fronteiras de sua fundação ilegal original.
Nos estágios iniciais de sua trajetória, o pensamento do Hamas era marcado por uma dicotomia que dividia o mundo entre a “verdade” representada por muçulmanos e crentes, e a “falsidade” representada por não muçulmanos – especialmente ocidentais e judeus. Essa visão simplista quase desapareceu com o tempo nos discursos do movimento. À medida que o Hamas ganhou influência, expandiu suas relações regionais e internacionais, e reconheceu a complexidade da realidade e da política em campo, o movimento reformulou sua “visão de mundo” e efetivamente abandonou a dicotomia entre crentes e não crentes. A noção de apoio político aos palestinos e à sua causa justa passou a ser o critério fundamental pelo qual o Hamas avalia os atores internacionais e sua posição no conflito.
HAMAS: UM MOVIMENTO DE LIBERTAÇÃO NACIONAL OU UM MOVIMENTO RELIGIOSO?
Quais são os elementos nacionalistas e os elementos religiosos no pensamento e na prática do Hamas?
O Hamas é uma mescla de movimento de libertação nacional e grupo religioso islamista. Por conta dessa natureza, suas forças motrizes são duais, seu funcionamento cotidiano é biaxial e seus objetivos finais são bifocais – sendo que cada lado de cada binário serve ao outro.
As duas motivações centrais para que os palestinos ingressem no Hamas são: engajar-se ativamente na “libertação da Palestina” por meio da resistência à ocupação israelense (e tudo o que isso possa implicar) e servir ao Islã e disseminar sua mensagem. A palavra “e” aqui é essencial e não pode ser substituída por “ou”, embora o equilíbrio entre os dois motivos não precise ser igual nem o mesmo para todos. O Hamas entende que sua força reside justamente nessa conexão – a liga reforçada entre essas duas vertentes distintas do ativismo político palestino: o movimento secular nacionalista de libertação, que tem confrontado Israel, e o movimento religioso islamista, que em grande parte não o fez. A lógica desejada é que, ao lutar pela libertação da Palestina, o indivíduo está servindo ao Islã, e ao fortalecer o chamado do Islã, esse mesmo indivíduo está servindo à luta de libertação.
Na verdade, essa é uma das principais razões subjacentes que explicam a ascensão contínua do Hamas. Pessoas com fortes sentimentos nacionalistas e desejo de lutar contra Israel, somados a um pano de fundo islamista tradicional, tendem a ver o Hamas como seu movimento natural. Outras, com forte religiosidade e que também desejam agir contra Israel, também se juntam ao Hamas. É de se esperar que ambas as motivações habitem a mente e a alma dos membros do Hamas, embora com intensidades diferentes em cada indivíduo. Por exemplo, membros da Irmandade Muçulmana que se tornaram automaticamente membros do Hamas quando a primeira foi transformada na segunda, tendem a nutrir um impulso religioso mais forte do que aqueles que se juntaram ao Hamas em estágios posteriores, após abandonarem outros grupos nacionalistas.
As operações cotidianas do Hamas, portanto, se estendem ao longo do eixo de atividades religiosas e nacionalistas. Ele dedica consideráveis esforços à educação de seus membros segundo os ideais islâmicos, conforme entendidos e interpretados pela organização. Principalmente através do uso das mesquitas, o Hamas construiu uma forte geração de jovens aderentes ao Islã. Desde orações diárias e recitação de versículos do Alcorão até o combate ao “vício” nas ruas, os membros do Hamas seguem rigorosamente os detalhes dos rituais islâmicos. A outra parte do cotidiano do Hamas é a luta contra Israel. O pensamento do Hamas sustenta a convicção de que quanto mais devoto for o indivíduo, maior será sua disposição ao sacrifício no campo de batalha. Desse modo, o ensinamento religioso fortalece a frente de libertação.
Os objetivos finais do Hamas também são duplos: a “libertação da Palestina” e a islamização da sociedade. No pensamento inicial do Hamas – e entre islamistas palestinos mais rígidos – esses dois objetivos não poderiam ser alcançados simultaneamente, mas sim em sequência. Para eles, seria inútil tentar libertar a Palestina antes de alcançar um grau satisfatório de islamização na sociedade palestina. Em sua visão, somente indivíduos religiosos e disciplinados pelo Islã seriam capazes de derrotar Israel. O que o Hamas fez, dentro dessa concepção tradicional, foi romper com essa sequência imaginada e argumentar que ambos os processos podem ser perseguidos em paralelo. Assim, o Hamas atrai tanto aqueles que desejam libertar a Palestina quanto aqueles que desejam islamizar a sociedade palestina.
Até que ponto os elementos nacionalistas e religiosos são conciliados dentro do Hamas?
Ao longo de sua existência, o Hamas demonstrou um grau razoável de conciliação entre seus lados nacionalista e religioso. Isso foi facilitado pelo fato de que a organização esteve na oposição até recentemente, e não enfrentou as contradições práticas realmente desafiadoras que surgem no exercício efetivo do poder.
Do ponto de vista nacionalista, o aspecto religioso do Hamas teve resultados mistos. Manteve-se uma disciplina extraordinária e um alto nível de sacrifício por parte da base do movimento na luta contra Israel. Essa foi a base para o trabalho de solidariedade social do movimento, que beneficiou amplas parcelas da população palestina, especialmente diante da extrema pobreza nos campos de refugiados e áreas carentes. No entanto, ao mesmo tempo, o aspecto religioso por vezes sobrepôs-se ao aspecto político e nacionalista do Hamas na base popular. A prática religiosa mais controversa adotada pelo Hamas, direta ou indiretamente, foi a imposição percebida de códigos morais religiosos sobre os palestinos. Em paralelo à ascensão do Hamas, criou-se uma atmosfera quase intimidatória, particularmente na Faixa de Gaza, onde as pessoas sentiam uma pressão indireta para obedecer às diretrizes morais do grupo. Esse tema é discutido com mais detalhes no Capítulo 5, mas o ponto relevante aqui é que essas iniciativas de islamização forçada da sociedade provocaram indignação e condenação em alguns setores, comprometendo o apelo nacionalista do Hamas.
Sob a perspectiva religiosa, o aspecto nacionalista do movimento também trouxe resultados mistos para o Hamas. Primeiramente, conferiu aos islamistas palestinos uma legitimidade extremamente necessária, proveniente do simples fato de estarem confrontando a ocupação israelense. Assim, o movimento islamista palestino, em sua nova forma como Hamas, passou a contar com um apelo adicional para alcançar mais seguidores e recrutas em potencial. Além disso, o envolvimento mais profundo no esforço nacionalista de confronto ampliou a perspectiva e a experiência dos islamistas palestinos, trazendo-os para o centro da realidade política. Isso impulsionou o movimento a entrelaçar sua compreensão religiosa – por meio da emissão de fatwas (justificativas religiosas) para ações políticas e até pseudo-militares – com o ritmo acelerado da luta nacionalista e suas exigências políticas.
Entretanto, o elemento nacionalista foi visto, às vezes e de certas formas, como invadindo ou se sobrepondo ao domínio do religioso. Isso ocorreu nos bastidores, em áreas como a formação de alianças com grupos de esquerda e a participação em esforços políticos coordenados que poderiam envolver acordos sobre questões que seriam reprovadas do ponto de vista religioso. Por exemplo, em 1996 o Hamas boicotou as eleições para o Conselho Legislativo, mas em 2006 não apenas participou como as venceu. Essa mudança gerou certa desaprovação interna no campo religioso. Uma minoria considerou essas eleições haram (proibidas), por envolverem uma concessão sobre “a terra islâmica da Palestina e a soberania islâmica sobre ela”.
Em resumo, o Hamas conseguiu manter seus componentes nacionalista e religioso relativamente harmonizados antes de assumir o poder, em 2006. Após as eleições e com o Hamas no governo, a tensão entre as dimensões religiosa e nacionalista/política do movimento passou a emergir publicamente. Uma enorme pressão foi colocada sobre a liderança política do Hamas quando, ao vencer inesperadamente as eleições, viu-se subitamente diante de desafios inéditos. O governo do Hamas foi imediatamente alvo de um cerco internacional, liderado pelos Estados Unidos e pela União Europeia – com envolvimento até da ONU, sem mencionar Israel –, o que exigiu iniciativas políticas rápidas e criativas. O luxo e o tempo disponíveis para formular cada passo político de modo a satisfazer todas as correntes internas e apresentá-los de forma atrativa ao mundo externo chegaram ao fim. É seguro afirmar que, quanto mais tempo o Hamas permanecer no poder, mais tensões surgirão entre seus elementos religiosos e nacionalistas, com a provável consequência pragmática de empurrar o movimento para uma orientação mais nacionalista e politizada.
HAMAS, ISRAEL E JUDAÍSMO
A VISÃO DO HAMAS SOBRE OS JUDEUS
O Hamas é um movimento antissemita?
Para começar, o termo "antissemita" é altamente problemático quando aplicado às percepções palestinas ou árabes sobre judeus e judaísmo, pois os próprios palestinos e árabes são semitas. No contexto árabe, esse termo é uma contradição em si mesmo. Uma descrição mais precisa para certas atitudes palestinas e/ou árabes em relação aos judeus seriam "antijudaicas".
Historicamente, muçulmanos, cristãos e judeus indígenas do Oriente Médio coexistiram com um grau notável de harmonia, especialmente em contraste com a intolerância religiosa e o fanatismo da Europa medieval cristã. Os judeus, em particular, viveram uma “era de ouro” sob o domínio islâmico no que hoje é o Oriente Médio, o Norte da África e, especialmente, na Andaluzia. A tolerância islâmica em relação aos judeus e cristãos está enraizada no Alcorão, que reconhece as origens comuns do Islã, do judaísmo e do cristianismo no Antigo Testamento e exige respeito por esses grupos. Portanto, não há base teológica para discriminação religiosa, étnica ou racial que justifique um antissemitismo ao estilo europeu.
Ironicamente, os sentimentos antijudaicos que surgiram no Oriente Médio no início do século XX foram importados da Europa, através de ideias e ações europeias. O sionismo europeu explorou o desejo crescente de resolver a "questão judaica" (agravada tragicamente pelo Holocausto), promovendo a migração de judeus para fora da Europa e a criação de um Estado Judeu na Palestina. Com o estabelecimento de Israel em 1948, imposto aos custos dos palestinos nativos, judeus e sionistas, assim como o judaísmo e o sionismo, tornaram-se inseparáveis na percepção árabe. Metade do povo palestino foi expulsa de suas terras, honestamente por judeus de origem europeia, com o aval do Ocidente. Assim, judeus/sionistas passaram a ser vistos como uma força colonial de ocupação, destruindo séculos de coexistência entre muçulmanos e judeus na região.
O livro fraudulento “Os Protocolos dos Sábios de Sião” (também de origem europeia), que descreve os judeus como arquitetos de uma conspiração global, encontrou terreno fértil na Palestina após 1948. Esse ano marcou o fim da coexistência e o início de um ciclo de violência e ódio.
O Hamas é antijudaico?
Intrinsecamente, o Hamas não pode ser antijudaico. Segundo os ensinamentos islâmicos, o Hamas – ou qualquer grupo ou indivíduo muçulmano – é proibido o taque a judeus (ou cristãos) simplesmente por sua religião ou origem. Portanto, o Hamas é antissionista, não antijudaico. O sionismo é definido como "um movimento político que busca estabelecer um Estado Judeu na Palestina".
Embora, em seus primeiros anos, o Hamas não tenha distinguido claramente entre judaísmo (religião) e sionismo (ideologia política), nas últimas décadas essa diferenciação foi esclarecida. O Hamas rejeita o sionismo, não os judeus.
A VISÃO DO HAMAS SOBRE ISRAEL
O que é Israel aos olhos do Hamas?
Para o Hamas, Israel é um Estado colonial estabelecido pela força, resultado do colonialismo e imperialismo ocidental contra árabes e muçulmanos no início do século XX. Essa visão central é complementada por outras percepções que, por vezes, coincidem com as de grupos palestinos mais seculares. Nos seus primeiros anos, a visão do Hamas sobre Israel estava carregada de significado religioso, considerando Israel como o ápice de um ataque judaico contra muçulmanos e seus lugares sagrados em Jerusalém. A criação de Israel com forte apoio das potências ocidentais era vista como uma renovação das Cruzadas medievais.
No entanto, o discurso do Hamas tornou-se mais desenvolvido e adaptado às realidades modernas. Sua visão sobre Israel foi reformulada dentro dos parâmetros de ocupação/ocupante, com a resistência focada na agressão israelense, não em sua religião. Seria impreciso sugerir que essa evolução no discurso do Hamas surgiu de raízes profundas ou que substituiu completamente a linguagem antiga, carregada de antagonismo religioso contra Israel. Mas, em termos gerais, o discurso político atual da liderança do Hamas, expresso em suas declarações e documentos oficiais sobre Israel, baseia-se principalmente na linguagem do direito internacional e em premissas políticas, não religiosas.
O Hamas planeja a destruição de Israel?
A frase "destruição de Israel", frequentemente usada pela mídia ao se referir ao "objetivo final" do Hamas, nunca foi usada ou adotada pelo movimento, mesmo em suas declarações mais radicais. O slogan fundamental do Hamas é "a libertação da Palestina", que não especifica o que seria feito com Israel caso esse objetivo fosse alcançado. Em sua Carta de 1988, considerada obsoleta e repleta de retórica que hoje embaraça o Hamas, há declarações que poderiam ser interpretadas como referentes à destruição de Israel. Porém, o documento tem valor mínimo atualmente e não corresponde às realidades e pensamentos que o Hamas vive e expressa hoje.
Falando realisticamente, o argumento de que "o objetivo tácito e final do Hamas é a destruição de Israel" não tem relevância. Os fatos e posições no terreno falam por si e apontam na direção completamente oposta. Nem o Hamas, nem qualquer outro partido ou Estado palestino/árabe, sonha em ter a capacidade de destruir Israel. Israel possui capacidades militares convencionais e não convencionais que lhe permitiriam destruir todos os países vizinhos no Oriente Médio em questão de dias. É fato incontestável que não há ameaça à existência de Israel no médio ou longo prazo, mas certamente há uma ameaça contra os palestinos imposta por Israel. Retratar o Hamas (e os palestinos) como tal ameaça a Israel é questão de propaganda política e sensacionalismo emocional.
Nos últimos anos, o Hamas superou seu discurso ingênuo do final dos anos 1980, e seus projetos atuais são mais matizados, com pronunciamentos mais realistas. O tema dominante de seu discurso político e militar é a resistência contra a ocupação de terras ilegalmente tomadas e a expulsão dos ocupantes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Desde que assumiu o controle da Autoridade Palestina após as eleições de 2006, o Hamas não expressou uma única palavra da antiga retórica da Carta, nem emitiu slogans mal considerados.
Em resumo, qualquer sugestão de que o Hamas planeja ou almeja destruir Israel é obviamente ingênua. Para o Hamas alcançar tal objetivo, teria que permanecer no poder por décadas, derrotando todos os grupos palestinos que não trabalhassem nesse sentido. Também teria que construir um enorme exército palestino na Cisjordânia e na Faixa de Gaza ao longo de décadas, com Israel assistindo indiferente. Precisaria importar tanques e caças de fontes internacionais simpáticas (que não existem) e treinar centenas de milhares de soldados nas pequenas faixas de terra não contíguas que controla. Como o Hamas poderia derrotar Israel militarmente, muito menos destruí-lo, quando todos os países árabes juntos falharam em fazê-lo no último meio século?
Apesar da euforia que o Hamas pareceu desfrutar em seus momentos altos - tanto militarmente, com seus ataques suicidas bem-sucedidos no coração das cidades israelenses, quanto politicamente, com sua vitória eleitoral em 2006 -, o Hamas permanece defensivo, não ofensivo. As limitações estruturais que afetam os palestinos em geral também se aplicam ao Hamas, às vezes até mais, devido à especificidade do movimento (como a falta de apoio internacional, ao contrário da OLP). Consciente de sua difícil posição, o envolvimento do Hamas na política e nos assuntos mundiais é impulsionado principalmente por mecanismos defensivos. Seu objetivo fundamental nos próximos anos será simplesmente preservar sua própria existência e evitar a destruição, não destruir outros.
O Hamas reconheceria Israel e firmaria acordos de paz?
Não é inconcebível que o Hamas venha a reconhecer Israel. O pragmatismo do movimento e sua abordagem realista das questões deixam ampla margem para tal desenvolvimento. No entanto, as condições necessárias para criar um clima favorável a esse passo dependem principalmente de Israel. Enquanto Israel se recusar a reconhecer os direitos básicos do povo palestino em qualquer solução baseada no princípio de dois Estados, será impossível para o Hamas reconhecer Israel.
Apesar da retórica frequentemente citada em discursos do Hamas sobre a impossibilidade de reconhecer Israel, há de fato uma linha de pensamento visível que abre essa possibilidade – desde que Israel corresponda de forma positiva. Em abril de 2006, o então chanceler do Hamas, Mahmoud al-Zahhar, enviou uma carta ao secretário-geral da ONU, Kofi Annan, declarando que seu governo estaria disposto a viver em paz, lado a lado com seus "vizinhos", com base em uma solução de dois Estados. No entanto, outras declarações de líderes do Hamas sugerem que o reconhecimento de Israel deveria ser um objetivo das negociações, não um pré-requisito para elas.
Se Israel não demonstrar interesse em negociar com o Hamas e insistir em "medidas unilaterais" que perpetuem o status quo da ocupação, o movimento jamais reconhecerá Israel. Nesse cenário, o máximo que o Hamas poderia aceitar seria uma trégua de longo prazo, evitando até o fim o reconhecimento formal.
Um tratado de paz entre Israel e Hamas não é implausívelO Hamas possui influência, legitimidade e um histórico de governança relativamente estável entre os palestinos, o que lhe dá capital político para negociar com Israel. Na tentativa de conciliar suas declarações passadas de não reconhecimento com as realidades urgentes, o movimento estabeleceu uma distinção entre o governo do Hamas (que poderia adotar posições mais flexíveis) e o Hamas como organização. Isso significa que, em tese, um governo liderado pelo Hamas estaria disposto a ir além das posições tradicionais do movimento. No entanto, o alcance dessas negociações dependeria fortemente das concessões oferecidas por Israel.
Para conciliar seu objetivo histórico de libertação de toda a Palestina com a realidade da existência de Israel, o Hamas propôs a realização de um referendo nacional sobre qualquer acordo final entre israelenses e palestinos. O Hamas, como governo democraticamente eleito, se comprometeria a acatar a decisão do povo palestino em uma votação livre e democrática.
Na visão do Hamas, o referendo é uma solução viável para o impasse teórico e prático que poderia surgir – e que, muitas vezes, é atribuído erroneamente apenas à sua recusa em reconhecer Israel. Se um tratado de paz, negociado em condições satisfatórias para os palestinos, exigisse o reconhecimento mútuo entre as partes, o Hamas como organização afirma publicamente que, nessas circunstâncias, não teria escolha a não ser respeitar a vontade popular expressa no referendo.
A RESISTÊNCIA E A ESTRATÉGIA MILITAR DO HAMAS
FORÇANDO A RETIRADA INCONDICIONAL DE ISRAEL
Qual é o ‘programa de resistência’ do Hamas?
A ‘resistência’ como conceito é o princípio central no pensamento e na formação do Hamas; está até mesmo presente em seu próprio nome: “Movimento de Resistência Islâmica”. Quando o Hamas foi fundado no final de 1987, o clima político palestino e árabe ainda absorvia o choque causado pelo reconhecimento de Israel pelo Egito e pelo tratado de paz firmado entre os dois países em 1982. A negociação, em vez da luta armada, vinha sendo fortemente apresentada como um meio para alcançar objetivos políticos, incluindo a recuperação de terras ocupadas. No mesmo ano de 1982, a OLP foi derrotada por Israel no Líbano e, como consequência, todos os guerrilheiros palestinos e sua liderança foram forçados a deixar o país e se mudar para Túnis. A lógica de usar a resistência armada para libertar a Palestina, portanto, sofreu dois grandes golpes em um único ano. Desde então, com a nova base da OLP no norte da África muito distante da Palestina, uma estratégia de negociações de paz e iniciativas passou a dominar sobre a abordagem da luta armada. A própria OLP tornou-se muito mais flexível do que antes em relação à questão das negociações com Israel e ao princípio da solução de dois Estados.
Em contraste, ao reiterar e reafirmar o conceito de ‘resistência’, o Hamas declarava sua posição contrária a qualquer acordo negociado com Israel, injetando novo vigor em um conceito que vinha se apagando. A única forma de recuperar os direitos palestinos, afirmava o Hamas com crescente confiança, era por meio da resistência contra a ocupação colonial e da reconquista dos direitos das mãos do inimigo. A lógica do Hamas se resumia à ideia de que, onde quer que exista uma ocupação militar, deve-se esperar uma resistência militar. Tal resistência, em todas as suas formas, só cessaria quando a ocupação terminasse.
Toda a conduta, políticas e ações do Hamas emanam dessa convicção e por ela são justificadas. No entanto, foram oferecidos poucos detalhes específicos sobre como as coisas se desenvolveriam além desse conceito, particularmente sobre como ocorreria a ‘retirada’ das tropas de ocupação ou o que se seguiria a ela. Os líderes do Hamas têm repetido: “Retirem-se primeiro, e depois veremos como as coisas se desenrolam”.
Essa ‘estratégia’ do Hamas, que na prática não esboça uma estratégia de longo prazo, pode parecer, à primeira vista, fútil e superficial. No entanto, em um nível mais fundamental, mostrou-se bem-sucedida e pragmática para a organização. Primeiro, sua terminologia direta e simplicidade intransigente são difíceis de refutar; segundo, esse mesmo foco único e simplicidade escondem os argumentos teológicos do Hamas, que são mais difíceis de justificar; terceiro, oferece uma cobertura teórica descomplicada sob a qual as ações de ‘resistência’, tanto militares quanto não militares, podem ser facilmente conduzidas.
Ao longo de sua existência, desde o final de 1987, várias formas de resistência foram empregadas pelo Hamas, indo desde levantes populares, mobilização, greves e ataques militares contra o exército e colonos israelenses, até a execução de atentados suicidas no coração das cidades israelenses. Esses métodos foram usados em combinação ou separadamente, mas sempre em conformidade com o ambiente político específico vigente em cada momento. O objetivo final de qualquer combinação de formas de resistência, no pensamento do Hamas, é forçar uma retirada israelense incondicional. A luta de todas as organizações palestinas – incluindo, é claro, a OLP e suas grupos, e a Autoridade Palestina, que foi estabelecida na Cisjordânia e na Faixa de Gaza em 1993/94 – tem se concentrado em alcançar tal retirada. No entanto, o Hamas a quer sem abrir mão de nenhum outro direito palestino em troca, e sem o reconhecimento de Israel. A OLP e outros grupos palestinos aceitaram o reconhecimento recíproco com Israel com base na solução de dois Estados. O Hamas não aceita isso, mas poderia aceitar uma fórmula que reconhecesse tacitamente a existência de fato de Israel, sem, no entanto, reconhecer formalmente qualquer direito de Israel de existir. Isso porque, independentemente de a retirada resultar de negociações de paz ou do uso da força, o Hamas poderia logicamente insistir que ela ocorra sem comprometer quaisquer direitos palestinos adicionais ou questões como a soberania sobre Jerusalém Oriental, a delimitação das fronteiras e o direito de retorno dos refugiados palestinos.
Como o ‘programa de resistência’ do Hamas se materializou no território?
O Hamas acredita que a retirada unilateral de Israel da Faixa de Gaza em 2005 valida sua estratégia de resistência. Diversas declarações de representantes do Hamas afirmaram que a retirada foi resultado, em grande parte senão totalmente, da resistência contínua e da pressão prolongada sobre as tropas e colonos israelenses na Faixa, o que teria deixado Israel sem outra opção senão ceder e se retirar. No entanto, muitos outros palestinos rejeitam essa visão e questionam os reais objetivos e intenções de Israel ao tomar essa medida. Eles temem que Israel tenha se retirado da Faixa de Gaza – que não possui valor estratégico nem religioso para o Estado judeu – a fim de concentrar e consolidar sua ocupação e controle sobre a Cisjordânia e Jerusalém, onde estaria o verdadeiro campo de batalha entre palestinos e israelenses.
Na Cisjordânia, o Hamas também acredita que a realização de ciclos de confrontos contra a ocupação tornará o custo da presença israelense insustentável; que multiplicar os custos israelenses em termos de perdas humanas, drenagem de recursos, crescente tensão interna e deterioração da imagem mundial, acabará por dar frutos. Quando, após vencer as eleições israelenses em março de 2006, o partido Kadima tornou pública sua intenção de realizar retiradas parciais unilaterais de certas áreas da Cisjordânia, o Hamas reivindicou parte do crédito. Argumentou, mais uma vez, que, se não houvesse resistência com consequências custosas para Israel, qualquer retirada, por menor que fosse, só teria ocorrido em troca de concessões palestinas excessivas.
Vale mencionar que o Hamas aponta para a experiência do Hezbollah, que foi percebido como responsável por forçar Israel a se retirar incondicionalmente do sul do Líbano em 2000. Naquele momento, a medida israelense foi tomada por diversos motivos, incluindo as chances cada vez menores de a ocupação israelense naquela área alcançar objetivos estratégicos, e o crescente questionamento, entre os formuladores de políticas israelenses e o público em geral, do valor daquela ocupação. Isso, é claro, somado às perdas contínuas, visíveis e altamente emocionais, sobretudo entre os soldados israelenses. O Hezbollah naturalmente escolheu focar exclusivamente nesse último fator para validar sua ‘estratégia de resistência’. Da mesma forma, o Hamas sublinhou o mesmo fator, conclamando os palestinos a imitarem o Hezbollah no exercício de extrema pressão sobre a ocupação israelense, a fim de forçar uma retirada unilateral.
O que é a intifada (primeira intifada de 1987 e na segunda de 2000)?
Intifada é a palavra árabe para uma insurreição popular. No contexto palestino, evoca conotações sentimentais, já que as insurreições populares, ou intifadas, marcaram historicamente certos pontos de virada na luta nacional palestina nas últimas décadas. Durante o mandato britânico sobre a Palestina (1922–48), as revoltas palestinas foram dirigidas contra os britânicos, sendo a mais significativa em 1936.
Na era da ocupação israelense, as intifadas foram praticamente o único meio eficaz disponível aos palestinos. Além de pequenas revoltas e formas de resistência, duas grandes intifadas eclodiram: uma em 1987 e outra em 2000. A revolta de 1987 começou na Faixa de Gaza em 8 de dezembro e, em seguida, se espalhou pelas cidades da Cisjordânia. Suas causas foram múltiplas e interligadas: a escalada da brutalidade da ocupação israelense, a crescente indignação dos palestinos diante da humilhação da ocupação – não apenas em termos políticos, mas na forma concreta como essa ocupação empurrou a região para uma pobreza esmagadora – e o fortalecimento dos islamistas, que se viram compelidos a adotar uma nova política de confronto contra Israel, conforme discutido anteriormente no livro.
As causas imediatas que acenderam a chama da intifada foram uma série de eventos ligados à fuga de alguns prisioneiros palestinos, que se esconderam em um campo de refugiados e, em seguida, mataram um colono israelense. Em resposta a essa morte, um caminhão israelense atropelou alguns trabalhadores palestinos, matando quatro e ferindo nove. Consequentemente, palestinos revoltados tomaram as ruas da Faixa de Gaza nos dias seguintes, em manifestações em massa sem precedentes. Embora os primeiros dias da intifada tenham sido espontâneos e sem planejamento organizacional, os dias seguintes testemunharam forte envolvimento – e até rivalidade – entre as organizações palestinas, incluindo o recém-fundado Hamas, para liderar a intifada e mantê-la viva.
A intifada de 1987 foi, em sua maioria, uma confrontação sem armas, baseada na mobilização popular, manifestações em massa e lançamento de pedras contra soldados israelenses. Por isso, foi chamada de “revolução das pedras”. Não houve prática de atentados suicidas, os quais surgiriam alguns anos mais tarde. Oscilando em intensidade ao longo do tempo, a intifada durou até aproximadamente 1993, quando os Acordos de Oslo foram assinados entre Israel e a OLP, resultando, pela primeira vez, em uma forma de autoridade palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
A segunda intifada ocorreu em setembro de 2000. As causas foram um tanto diferentes. Após sete anos dos Acordos de Oslo com Israel – que haviam prometido aos palestinos um Estado soberano e independente até o final de 1999 – o público palestino perdeu a confiança no processo e ficou frustrado. Esperava-se que o período intermediário de cinco anos, iniciado em 1993, resolvesse as principais questões do conflito, incluindo Jerusalém, controle das fronteiras, desmantelamento dos assentamentos israelenses na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, e o status dos refugiados.
Contrariamente a essas expectativas, todas as evidências apontavam para o endurecimento da ocupação israelense, e a recém-criada Autoridade Palestina estava, na prática, sendo restringida à administração da ocupação – desde os serviços cotidianos da população até a manutenção da segurança de Israel e de seus colonos contra-ataques palestinos. O tamanho e a população dos assentamentos israelenses em terras que deveriam ter sido devolvidas aos palestinos quase dobraram nos anos seguintes ao Acordo de Oslo. O status de Jerusalém – uma questão central do conflito, ainda sem resolução nas negociações – foi submetido a um controle israelense ainda mais severo. Às vésperas da segunda intifada, o processo de paz iniciado pelos Acordos de Oslo já mostrava sinais de colapso.
A centelha imediata da intifada de 2000 foi a visita provocadora de Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas (al-Haram al-Sharif), o local mais sagrado para os muçulmanos em Jerusalém, o que enfureceu os palestinos. Apesar de muitos conselhos em contrário, Sharon – então líder do partido de oposição Likud – decidiu fazer um gesto político contra o partido trabalhista, então no poder, ao afirmar que mesmo o lugar mais sagrado para os muçulmanos em Jerusalém estava sob total controle e jurisdição de Israel.
Embora tenha começado como uma revolta popular sem uso de armas, a segunda intifada rapidamente se transformou em um confronto armado. Palestinos de todo o espectro político apoiaram a intifada: as organizações da Autoridade Palestina, como o Fatah e outros grupos da OLP, ficaram lado a lado com o Hamas e outros grupos de oposição.
O Hamas irá se desarmar voluntariamente ou será desarmado à força, se necessário?
"Você só obtém de alguém, ou numa mesa de negociações, aquilo que corresponde à sua força no terreno", dizia certa vez o sheikh Ahmad Yassin, fundador do Hamas. “Força” é interpretada de todas as formas, com os meios militares no topo da lista. Assim, desde sua fundação no final de 1987, o Hamas (e outros grupos palestinos) acumularam consideráveis arsenais de armas, principalmente na Faixa de Gaza, mas também na Cisjordânia. Estes incluem metralhadoras, bombas e foguetes caseiros com alcance de alguns quilômetros, capazes de atingir assentamentos israelenses se lançados a partir de certas partes da Faixa de Gaza.
Em termos de qualidade, quantidade e eficácia militar, as armas do Hamas – e, de fato, todas as armas palestinas somadas – nunca representaram uma ameaça séria ao Estado de Israel. Essas armas só poderiam causar danos na forma de ataques de guerrilha, tiroteios rápidos e breves, e atentados suicidas. As fontes de aquisição de armamento incluem o contrabando a partir do Egito (contrariando, claro, a política do governo egípcio), e a compra de armas israelenses em "mercados negros" e de indivíduos insatisfeitos nas forças de segurança palestinas, que foram armados oficialmente pela Autoridade Palestina. O Hamas também desenvolveu uma fabricação local de armas primitivas, especialmente bombas e foguetes de curto alcance, com materiais domésticos.
Durante e após a Segunda Intifada de 2000, ficou evidente que o poder militar do Hamas havia atingido novos patamares, particularmente na Faixa de Gaza, equiparando-se ao da Autoridade Palestina. Na véspera de sua vitória esmagadora nas eleições de janeiro de 2006 na Cisjordânia e em Gaza, acreditava-se que o arsenal do Hamas poderia fornecer à organização uma enorme vantagem estratégica, em consonância com sua influência política e popular.
Há um consenso significativo entre observadores de que o armamento do Hamas, utilizado e supervisionado por seu braço militar, as Brigadas Izzedin al-Qassam, está sob rigoroso controle do movimento. Com exceção de alguns incidentes faccionais em que membros do Hamas utilizaram armas, seu uso é estritamente limitado à luta contra Israel. Além disso, esse armamento claramente proporcionou ao Hamas um efeito dissuasivo contra rivais palestinos, principalmente o movimento Fatah e a Autoridade Palestina.
A situação na Faixa de Gaza tem sido marcada pelo caos e pela multiplicidade de centros de poder desde a eclosão da Primeira Intifada em 1987. O fácil acesso às armas criou um ambiente difícil de controlar, e a rivalidade entre grupos levou os palestinos à beira da guerra civil em mais de uma ocasião. Quando a Autoridade Palestina foi estabelecida em 1993/1994, uma de suas principais responsabilidades – imposta por Israel sob os Acordos de Oslo – era controlar a situação caótica e unificar as "armas palestinas" sob seu comando. O Hamas, porém, recusou veementemente qualquer proposta de entregar suas armas à Autoridade Palestina, ou qualquer sugestão no sentido de permitir à Autoridade o mínimo de supervisão sobre seus armamentos.
Ironia do destino, quando o Hamas chegou ao poder após vencer as eleições de janeiro de 2006 e se tornou a própria Autoridade Palestina, passou a convocar outros grupos para unirem seus braços armados sob um comando unificado, supervisionado pelo Hamas em seu novo papel institucional. Como era de se esperar, o braço armado do Fatah e outros grupos recusaram o apelo do Hamas.
A curto e médio prazo, não é provável que o Hamas se desarme voluntariamente, nem é concebível que ele seja desarmado à força por outras partes (incluindo Israel e outros grupos palestinos). O Hamas repete constantemente sua posição de que suas armas existem para defender o povo palestino e seus direitos, e, enquanto Israel continuar ocupando terras palestinas e esses direitos não forem realizados, a luta armada – e tudo o que ela implica – deve permanecer no cerne do Hamas e, neste momento, da estratégia oficial palestina.
ATAQUES SUICIDAS
Quando e por que o Hamas adotou o atentado suicida como estratégia?
Os atentados suicidas do Hamas contra civis israelenses são justificados por declarações públicas de seus representantes, feitas de tempos em tempos, afirmando que esses ataques são ações de retaliação. Segundo o Hamas, eles são uma resposta aos assassinatos de civis palestinos por parte de Israel e cessariam imediatamente caso Israel declarasse que também deixaria de matar civis palestinos. O Hamas chegou a propor negociações com o objetivo de poupar civis dos dois lados da violência direcionada, mas essas ofertas foram categoricamente recusadas por Israel, sob o argumento de que "não negocia com terroristas".
Embora o Hamas tenha surgido em 1987, seus atentados suicidas – marca registrada da organização – só começaram em 1994. A primeira onda desses ataques foi realizada em retaliação ao massacre de Hebron, no qual um colono israelense fanático matou 29 fiéis palestinos dentro da Mesquita de Ibrahimi, em fevereiro de 1994. O Hamas jurou vingança e cumpriu a promessa, explodindo soldados, colonos e civis israelenses no coração das cidades de Israel. A partir desse ponto, o Hamas percebeu o enorme impacto simbólico e psicológico que esse tipo de ataque causava na imaginação pública e passou a adotá-lo como estratégia. Ciente de que atacar civis deliberadamente poderia ser uma tática perigosa, o Hamas procurou sempre vincular qualquer atentado suicida que realizasse a assassinatos específicos de civis palestinos cometidos por Israel.
Antes de 1994, a política do Hamas era clara ao mirar apenas "alvos militares legítimos". A mudança significativa para atingir civis, ainda que sob a justificativa de "olho por olho", trouxe custos elevados à organização. Apesar das violentas retaliações israelenses, incluindo a política sistemática de assassinatos de líderes do Hamas, o movimento intensificou seu uso de atentados suicidas ao longo dos anos. O Hamas entendeu que, embora essas ações atraíssem condenação internacional e manchassem a imagem da luta legítima do povo palestino, também conferiam à organização uma aura de força e popularidade entre os próprios palestinos. Estes passaram a ver o Hamas como um grupo capaz de causar dano aos israelenses e vingar cada palestino morto por Israel.
Sem meios eficazes para proteger seus civis desses ataques, Israel ficou profundamente impactado. O medo constante de uma explosão em qualquer ônibus, shopping ou restaurante mergulhou suas cidades, em certos períodos, num estado de suspense aterrorizante. Israel não apenas mobilizou sua força militar para destruir a infraestrutura do Hamas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, como também exerceu todo tipo de pressão, inclusive internacional. Em mais de uma ocasião, Israel insinuou, por meio de mediadores não oficiais, estar disposto a dialogar com o Hamas para interromper esses ataques. No entanto, o Hamas manteve sua posição: “Parem de matar civis palestinos e nós pararemos de matar civis israelenses.” Israel rejeitou repetidamente essa proposta.
O sheikh Ahmad Yassin, fundador do Hamas, articulou de forma concisa a política do movimento sobre atentados suicidas em setembro de 2003. Questionado sobre se os ataques continuariam independentemente das circunstâncias, respondeu negativamente e explicou: “Se percebermos que o ambiente favorece essa decisão, nós paramos. E quando percebemos que o ambiente mudou, nós continuamos.” De forma geral, quanto maior a distância entre a estratégia de paz e a realização dos direitos palestinos, mais espaço o Hamas tem para manter sua estratégia de resistência.
Politicamente e estrategicamente, o Hamas compreendeu que, em certos momentos, o uso de atentados suicidas era sua carta mais forte no conflito com Israel – e também em sua rivalidade com a Autoridade Palestina e o Fatah. Abrir mão dessa carta só seria cogitado se houvesse uma real possibilidade de compensação digna. Os contínuos esforços militares israelenses, somados às repetidas repressões por parte das forças de segurança da Autoridade Palestina, falharam em destruir a capacidade do Hamas de realizar esses ataques. Pressões políticas e diplomáticas também foram exercidas sobre o Hamas por países como Egito, Jordânia e pela União Europeia, exigindo a suspensão desses atentados – ao menos temporariamente.
Diante da intensa condenação regional e internacional pelos atentados suicidas, o Hamas também descobriu que essa mesma atenção lhes conferia certo poder de barganha adicional. Em diversas ocasiões, o Hamas demonstrou flexibilidade ao suspender temporariamente seus ataques, seja para não romper acordos coletivos com outros grupos palestinos, seja para demonstrar pragmatismo. No final de 1995, por exemplo, interrompeu os atentados suicidas por alguns meses, retomando-os após o assassinato israelense de um de seus líderes militares, Yahya Ayyash. Suspensões e retomadas semelhantes – verdadeiros “acordos tácitos” – ocorreram durante a Segunda Intifada (2000–2005), mas todos fracassaram, pois Israel não perdia a oportunidade de assassinar um líder do Hamas após o outro.
Quantos israelenses o Hamas matou? E quantos membros do Hamas os israelenses mataram ou prenderam?
Os ataques suicidas do Hamas deram à organização uma má reputação, ao permitirem que Israel conseguisse vender a imagem do Hamas como uma mera "organização terrorista" cujo único propósito seria matar civis israelenses inocentes. A justiça da causa palestina pagou um preço alto por isso, já que Israel explorou esses ataques para reduzir a natureza da luta palestina a uma questão de “terrorismo e contraterrorismo”. A condenação mundial aos assassinatos de israelenses por palestinos é gravemente desproporcional quando comparada à leve condenação de assassinatos semelhantes de palestinos por israelenses.
O número de israelenses mortos pelo Hamas (e por todas as outros grupos palestinos combinados) desde o surgimento do Hamas, em dezembro de 1987, até abril de 2006, representava apenas um quarto do número de palestinos mortos por Israel no mesmo período.
O assassinato de civis de ambos os lados é desumano, e tratar civis mortos como meras estatísticas implica certo grau de insensibilidade. No entanto, as estatísticas ajudam a entender o quadro geral. Os dados agregados fornecidos pela organização israelense de direitos humanos B’Tselem (www.btselem.org) mostram que 1.426 israelenses – entre militares e civis – foram mortos por grupos palestinos, enquanto 5.050 palestinos foram mortos por Israel durante esses anos. Desses mortos, havia 137 crianças israelenses (menores de 18 anos) e 998 crianças palestinas da mesma faixa etária.
O que é a trégua (hudna) que o Hamas oferece?
A resistência do Hamas frente aos ataques contínuos de Israel e à crescente crítica internacional contra seus atentados suicidas foi acompanhada por uma proposta de hudna – o conceito religioso islâmico que remonta à ideia clássica de trégua, embora com certas diferenças – com o objetivo de aliviar a pressão. A hudna é uma prática tradicional de guerra no Islã, relativamente flexível, usada pela primeira vez pelo Profeta Muhammad no famoso tratado de Hodaibiya, quando, no ano 628 d.C., ele concluiu com seus inimigos uma trégua de dez anos, durante a qual ambos os lados viveriam em paz. Mais tarde, na história islâmica, diferentes governantes utilizaram a hudna para alcançar diferentes objetivos, daí a flexibilidade e o significado amplo do conceito.
O debate permanece aberto entre estudiosos muçulmanos sobre se a hudna é apenas um cessar-fogo tático ou uma prática mais sofisticada que abre caminho para soluções não violentas.
Vinculado às suas raízes religiosas, o Hamas sente a necessidade de justificar qualquer política controversa com base nos fundamentos do Islã. A oferta de trégua do Hamas pareceria contradizer seu princípio fundamental de Jihad – a luta armada contra Israel. Da mesma forma, abster-se da luta armada foi a postura oficialmente adotada pela OLP e pela Autoridade Palestina, que terminou em negociações de paz com Israel, fortemente rejeitadas pelo Hamas. Se aceitasse um cessar-fogo, o Hamas pareceria estar apenas seguindo os passos de seus rivais, arriscando perder sua singularidade.
Assim, ao propor a hudna, o Hamas faz questão de distinguir esse conceito da prática da OLP e da Autoridade Palestina, que o grupo sempre descreveu como capitulação. Existem duas distinções principais que o Hamas traça entre um cessar-fogo e uma hudna: a primeira é que a hudna é apenas um acordo para interromper as hostilidades, não um tratado de paz que implicaria concessões; a segunda é que o cessar-fogo implica, hoje em dia, um acordo por tempo indeterminado, enquanto a hudna é limitada por um período de tempo acordado entre as partes em conflito.
Se a OLP e a Autoridade Palestina estão prontas para abandonar a luta armada e promover um cessar-fogo duradouro, o Hamas não está. O máximo que aceitaria, segundo o argumento da hudna, seria um acordo de cessar-fogo de dez ou vinte anos, sem abrir mão dos direitos palestinos. A hudna acalmaria a situação, encerraria a violência e pouparia o sangue de civis. A questão, claro, é: o que aconteceria após a hudna? A resposta do Hamas é que o passo seguinte dependeria do comportamento aceitável de Israel e de suas intenções: a hudna poderia ser renovada ou encerrada.
Em diversas ocasiões, o Hamas ofereceu uma hudna a Israel. O falecido sheikh Ahmad Yassin foi o primeiro a sugerir a ideia, ainda em 1993. Desde então, representantes do Hamas repetiram a oferta, às vezes alterando o período proposto (dez, vinte ou até trinta anos). Israel sempre ridicularizou a proposta, embora alguns políticos israelenses a enxerguem como uma expressão pragmática do Hamas que deveria ser encorajada. Quando o Hamas assumiu o poder e passou a controlar a Autoridade Palestina, em janeiro de 2006, renovou sua oferta de hudna a Israel por um período de dez a vinte anos.
ESTRATÉGIA POLÍTICA E SOCIAL DO HAMAS
A POSIÇÃO DO HAMAS EM RELAÇÃO AOS DIVERSOS PLANOS DE PAZ COM ISRAEL
Por que o Hamas rejeita os acordos de paz firmados entre a OLP e Israel em 1993/94, conhecidos como Acordos de Oslo?
A posição original dos palestinos quanto à criação de Israel em 1948 era um consenso palestino completo em rejeitar qualquer proposta que permitisse a existência de Israel em qualquer parte da terra histórica da Palestina. Essa posição permaneceu praticamente inalterada até 1988, quando a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) declarou publicamente sua disposição de aceitar o conceito de uma solução de dois Estados: Palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza (menos de um quarto da Palestina histórica) e Israel no restante do território. Naquele momento, Israel sequer cogitava aceitar tal proposta, e nenhum dos principais partidos israelenses adotou oficialmente esse conceito até o fim de 2006, quando o partido Kadima, liderado por Ehud Olmert, passou a defender a solução de dois Estados.
O equilíbrio de poder sempre favoreceu Israel, que conta com apoio irrestrito dos Estados Unidos e do Ocidente. Assim, Israel nunca esteve sob pressão para sequer reconhecer as resoluções emitidas pelas Nações Unidas em apoio à solução de dois Estados e exigindo a retirada israelense dos territórios ocupados desde a guerra de 1967.
Os Acordos de Oslo, firmados em 1993/94, ofereceram aos palestinos uma autonomia limitada, apenas sobre a população palestina – sem qualquer jurisdição real sobre a terra palestina – por um período de cinco anos, como um teste. Caso os palestinos demonstrassem “bom comportamento”, seriam iniciadas negociações para resolver as grandes questões do conflito, como o destino ou a divisão de Jerusalém (reivindicada como capital legítima por ambos os “Estados”), o status dos refugiados, o desmantelamento dos assentamentos judaicos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, o controle das fronteiras e a soberania plena. Do ponto de vista palestino, ao longo do “período de teste”, a situação envolvendo todas essas questões foi deliberadamente agravada por Israel, de modo que a desordem resultante inviabilizasse qualquer atendimento mesmo aos requisitos mínimos para a restituição dos direitos palestinos. Do ponto de vista israelense, os palestinos fracassaram em provar que são dignos de serem “parceiros” na paz e, portanto, nenhum avanço deveria ser feito em direção à resolução conjunta do conflito.
A visão do Hamas é que os Acordos de Oslo – e quaisquer negociações de paz, aliás – são inúteis enquanto forem estruturados em um desequilíbrio de poder onde o atendimento às exigências israelenses prevalece. Para o Hamas, esses são tratados de capitulação, não acordos de paz. Na visão do grupo, o fracasso dos Acordos de Oslo era inevitável, e a lógica por trás disso é a seguinte:
"Os defensores de Oslo alegaram, por meses após a sua assinatura, que o acordo poria fim à ocupação [da Palestina] e que, portanto, os palestinos não precisariam mais exercer luta armada contra os israelenses. Mas, oito anos depois de Oslo, estes foram os 'dividendos da paz':
Os territórios ocupados em 1967 continuam ocupados.
Mais do que nunca, a Cisjordânia e Gaza foram fragmentadas, mutiladas e transformadas em ilhas isoladas de concentração humana administrados, em nome dos israelenses, pela Autoridade Palestina.
Os assentamentos judaicos ilegais existentes continuam a se expandir, e novos foram construídos.
Jerusalém está sendo expandida e desarabizada.
Grandes áreas de terra foram confiscadas para a construção de vias exclusivas para motoristas judeus, especialmente colonos que vivem ilegalmente em terras árabes confiscadas.
Milhares de palestinos continuam detidos em prisões israelenses.
Diversas formas de punição coletiva seguem sendo aplicadas por Israel, incluindo a demolição de casas palestinas, o fechamento de áreas inteiras, a imposição de bloqueios econômicos, a destruição da infraestrutura palestina e o arranquio de árvores e plantações.
A situação econômica dos palestinos é mais crítica do que nunca."
Em outras palavras, o processo de paz não melhorou nem um pouco as condições dos palestinos sob ocupação e não parece prometer um futuro melhor.
A alegação de que a luta armada não era mais necessária (vale destacar que ninguém no campo palestino jamais considerou a resistência ilegal) foi refutada pela realidade, dando razão ao argumento do Hamas (que não difere do argumento adotado antes de Oslo pelo movimento nacionalista como um todo e que continua sendo defendido por vários grupos palestinos contrárias a Oslo): a luta armada é o único meio real de libertação.
O Hamas afirma que, ao rejeitar processos de paz mal concebidos, está defendendo os direitos palestinos e se mantém como seu verdadeiro guardião. Os oponentes e críticos do Hamas, tanto entre os palestinos quanto fora deles, dizem que o movimento não só não ofereceu uma alternativa, como foi parcial ou majoritariamente responsável pelo fracasso do processo de paz ao continuar realizando ataques militares contra Israel.
Referendos populares como programa político
O dilema político enfrentado pelo Hamas decorre de uma suposição realista: qual seria a realidade se a maioria dos palestinos aceitasse um tratado de paz com Israel que ainda fosse rejeitado pelo Hamas? Se o Hamas insiste em permanecer fiel aos seus próprios princípios – os quais consideram tratados de paz baseados predominantemente nos termos israelenses como formas de rendição –, ele também está ansioso para manter-se conectado e representativo dos desejos e aspirações da maioria dos palestinos.
A solução para esse dilema foi oferecida pelo Hamas por meio da ideia de um referendo. Isso significaria que qualquer forma de solução final baseada em um acordo negociado deveria ser alcançada através de um consenso palestino, o que só é possível por meio da realização de um referendo com todos os palestinos, dentro e fora da Palestina, sob supervisão internacional.
Ao propor um referendo, o Hamas busca mais do que apenas mobilizar o público palestino em geral para se envolver fortemente na decisão sobre seu próprio destino. O movimento está mais preocupado com o fato de que, em algum momento, poderá enfrentar a difícil escolha entre continuar a luta armada contra o sentimento geral da população palestina ou tornar-se um partido puramente político. A ideia do referendo confere legitimidade a qualquer decisão futura do Hamas de abandonar suas atividades armadas.
Ao mesmo tempo, uma votação popular coletiva sobre o acordo final serviria para colocar o processo de negociação e seus resultados ou concessões sob uma clara e ampla fiscalização popular. Essa fiscalização, o Hamas poderia então estar seguro, se basearia na preservação dos direitos palestinos.
ELEIÇÕES, DEMOCRACIA E MOBILIZAÇÃO
O Hamas é genuinamente democrático?
Essa é uma pergunta retórica comum, sempre direcionada aos movimentos islamistas no Oriente Médio e em outras regiões. Existe pouca experiência histórica que permita julgar com precisão se esses movimentos adotaram práticas democráticas de forma plena. Essa mesma carência de antecedentes históricos deveria, no entanto, permitir o benefício da dúvida. No contexto do Oriente Médio, essa pergunta se aplica igualmente a todos os partidos, independentemente de sua ideologia política. A prática democrática é visivelmente escassa e, na era pós-colonial da região, quase não houve democracias plenamente desenvolvidas.
Nas repúblicas árabes, partidos nacionalistas e socialistas chegaram ao poder por meio de eleições ou golpes militares, e nunca abriram mão do poder de forma pacífica. Nas monarquias árabes, mudar o sistema por meios democráticos sempre esteve fora de questão. Assim, questionar o quão autenticamente democráticos são os movimentos islamistas, em um ambiente que carece de democracia, já carrega uma acusação implícita desde o início. Em todos os casos no Oriente Médio em que partidos no poder rejeitaram a democracia ou anularam os resultados das eleições porque um partido de oposição venceu a maioria, os intransigentes eram partidos não islamistas.
Portanto, o Hamas é tão genuíno em sua convicção democrática quanto qualquer outro partido político em uma região sem experiência nesse tipo de governança. No entanto, há certas especificidades na estrutura do Hamas que ajudam a explorar o grau de sua credibilidade democrática. Internamente, o movimento adotou práticas democráticas para escolher seus líderes. Essas práticas estão bem estabelecidas e chegaram até mesmo, de maneira menos prática, a áreas em que o consenso democrático talvez não tenha gerado os melhores resultados.
Por exemplo, quando o Hamas estava no processo de formação de seu governo em março de 2006, o primeiro-ministro e todos os ministros do gabinete foram eleitos pela base do partido. Com isso, o gabinete do Hamas acabou composto por ministros que não eram necessariamente os mais qualificados para suas respectivas funções. Em vez de permitir que o primeiro-ministro formasse seu governo como uma equipe de trabalho baseada em critérios profissionais e políticos, todos os ministros foram impostos a ele de forma democrática, mas talvez mais caótica, a partir da votação no interior do partido. Pode-se afirmar, com certa segurança, que não existe um sistema autoritário dentro do Hamas como partido. Na maioria dos casos – ao menos no contexto do Oriente Médio –, partidos com práticas internas autoritárias tendem a levar essas características para seus governos quando chegam ao poder.
Também é preciso lembrar que o Hamas sempre se definiu como um movimento de resistência, essencialmente voltado a confrontar a ocupação militar israelense da Palestina. Essa ocupação, com todos os seus recursos militares, sempre teve a vantagem nesse conflito, controlando todos os aspectos da soberania sobre o que resta de um Estado palestino. Toda a política interna palestina ocorre sob esse controle, e ser eleito para chefiar um governo palestino que funciona sob domínio final israelense está longe de ser algo atraente para o Hamas.
Justamente por causa dos parâmetros desse controle militar estrangeiro, o Hamas nunca aspirou ou planejou vencer a maioria em nenhuma eleição palestina, pois isso o colocaria em uma posição desconfortável. A vitória do Hamas nas eleições de 2006 pegou o movimento de surpresa, e é difícil imaginar que o Hamas desejasse manter-se nessa posição embaraçosa por meio da obstrução ou manipulação de futuras eleições. Diante do “cerco” de protestos e condenações que enfrenta regional e internacionalmente, o maior desafio do Hamas será evitar um colapso total e concluir seu mandato de quatro anos no governo com o mínimo de perdas possíveis. Qualquer cenário em que o Hamas manobre para permanecer no poder de maneira forçada é altamente improvável.
No interior do sistema político palestino, especialmente após a era Yasser Arafat, o ambiente político não é receptivo a qualquer tipo de governo autoritário. Os centros de poder estão fragmentados, e o Hamas está em constante conflito com seus rivais, particularmente o movimento Fatah. Se o Hamas decidisse permanecer no poder em desacordo com práticas democráticas, o resultado imediato seria um grave conflito interno.
Além disso, a diversidade da sociedade palestina, o alto nível de escolaridade e a inveja generalizada da “democracia israelense” ao lado reduzem significativamente qualquer possibilidade de desenvolvimento de um Hamas antidemocrático. Linhas de pensamento seculares, de esquerda e liberais estão historicamente enraizadas na sociedade palestina, inclusive entre a poderosa comunidade cristã palestina, altamente politizada e ativa. Assim, mesmo que o Hamas desejasse adotar qualquer forma de política antidemocrática, as circunstâncias internas impediriam tal caminho.
Qual é o significado da vitória do Hamas nas eleições palestinas de janeiro de 2006 e por que os palestinos votaram no Hamas?
A vitória do Hamas nas eleições de 2006 foi um choque completo para todas as partes envolvidas, inclusive para o próprio Hamas. O plano do Hamas era conquistar um número suficientemente grande de cadeiras – cerca de 40 a 45% – que lhe permitisse desempenhar o papel de guardião dos direitos do povo palestino, mas sem assumir a responsabilidade direta e final de governar, o que, devido ao controle israelense, era altamente indesejável. A ideia geral era que, com essa participação no legislativo, o Hamas pudesse formar coalizões com outros pequenos grupos de oposição de esquerda e bloquear qualquer concessão futura feita pelo Fatah. As tarefas “sujas” do governo cotidiano continuariam a cargo do Fatah, mas este ficaria politicamente enfraquecido nas negociações com Israel. No entanto, o resultado das eleições foi uma vitória esmagadora, com o Hamas conquistando quase 60% das cadeiras. A derrota do Fatah foi retumbante.
As razões para a vitória do Hamas são múltiplas. Em primeiro lugar, o movimento colheu os frutos de muitos anos de trabalho dedicado e de popularidade entre os palestinos. Pelo menos metade dos eleitores apoiou diretamente o Hamas por seus programas e objetivos declarados. A outra metade foi movida por outras razões. O fracasso do processo de paz, combinado com a brutalidade crescente de Israel, deixou os palestinos sem fé em uma solução pacífica negociada. À medida que a data das eleições se aproximava, o equilíbrio entre o discurso das negociações de paz e o da resistência oscilava. A ideia de “negociações de paz” claramente perdia força, mas tampouco havia um apoio claro e definido à “resistência”. Esta última era vaga, e muitos palestinos estavam inseguros quanto ao seu significado e às suas formas. Mas a frustração com as negociações de paz pesou muito e contribuiu largamente para a derrota do Fatah, principal defensor dos Acordos de Oslo e de tudo o que deles resultou.
Outro fator importante para a vitória do Hamas foi o fracasso, em praticamente todas as áreas, da Autoridade Palestina liderada pelo Fatah. Além de ter fracassado externamente nas negociações de paz com Israel, o governo falhou miseravelmente internamente, na gestão da vida cotidiana do povo palestino. Má gestão, corrupção e roubo tornaram-se os “atributos” usados para descrever os principais líderes, ministros e seus assessores de alto escalão. Enquanto o desemprego e a pobreza atingiam níveis sem precedentes, o estilo de vida extravagante dos altos funcionários palestinos enfurecia a população. As eleições, assim, ofereceram ao povo a oportunidade de punir esses dirigentes. Dessa forma, as eleições representaram a colheita para o Hamas, em sua vitória, e para o Fatah, em sua derrota.
É fácil refutar qualquer sugestão de que o povo palestino votou no Hamas primordialmente por motivos religiosos. Certamente não houve uma súbita conversão popular à ideologia religiosa – ou mesmo política – do Hamas. Cristãos e pessoas seculares votaram no Hamas em diversos distritos, lado a lado com membros e apoiadores do movimento. Membros do Hamas também apoiaram candidatos cristãos e garantiram para eles assentos no parlamento. O próprio Hamas nomeou um cristão para o cargo de ministro do Turismo. A natureza diversa do eleitorado do Hamas confirma que as pessoas votaram no movimento como uma força de libertação nacional que prometia mudança e reformas em todas as frentes.
A vitória em si tem um significado de extrema importância não apenas para os palestinos, mas também para árabes, muçulmanos e outros povos. Em nível palestino, é um ponto de inflexão histórico, marcando uma grande mudança de liderança. Pela primeira vez em mais de meio século, um grupo islamista – fundado sobre a libertação nacional – assumiu o comando, substituindo a liderança secular que controlou o destino e as decisões nacionais da Palestina por décadas. Essa mudança fundamental, além disso, ocorreu por meios pacíficos e sem violência, dando ao Hamas e a todos os palestinos um grande orgulho por terem abraçado a democracia e respeitado seus resultados. Isso também lhes deu a oportunidade de revisar a estratégia do conflito com Israel, que havia sido concebida e conduzida pelo movimento Fatah. Para o Hamas, essa vitória representou o maior desafio desde sua fundação. Quase da noite para o dia, todos os ideais e slogans do Hamas foram colocados à prova diante da realidade concreta. Pode-se dizer com segurança que o Hamas pós-eleições será consideravelmente diferente do Hamas anterior.
Em nível árabe e muçulmano, a vitória do Hamas foi quase única, pois o islamismo político finalmente chegou ao poder – e de maneira democrática. Movimentos islamistas da região celebraram a vitória do Hamas como se fosse também a sua. Já os regimes árabes e muçulmanos, por outro lado, observaram com preocupação e suspeita a ascensão do Hamas ao poder, temendo que sua vitória incentivasse os islamistas locais a buscar o poder com mais vigor. Grupos e indivíduos seculares na região ficaram divididos: apoiam o lado nacionalista e libertador do Hamas, mas estão apreensivos com sua postura religiosa e social.
No plano internacional, um governo palestino liderado pelo Hamas foi visto como um fruto indigesto da democracia. O Ocidente, em particular, viu-se diante do dilema de aceitar tal resultado indesejado – para demonstrar ao mundo árabe e muçulmano que seu apelo à democracia era sincero – ou ser visto como cúmplice dos esforços israelenses para derrubar o governo do Hamas e, com isso, perder credibilidade.
PERSPECTIVA ECONÔMICA DO HAMAS
Qual é o pensamento econômico do Hamas?
O Hamas não possui um pensamento econômico distinto nem um programa nacional que difira da base de “livre mercado” que sempre fundamentou a economia palestina. Essa economia tem funcionado há anos segundo normas capitalistas, embora seja fraca e frágil devido às severas limitações e ao controle exercido por Israel. Diferentemente dos esquerdistas palestinos, cuja visão econômica é fortemente marcada pelo socialismo, o Hamas não apresenta nenhuma ideologia econômica particular. Como partido, o Hamas dificilmente propõe uma visão integral de uma suposta “economia islâmica”, mencionada ocasionalmente por algumas figuras individuais do movimento.
De modo geral, o movimento se mostra satisfeito com o modelo capitalista de economia baseado na livre iniciativa. Compartilha da crença amplamente difundida entre os círculos de movimentos islamistas de que o Islã incentiva o livre mercado e consagra o direito à propriedade individual. Portanto, os fundamentos de qualquer “economia islâmica” se aproximam bastante dos princípios básicos do capitalismo. No entanto, a moralidade de tal “economia islâmica” se aproxima mais do socialismo. Muitos princípios religiosos – como o profundo interesse pela justiça e igualdade, sistemas obrigatórios de ajuda aos pobres, restrições aos monopólios e a proibição da acumulação injusta de fortunas – ecoam a essência do pensamento socialista.
Na prática, o Hamas inclui em sua base de membros comerciantes, empresários, ricos, além da classe média e dos pobres. Os membros mais abastados sempre foram vistos com respeito e admiração, por suas doações contínuas ao movimento. Fora da Palestina, empresários muçulmanos ricos dos países do Golfo e de outras regiões islâmicas representam a principal fonte de financiamento do Hamas. Por isso, a experiência do Hamas com o “capitalismo” e com pessoas “capitalistas” é, de certo modo, positiva. Nos últimos anos, no entanto, surgiram críticas pontuais à economia internacional e aos monopólios da globalização, mas essas aparecem apenas nas margens de discussões sobre outros temas centrais, como a hegemonia global dos Estados Unidos.
Na tentativa de garantir um voto de confiança do Parlamento Palestino em março de 2006, a declaração do governo do Hamas demonstrou talvez um excesso de zelo ao enfatizar seu interesse em atrair investidores estrangeiros para a Palestina e explorar oportunidades econômicas. O Hamas prometeu que:
“Construiria as instituições econômicas do país sobre bases que atraiam investimento, aumentem as taxas de crescimento, previnam o monopólio e a exploração, protejam os trabalhadores, incentivem a indústria, aumentem as exportações, desenvolvam o comércio com os países árabes e com o mundo em geral, e de maneiras que sirvam aos nossos interesses palestinos e fortaleçam nossa capacidade autônoma, por meio da promulgação de leis apropriadas para tudo isso.”
TRABALHO SOCIAL DE BASE
Qual é o papel do Hamas no nível de base da sociedade palestina?
O trabalho de base sempre foi o aspecto mais forte do Hamas. Sua ascensão imparável ao longo dos últimos 20 anos e eventual triunfo sobre outros grupos palestinos se deve em grande parte ao seu sucesso no trabalho social. Esse trabalho se concretiza na oferta estruturada de serviços educacionais, de saúde e assistência social aos pobres.
Por meio de poderosas e amplas redes de instituições de caridade, mesquitas, sindicatos, escolas e clubes esportivos, a assistência e o cuidado do Hamas com os necessitados foram sentidos pessoalmente por centenas de milhares de palestinos. A prestação desses serviços também tem sido marcada por honestidade e transparência – em contraste com o desempenho considerado corrupto de outras facções palestinas, especialmente o Fatah, que controlava a Autoridade Palestina desde 1994. A popularidade do Hamas e sua vitória nas eleições de 2006 são, ao menos em parte, resultado de sua dedicação contínua em ajudar os pobres. O Hamas era conhecido por oferecer ajuda mensal até mesmo a pessoas que trabalhavam para a Autoridade Palestina liderada pelo Fatah, quando suas rendas eram consideradas abaixo da linha da pobreza.
Conhecidas como a maior força estratégica do Hamas, as instituições e entidades de caridade islâmicas administradas pelo movimento sempre foram alvos de Israel. Por anos, os ataques israelenses buscaram fechar essas instituições, bloquear seus recursos e mobilizar campanhas internacionais contra seus financiadores no exterior. Israel tentou alegar que as organizações de assistência social do Hamas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza canalizavam fundos para atividades militares do grupo. No entanto, a verdadeira intenção por trás do assédio contínuo e do fechamento dessas entidades, seja por parte de Israel ou, posteriormente, pela própria Autoridade Palestina, era reduzir a popularidade que elas conferiam ao Hamas.
Após o 11 de setembro, a pressão sobre o Hamas e suas atividades aumentou. Israel conseguiu mobilizar os Estados Unidos e o Reino Unido para que tomassem medidas contra várias organizações islâmicas acusadas de enviar recursos para as instituições de caridade do Hamas. Os Estados Unidos também pressionaram a Autoridade Palestina a agir contra as atividades sociais do Hamas, que incluíam o pagamento de pensões mensais às famílias de “mártires” da causa da libertação – como os homens-bomba. Essa prática, em particular, foi vista como um incentivo indireto ao recrutamento futuro de homens-bomba, que teriam a certeza de que suas famílias estariam protegidas e amparadas.
Em diferentes momentos, o trabalho social do Hamas foi de fato dificultado ou paralisado por ações de Israel ou da Autoridade Palestina, mas o movimento sempre conseguia recuperar fôlego e retomar suas atividades. Nos anos de 2003 e 2004, a Autoridade Palestina cedeu à pressão israelense e norte-americana e adotou medidas severas contra as instituições de caridade do Hamas, incluindo o congelamento das contas bancárias de 12 instituições na Cisjordânia e 38 na Faixa de Gaza. A Sociedade Islâmica, com suas nove filiais na Faixa de Gaza, foi um alvo particular. Em protesto contra essas medidas, milhares de famílias palestinas saíram às ruas em novembro de 2003, atirando pedras contra a sede do Conselho Legislativo. Segundo trabalhadores locais, havia cerca de 120 mil palestinos recebendo ajuda financeira mensal dessas instituições. Outras 30 mil pessoas se beneficiavam anualmente de seus serviços.
Fechar essas instituições não ajudou nem a reduzir os ataques militares do Hamas, nem a diminuir sua popularidade. Apesar de todas as medidas repressivas tomadas contra elas – não apenas por Israel, mas também pela Autoridade Palestina – essas organizações de caridade continuaram funcionando, servindo a centenas de milhares de palestinos pobres na Faixa de Gaza e na Cisjordânia.
Em determinado momento, o Hamas deu uma impressionante demonstração de força contra os esforços conjuntos de Israel, dos Estados Unidos e da Autoridade Palestina para bloquear seus recursos. O movimento queria mostrar que era capaz de arrecadar fundos junto ao povo palestino comum para sustentar suas atividades organizacionais e militares – e que não dependia dos fundos confiscados, nem seria destruído por qualquer bloqueio internacional às fontes externas de financiamento. Assim, organizou uma campanha de arrecadação de fundos de um dia na Faixa de Gaza, em uma sexta-feira, 9 de abril de 2004. Durante e após as orações da sexta-feira, o Hamas apelou aos gazenses para que doassem ao movimento – especificamente para sua ala militar, as Brigadas Izzedin al-Qassam (e não para qualquer entidade ou instituição de caridade a ele afiliada). Percorrendo todas as mesquitas e espaços públicos da Faixa de Gaza, o Hamas arrecadou grandes somas de dinheiro. De acordo com fontes locais independentes, estima-se que cerca de US$ 1,2 milhão tenham sido arrecadados naquele dia. A estimativa do próprio Hamas foi mais que o dobro desse valor.
O programa social do Hamas inclui a imposição de símbolos islâmicos como o hijab e outras noções da sharia sobre os palestinos?
Ironicamente, dentro da esfera do trabalho social do Hamas – seu ativo estratégico mais poderoso – encontra-se também um de seus aspectos mais frágeis: sua visão social fortemente religiosa. Como discutido no Capítulo 2, o Hamas é uma mescla de movimento de libertação e partido religioso. O impulso religioso dentro do Hamas é de fato visível e poderoso, o que leva muitos palestinos a se perguntarem se o movimento estaria disposto a impor suas próprias visões e interpretações do Islã à sociedade palestina caso chegasse ao poder.
A posição frequentemente declarada do Hamas é que ele nunca imporá nenhuma prática religiosa aos palestinos. Ao responder a perguntas detalhadas sobre sua posição quanto ao uso do hijab, consumo de álcool, segregação entre homens e mulheres e aplicação de certos aspectos da sharia, os porta-vozes do Hamas são unânimes em negar a possibilidade de impor tais coisas à população contra sua vontade. No entanto, há um dinamismo social e uma realidade na Cisjordânia – e ainda mais evidente na Faixa de Gaza – que refletem práticas ou influências indiretas que contradizem essas declarações oficiais.
Devido à forte presença do Hamas e à eficácia de suas atividades sociais, existe uma atmosfera que, em certo grau, precipitou a imposição indireta das normas do Hamas aos palestinos que ele apoia e ajuda. Ao receber assistência contínua e instrução do Hamas, muitos palestinos pobres não apenas dariam seus votos ao movimento em futuras eleições, como, em muitos casos, também adotariam as tradições religiosas e práticas propagadas por ele. E isso não se dá apenas por gratidão ou concordância. Uma mulher sem véu, por exemplo, dificilmente pensaria em solicitar ajuda ao Hamas antes de se cobrir. Isso pode ser considerado uma imposição indireta “benigna ou paternalista” de práticas.
Exemplos mais preocupantes surgem, de tempos em tempos, de imposições mais “malignas”. Isso inclui interferências diretas e severas de membros do Hamas contra certos comportamentos ou eventos que consideram “imorais” (festas, consumo de álcool, não uso do hijab, natação mista, entre outros). Um incidente infame desse tipo, que causou grande embaraço ao Hamas, foi o assassinato de uma mulher palestina dentro do carro de seu noivo, na praia de Gaza, em abril de 2005, por homens armados do Hamas, que também espancaram seu noivo até fazê-lo sangrar. Embora o Hamas tenha condenado o incidente e indenizado a família da mulher, os assassinos justificaram o ato com base em “razões morais e na luta contra a corrupção”.
O Hamas ainda está lidando com a questão do uso de seu poder e influência para impor um “código moral religioso”. Quanto mais poder e popularidade o movimento adquire, mais tentado se vê a utilizar esse capital para impor seus ideais sociais e religiosos. Há uma confusão visível sobre o uso pelo Hamas de seu “capital popular e político” na frente da “moralidade religiosa”. Algumas figuras do Hamas transmitem com convicção a ideia de que o movimento tem o direito de investir seu “capital de resistência” no fortalecimento de uma visão ideológica social (ou religiosa ou cultural) para a sociedade. Nem todos os apoiadores do Hamas concordam com sua visão religiosa. A sociedade palestina, em geral, é muito diversa, com pessoas religiosas e seculares, muçulmanos e cristãos vivendo lado a lado há séculos, sem aderir a estruturas sociais ou religiosas rígidas.
O potencial uso indevido pelo Hamas de seu “capital de resistência” nas questões de religião e moralidade está enraizado na percepção que tem de seu próprio papel. Há uma alegação válida por parte do movimento de que ele ajudou a diminuir certos fenômenos negativos na sociedade palestina, como o uso de drogas, além de ter contribuído significativamente para os serviços sociais e assistência a milhares de famílias empobrecidas. No entanto, isso frequentemente veio acompanhado da propagação de ideias que classificam o tecido social entre “moral” e “imoral”. Tal classificação potencialmente inflexível ou divisiva, no caso palestino – e em qualquer situação de resistência –, apenas complica as coisas, torna tudo mais perigoso e afasta o movimento nacional de seu caráter inclusivo.
Há aqui uma tensão entre o que diz respeito à “resistência” e o que concerne à “sociedade”. O Hamas enfrenta a mesma escolha que muitos outros movimentos enfrentaram antes: vincular sua agenda social (a islamização da sociedade) ao seu programa de resistência. Ele deve reconhecer que alcançar o primeiro objetivo pode resultar na perda do segundo. A experiência do movimento nacional palestino mais amplo mostra que uma abordagem nacional e social pluralista – que inclua diferentes versões moderadas de religiosidade – é a mais eficaz para mobilizar os setores mais amplos do povo palestino.
Nos meses que se seguiram à ascensão do Hamas ao controle da Autoridade Palestina, em março de 2006, a confusão dentro do governo do movimento sobre onde começar e onde parar na “imposição” da moralidade religiosa ainda era evidente. Os ministros da cultura, da mídia e dos assuntos da mulher (todos membros do Hamas) fizeram declarações isoladas sobre questões que poderiam envolver “imposição moral” e censura, como filmes, peças teatrais e outros conteúdos. No entanto, ainda é cedo para construir uma avaliação precisa sobre o desempenho do governo do Hamas nessa questão.
Qual é a posição do Hamas em relação às mulheres?
O Hamas não difere de outros movimentos islâmicos tradicionais cujas ideias e práticas em relação às mulheres se baseiam na experiência e no pensamento da Irmandade Muçulmana. Isso significa a adoção de uma visão conservadora sobre o papel da mulher. Trata-se de uma perspectiva que não é tão retrógrada e rígida quanto a de grupos fundamentalistas extremos como o Talibã do Afeganistão e os salafistas da Arábia Saudita, mas que também não é particularmente progressista, nem se equipara aos níveis de liberdade e conquistas alcançados por mulheres em muitos países árabes e muçulmanos.
Especificamente, as mulheres no movimento Hamas são politicamente ativas, especialmente nas universidades e entre os setores de formados (como sindicatos de engenheiros, médicos, etc.). Elas têm seus próprios comitês em níveis local e nacional, com foco principal em áreas tradicionalmente femininas, como assistência social, instituições de caridade e escolas. O ativismo feminino do Hamas atinge picos durante períodos eleitorais, quando suas integrantes são totalmente mobilizadas para alcançar outras mulheres palestinas e conquistar seus votos. Seja em eleições para sindicatos estudantis ou para o parlamento, o poder do “voto feminino” é crucial para colocar o Hamas na liderança. Assim, as mulheres são centrais para o Hamas no nível da atuação de base e mobilização – ou seja, em benefício dos interesses políticos do próprio Hamas.
Em outros níveis, principalmente na liderança, as mulheres desaparecem. Desde sua fundação, em 1987, nenhuma mulher foi elevada a uma posição de liderança política, com exceção da nomeação tardia, em março de 2006, de Myriam Saleh para o gabinete do Hamas como ministra dos Assuntos da Mulher (cargo, aliás, bastante previsível). A militância feminina ativa do Hamas é composta, em sua maioria, por graduadas universitárias que foram líderes durante a juventude, mas que acabaram marginalizadas após o casamento e a constituição de família. Seu papel limita-se a assuntos familiares e sociais restritos a determinadas regiões geográficas.
Comparado ao movimento nacional palestino mais amplo – no qual diversas figuras femininas deixaram marcas políticas no espaço público e na liderança – as mulheres do Hamas são praticamente invisíveis para o mundo exterior.
Entre os membros homens do Hamas, há uma convicção amplamente difundida de que a principal responsabilidade da mulher é cuidar do lar e da família. Essa visão é popular como uma preferência cultural, mas não como um decreto que proíba as mulheres ativas de seguirem outros caminhos. As mulheres do Hamas trabalham em escolas, hospitais, empresas, meios de comunicação e outros setores. Contudo, elas evitam buscar posições políticas de liderança ou competir com homens nesses espaços.
No contexto do “projeto de resistência” contra a ocupação israelense, as mulheres do Hamas desempenham um papel significativo de mobilização. Elas fornecem apoio logístico e emocional aos jovens, e as mães demonstram um nível impressionante de firmeza quando seus filhos são mortos pelo exército israelense. Um número bastante reduzido de mulheres do Hamas participou de ataques suicidas. Os líderes do Hamas, sempre adotando um papel de “autoridade paternal benigna”, insistem que não há escassez de homens para executar esses ataques.
Quando o Hamas concorreu às eleições parlamentares palestinas em 2006, sua lista incluía 13 mulheres entre 66 candidatos, e sete delas conquistaram assentos disputados. Ao formar o governo palestino após sua vitória, o Hamas incluiu apenas uma mulher no gabinete: Myriam Saleh. Para decepção de muitos apoiadores que esperavam maior abertura por parte do movimento, a pasta atribuída a Saleh foi justamente o Ministério dos Assuntos da Mulher – uma decisão que, na prática, perpetua a visão tradicional de que “os assuntos das mulheres” são separados e devem ser administrados por mulheres.
De mais de uma forma, as credenciais de Saleh, que a recomendaram para esse cargo, refletem o perfil de muitas das mulheres do Hamas: jovens educadas que dividem seu tempo entre responsabilidades familiares e ativismo organizacional. Saleh é doutora em estudos islâmicos e lecionou por anos em universidades palestinas antes de assumir seu novo cargo. Casada e mãe de sete filhos, é uma devota religiosa, mas muito engajada nas atividades do Hamas. É fundadora e dirigente de várias organizações femininas na Cisjordânia. Em sua visão, “as mulheres não representam apenas metade da sociedade, mas na verdade sua base”.
Respondendo a perguntas sobre se o governo do Hamas imporia o uso do hijab às mulheres palestinas, ela declarou:
“Asseguramos a todas as mulheres que não forçaremos ninguém a usar o hijab... apenas apresentamos nossas ideias por meio de sugestões e com boas intenções. A maioria das mulheres palestinas usa o hijab por plena convicção e sem coerção de ninguém.”
Continua em...
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