Eu luto enlutada
- Ashjan Sadique Adi

- 7 de jul.
- 2 min de leitura
Isso não é bobagem, mas várias vezes, durante minhas refeições, eu lembro de meus irmãos e irmãs famintos, passando fome e sinto culpa pelo privilégio da mesa, do prato que me nutre. Me lembro da menina chorando e dizendo: “eu só queria um pão para comer...” Me lembro dos palestinos, já com fome e enfraquecidos, correndo dos tiros, quando buscam comida, na verdade, uma farinha. Passa um filme na minha cabeça e me pergunto: Até quando? Por que? Que mundo é esse em que fingimos viver?
E outro dia, no carro, indo ao trabalho pela manhã... escutei uma música, que faz tempo não ouvia: Poema, na voz de Ney Matogrosso: “Hoje eu acordei com medo, mas não chorei, nem reclamei abrigo. Do escuro, eu via um infinito sem presente, passado ou futuro. Senti um abraço forte, já não era medo. Era uma coisa sua que ficou em mim”...
E lembrei dos meus... e comecei a chorar, como começo agora... Lembrei que eles não tem o privilégio de ouvir uma música, são privados da água, da comida, da moradia, da roupa, de um papel higiênico, de um absorvente, de uma fralda... da Paz, são privados do mais básico, o que dirá, do privilégio da arte, da poesia, da beleza abstrata.
E isso acontece com meu povo, que tem uma alegria linda, uma riqueza cultural imensa, músicas belas, danças encantadoras, culinária magnífica. Etnicamente, não a perdemos, eu sei, mas milhares dos nossos, sim... E penso no futuro dessas pessoas hoje massacradas, das crianças mutiladas, de todos traumatizados. Como isso reverberá? Qual perspectiva de vida o horizonte aponta?
Por tudo isso, estou sempre atravessada por estes dois sentimentos: ódio e tristeza, mas o que me segura, me estrutura, é o primeiro. Eu não posso me permitir ser tomada pela tristeza, e Luto, para mim, tem que ser um verbo, não um substantivo, mas eles se juntam: eu luto enlutada. Não dá tempo de elaborar o luto, para depois lutar. A luta e o luto, o punho e as lágrimas se emaranham dentro de mim, e seguem juntos... num movimento de avanço e recuo... como toda dialética do mundo. E esse é o meu. Seguimos até a Vitória da Luta. Apesar de tudo, apesar do luto.



























































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