Quanto recebem os funcionários do alto escalão da ONU para garantir que as guerras não acabem?
Em 2023, segundo dados disponíveis no sistema de remuneração das Nações Unidas (United Nations Common System), o salário-base mensal de um Subsecretário-Geral — um dos cargos mais altos da hierarquia burocrática da ONU — gira em torno de US$ 20.000, – sim, dólares – sem contar adicionais como auxílio moradia, subsídios para deslocamentos e gratificações por periculosidade. Curiosamente, esse valor é proporcionalmente inverso à eficácia institucional da ONU na prevenção ou cessação de conflitos armados. Em outras palavras: quanto mais persistem as guerras, mais estáveis se mantêm os salários daqueles incumbidos de impedir que elas ocorram. O contraste entre esse modelo de compensação e os objetivos declarados da organização — "preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra" (Carta das Nações Unidas, 1945) — revela uma dissonância estrutural entre discurso e prática. A manutenção de um aparato diplomático cuja sobrevivência está, ironicamente, condicionada à continuidade das crises que se propõe a resolver, não é apenas uma falha administrativa; é um sintoma de uma lógica geopolítica profundamente arraigada. A burocracia onusiana, com seus mais de 44 mil funcionários permanentes e milhares de contratados externos, opera como um sistema de amortecimento dos conflitos, nunca de sua resolução. A Missão de Estabilização das Nações Unidas no Congo (MONUSCO), por exemplo, está presente no país desde 1999, com um orçamento anual que ultrapassa US$ 1 bilhão (Relatório da ONU, 2022). Durante esse período, o número de vítimas civis no leste congolês não apenas persistiu, como aumentou em determinadas regiões, mesmo sob a vigilância de tropas internacionais. O próprio Escritório Conjunto da ONU para os Direitos Humanos no Congo reconheceu, em relatórios de 2020 e 2021, a incapacidade da missão em impedir massacres como os registrados em Ituri e Kivu do Norte. A situação não difere substancialmente no contexto do conflito israelo-palestino. O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) publica relatórios quase mensais sobre a deterioração da situação humanitária em Gaza e na Cisjordânia ocupada, apontando violações sistemáticas dos direitos humanos. No entanto, nenhum funcionário do alto escalão foi demitido por ineficiência, nem houve qualquer reestruturação relevante nas instâncias decisórias após décadas de fracasso diplomático. Ao contrário: os cargos se perpetuam, as conferências se multiplicam, os relatórios se acumulam da mesma maneira que as notas de repúdio — e a ocupação prossegue. Torna-se difícil, portanto, ignorar a natureza funcional da impotência da ONU. A ineficácia não decorre de falta de informação, recursos ou boa vontade isolada, mas de um arranjo estrutural que acomoda interesses estatais e corporativos sob a retórica da paz. O Conselho de Segurança, dominado por cinco membros permanentes com poder de veto (EUA, Reino Unido, França, China e Rússia), transforma qualquer tentativa de responsabilização concreta em um exercício diplomático estéril. Não se trata de um erro de sistema — este é o sistema. A guerra, nesse contexto, transforma-se em uma indústria de estabilização burocrática. Os altos salários pagos aos diplomatas e técnicos das Nações Unidas — muitas vezes superiores à renda anual dos cidadãos das regiões que dizem proteger — não são um desvio moral, mas parte de uma engrenagem que exige a permanência do conflito para justificar sua própria existência. A paz, se viesse a ocorrer de forma plena, dissolveria a função de grande parte dessa estrutura. Essa lógica perversa encontra paralelos históricos em outras arenas multilaterais. Durante a Guerra Fria, por exemplo, a Comissão das Nações Unidas para a Coreia (UNCOK), estabelecida em 1948 para “supervisionar a paz”, serviu de fachada diplomática para legitimar interesses militares das potências aliadas. O padrão repete-se: instituições supostamente neutras operando como legitimadoras da ordem hegemônica. A ironia que atravessa essas dinâmicas não escapa ao olhar atento: os mesmos Estados que financiam as operações de paz são, em muitos casos, os principais exportadores de armamentos para as zonas de conflito (SIPRI, 2022). O financiamento da ONU por esses países — em especial pelos EUA, que contribuem com cerca de 22% do orçamento regular da organização — não vem isento de condições. A “independência” do organismo, portanto, é mais uma formalidade retórica do que uma prática substantiva. O que se apresenta como um aparato global de pacificação revela-se, em análise mais minuciosa, como um sistema de administração da instabilidade. A proliferação de missões permanentes, a reciclagem de relatórios, o ritual das assembleias anuais e os pronunciamentos cuidadosamente coreografados diante das câmeras de Nova York constituem não um esforço sincero por justiça internacional, mas um teatro da neutralidade, onde o alto escalão é regiamente remunerado para manter a encenação em cartaz. A crítica aqui não sugere que a ONU deva ser abolida, tampouco ignora o papel que desempenha em algumas áreas humanitárias de valor inquestionável. O que se exige é uma reflexão honesta sobre os limites e contradições de um modelo de governança global que permite que a paz seja mais lucrativa como promessa do que como realidade. Afinal, quando o fracasso é recompensado com bônus e estabilidade contratual, talvez o sucesso — isto é, o fim das guerras — seja visto, paradoxalmente, como um risco. Referências United Nations Common System Compensation Data (2023). Carta das Nações Unidas, 1945. Relatório da MONUSCO, 2022. Escritório Conjunto da ONU para os Direitos Humanos no Congo (OHCHR), Relatórios 2020–2021. OCHA, Humanitarian Reports on Palestine (2022–2023). SIPRI Yearbook, 2022. Comissão das Nações Unidas para a Coreia (UNCOK), arquivos históricos, 1948.
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