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Enterrados entre valas comuns e mercenários – O que está acontecendo no Sudão?

Atualizado: 12 de abr.

No dia 22 de fevereiro, em Nairóbi, capital do Quênia, uma carta foi assinada estabelecendo um "Governo de Paz e Unidade" alternativo ao atual Conselho de Soberania de Transição (TSC) e às Forças Armadas Sudanesas (SAF). A iniciativa foi liderada pelas Forças de Apoio Rápido (RSF) e contou com a presença de representantes de partidos políticos e grupos armados.


O Sudão vive há dois anos uma intensa guerra civil. A assinatura da carta ocorre em um momento delicado, em que o exército sudanês obtém avanços militares importantes, incluindo a expulsão da RSF de Cartum e de outras regiões. Diante das acusações de limpeza étnica feitas por organizações internacionais e por países como os EUA contra a RSF, a viabilidade do novo governo é questionada. Ainda assim, o acordo em Nairóbi representa um possível aprofundamento da divisão nacional, já que os rebeldes ainda controlam vastas áreas no oeste e sul do país.


O documento firmado prevê a criação de um Estado sudanês laico, democrático e descentralizado, com a unificação das forças armadas, embora permita a permanência de grupos armados. Os signatários afirmam que o objetivo não é dividir o país, mas buscar o fim da guerra. Al Hadi Idris, ex-integrante do Conselho de Segurança da ONU e líder de uma facção armada, afirmou que o anúncio oficial da formação do novo governo será feito em breve.


O governo oficial do Sudão rejeitou categoricamente a medida. O chanceler Ali Youssef al-Sharif declarou que não permitirá o reconhecimento internacional do novo governo por nenhum país.



Aliados em guerra


O conflito entre o exército sudanês e a RSF, que já atuaram juntos no governo de transição, teve início em abril de 2023, devido a impasses sobre a incorporação da RSF ao exército regular. O líder da RSF, Mohamed Hamdan Dagalo, o "Hemedti", dividia o poder com militares e civis após a queda de Omar al-Bashir em 2019, mas, em 2021, participou do golpe que derrubou o governo civil liderado por Abdalla Hamdok.


Desde o começo da guerra, a RSF conquistou áreas estratégicas em Cartum e arredores, mas vem perdendo território para o exército, que retomou regiões no estado de Sennar e outras áreas do sudeste. Ainda assim, os rebeldes mantêm domínio sobre partes de Darfur e continuam a lutar pelo controle do estado de Darfur do Norte.


Simultaneamente, regiões como Kordofan do Sul e parte do Nilo Azul estão sob controle do Movimento de Libertação do Povo do Sudão–Norte (SPLM-N), comandado por Abdelaziz al-Hilu, que também apoia o novo governo.


Segundo a ONU, o conflito gerou a maior crise de deslocamento do mundo, com metade da população em insegurança alimentar. Estima-se que 14 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas. Um estudo da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres apontou que mais de 61 mil pessoas morreram nos primeiros 14 meses do conflito. O ACLED registrou mais de 28.700 mortes até novembro, sendo 7.500 civis.


Jovens caminham por uma rua marcada pela destruição em 27 de agosto de 2024, Omdurman, Sudão. © Mudathir Hameed
Jovens caminham por uma rua marcada pela destruição em 27 de agosto de 2024, Omdurman, Sudão. © Mudathir Hameed


O papel do Quênia e a reação internacional

Após a assinatura da carta em Nairóbi, o governo sudanês acusou o Quênia de conspirar com a RSF para criar um governo paralelo, e retirou seu embaixador de Nairóbi. As autoridades quenianas responderam afirmando que a reunião visava encontrar soluções pacíficas para o Sudão, em colaboração com a ONU e a União Africana.


Egito, Arábia Saudita, Kuwait e Catar manifestaram apoio ao governo sudanês e à integridade territorial do país. Já o secretário-geral da ONU, António Guterres, alertou que a criação de estruturas paralelas poderia fragmentar ainda mais o Sudão. O Conselho de Segurança da ONU também expressou preocupação com as possíveis consequências humanitárias.


Projetos de Estado e mudanças em Darfur

Em 4 de março, Abdul Rahim Dagalo, vice-líder da RSF e irmão de Hemedti, assinou a “Constituição de Transição da República do Sudão para 2025”, ao lado de outros líderes opositores, dando início a uma tentativa prática de criar um novo Estado com base em Darfur, controlado pela RSF.


Nos últimos meses, Darfur tem passado por intensas mudanças demográficas e políticas. Combates violentos entre a RSF e forças locais lideradas por Minni Arkoi Minnawi, do Exército de Libertação do Sudão, se intensificaram. Hemedti também conseguiu recrutar milhares de combatentes, majoritariamente de tribos árabes, como os Rizeigat, sua própria etnia.


Autoridades sudanesas denunciaram o uso de mercenários estrangeiros pela RSF, vindos de países como Chade, Etiópia, Síria, Líbia, Níger e outros. Inicialmente com cerca de 120 mil combatentes, a RSF teria recebido reforços de mais 49 mil homens. Há acusações de que Emirados Árabes Unidos e o Sudão do Sul estariam fornecendo armas e combustível aos rebeldes.


Soldados sudaneses das Forças de Apoio Rápido. © AP Photo - Hussein Malla
Soldados sudaneses das Forças de Apoio Rápido. © AP Photo - Hussein Malla


Darfur como um emirado?

Em outubro, a RSF anunciou a criação de um “emirado” para o grupo Awlad Baraka e Mubarak, da República Centro-Africana, na região central de Darfur. O grupo pertence à tribo Salamat e sua presença aumentou após a RSF assumir o controle local. A decisão gerou forte oposição da população nativa, principalmente do povo Fur, que acusa a RSF de ocupar suas terras.


Especialistas acreditam que a RSF está promovendo uma reconfiguração demográfica em Darfur, substituindo estruturas tribais tradicionais por administrações tribais paralelas ligadas às forças rebeldes, frequentemente por meio de violência e deslocamentos forçados.


A diplomacia de Burhan

Preocupado com o avanço da RSF e seus aliados estrangeiros, o general Abdel Fattah al-Burhan, líder do exército, iniciou uma viagem por países da África Ocidental em janeiro, acompanhado de oficiais de inteligência. As visitas a Mali, Guiné-Bissau, Serra Leoa, Senegal e Mauritânia buscaram apoio contra o recrutamento de mercenários árabes por parte da RSF.


Durante essa viagem, foi destacado o novo papel de Serra Leoa como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU. Em novembro de 2024, o país apresentou uma proposta, a pedido do Reino Unido, para intervenção internacional no Sudão, que foi vetada pela Rússia.


Futuro incerto para o governo paralelo

Apesar do impacto político da assinatura da Carta de Nairóbi, o novo governo paralelo enfrenta baixa credibilidade internacional. Hemedti, principal líder da RSF, não compareceu à cerimônia nem participou diretamente da redação da nova constituição. Há meses ele não aparece publicamente, sendo substituído pelo irmão, Abdul Rahim.


A divisão na coalizão civil "Tagadum", antes da assinatura, resultou em uma nova cisão entre os que apoiam e os que rejeitam o governo paralelo. O ex-primeiro-ministro Abdalla Hamdok, figura popular, abandonou o bloco. Tentativas de recrutar apoio de figuras políticas de peso, como Fadlallah Burma Nasir e Ibrahim Al-Mirghani, também fracassaram.


Sem reconhecimento oficial e com apoio limitado, o novo governo busca legitimação internacional principalmente para facilitar a compra de armamentos. No entanto, países como Egito, Catar, Arábia Saudita e Kuwait já se manifestaram contra a iniciativa, enquanto Emirados Árabes e potências ocidentais seguem em silêncio.




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