top of page
Inserir um título (5) (1).jpg

A Síria atual não é um novo começo, é a continuidade refinada das antigas lógicas de dominação ocidental

Em 2021, a fotografia de Munzir al-Nazzal, que perdeu a perna em um bombardeio, e de seu filho Mustafa, nascido sem braços e pernas após sua mãe inalar gás tóxico durante a gestação, percorreu o mundo ao vencer o Siena International Photo Awards. O retrato captado por Mehmet Aslan no distrito de Reyhanli, na fronteira entre Turquia e Síria, comoveu o mundo – inclusive este autor –, além de expôr uma verdade incômoda. Muitas coisas mudaram desde a queda de Assad, mas será que realmente, mudaram?


©Mehmet Aslan
©Mehmet Aslan


A queda do governo de Bashar al-Assad, em dezembro de 2024, foi celebrada com euforia por milhares que tomaram as ruas. Contudo, como em outros episódios da chamada “primavera árabe”, a euforia logo deu lugar a uma realidade ainda mais brutal. O grupo Hay’at Tahrir al‑Sham (HTS), sob a liderança de Ahmad al‑Sharaa (conhecido como al‑Julani), assumiu o controle de Damasco e de outras províncias estratégicas, convertendo a prometida “transição democrática” em um regime teocrático, sectário e repressivo.


Entre dezembro de 2024 e maio de 2025, estima-se que ao menos 1.500 civis — em sua maioria alauítas e drusos — foram executados por milícias ligadas ao HTS em operações coordenadas de limpeza sectária. Houve relatos de saques, incêndios deliberados, deportações forçadas e assassinatos sumários de mulheres, idosos e jovens. Mais de 300 mil pessoas foram deslocadas; cerca de 5 mil detidas arbitrariamente; ao menos 800 morreram sob tortura, e milhares permanecem desaparecidas. Em Suwayda e nas periferias de Damasco, ataques em abril resultaram na morte de cerca de 70 drusos — muitos executados com slogans de extermínio étnico e remoção sistemática de símbolos religiosos.


AAREF WATAD I AFP I GETTY
AAREF WATAD I AFP I GETTY


Os confrontos entre milícias drusas e grupos beduínos apoiados pelo HTS, especialmente na província de Suwayda em julho de 2025, deixaram dezenas de mortos, incluindo crianças. Ao invés de mediar, o regime intensificou a repressão com execuções sumárias e despejos forçados. Apesar de sua retórica pública de “governança inclusiva”, o HTS promove uma estrutura institucional que beneficia apenas a população simpática ao regime, marginalizando e violentando as minorias étnicas e religiosas — uma prática documentada por organizações como Human Rights Watch (HRW), Syrian Observatory for Human Rights (SOHR) e Christian Solidarity International (CSI).


A tentativa de apresentar o HTS como um regime moderado, com apelo ao desenvolvimento e à tolerância religiosa, ecoa padrões já observados em outras intervenções apoiadas ou toleradas pelo Ocidente: o Iraque pós-2003 e a Líbia após 2011 são exemplos evidentes. Nestes casos, o colapso de regimes autoritários não resultou em democracia, mas sim em uma fragmentação institucional que serviu como fachada para projetos de dominação econômica, exclusão identitária e controle populacional.


Trata-se, portanto, de um modelo recorrente de transição hegemônica: regimes emergentes são legitimados enquanto aplicam, sob novas bandeiras e discursos, as velhas políticas de opressão e supressão das diferenças.


A atual Síria não inaugura uma nova era — apenas recicla a lógica do autoritarismo sob novos símbolos e com novas alianças. A retórica de transição democrática tem servido, mais uma vez, como verniz para o aprofundamento das estruturas de violência estatal. A queda de Assad não significou a queda do regime: significou sua mutação estratégica, agora revestida de discurso religioso e impulsionada por uma nova elite armada. Até que se rompa o ciclo de legitimação de regimes repressivos em nome de uma estabilidade geopolítica ilusória, os que vivem nas margens — drusos, alauítas, cristãos e tantas outras comunidades — continuarão pagando o preço da "ordem" imposta de fora para dentro.

Comentários


ADQUIRA UMA DAS VERSÕES DA EDITORA CLANDESTINO.

Ao adquirir um de nossos arquivos, você contribui para a expansão de nosso trabalho.

LEIA ON-LINE

“Pátria ou Morte!”  Che Guevara
01:08
Thomas Sankara responde “Por que você disse não aorecebimento de ajuda humanitária?”
01:29
A história do mundo por Ghassan Kanafani (1970)
00:21
Promessas Vazias de Justiça e Liberdade nos Estados Unidos
01:27
Aliança estratégica entre Rússia e China
01:00
Salve o Sudão!
01:00
Kim Jong Un inspeciona corpo de elite do Exército norte-coreano
00:45
"Quem te priva da liberdade não merece uma aboradagem pacífica" Malcolm X
00:28
bottom of page