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A ilusão dos 20 pontos: Trump promete reconstruir Gaza, mas o que se propõe reconstruir é o controle

Dois anos após a ofensiva de 7 de outubro de 2023, Gaza é uma ruína viva. A paisagem é de escombros e silêncio — bairros inteiros desapareceram sob o peso da destruição. O número de mortos já ultrapassa 67 mil, segundo o Ministério da Saúde do enclave. O cerco israelense, agora levado ao paroxismo, transformou a fome em arma, a sobrevivência em resistência.


É nesse cenário que Donald J. Trump reaparece como “artífice da paz”, propondo um plano de vinte pontos que, em sua retórica, promete um cessar-fogo, libertação de prisioneiros e o início de uma reconstrução. O documento, endossado por outros países, incluindo árabes, sugere a possibilidade de interromper o genocídio em curso. Contudo, o que se apresenta como “acordo histórico” se revela, à luz de uma leitura mais atenta, um exercício de dominação política travestido de pacificação.


Faixa de Gaza I arquivo
Faixa de Gaza I arquivo

O chamado “Conselho da Paz”, que teria Trump como presidente e Tony Blair como uma espécie de vice-rei, carrega o peso simbólico do colonialismo. Para os palestinos, a lembrança do mandato britânico não é mera história: é ferida aberta. Blair, que ajudou a justificar a invasão do Iraque, volta à cena agora como guardião de uma Gaza devastada — uma ironia que transforma o discurso da reconstrução em eco de um passado imperial.


Os vinte pontos do plano se dividem entre promessas de cessar-fogo, diretrizes para a governança e um “horizonte político” indefinido. Como observou o ex-negociador israelense Daniel Levy, todas essas frentes são frágeis, insuficientes ou deliberadamente moldadas para servir aos interesses de Tel Aviv. Ao exigir o desarmamento do Hamas como condição prévia para qualquer acordo, o plano não apenas impõe um ultimato político, mas busca desarticular o coração da resistência palestina.


O Hamas sinalizou que poderia considerar o desarmamento caso as forças israelenses deixassem completamente o território, mas essa hipótese está longe de se concretizar. Sem garantias de proteção à população civil e sem uma força autônoma de segurança, o desarmamento equivaleria a abrir as portas para uma nova fase do mesmo massacre. “Seria um suicídio político”, observou o pesquisador Nader Hashemi, lembrando que o Hamas não sobreviveria sem instrumentos de defesa frente à ocupação.


Além disso, o plano ignora um ator fundamental: a Jihad Islâmica Palestina. Segunda maior força armada de Gaza, o grupo mantém influência real e presença militar efetiva. Qualquer tentativa de impor um acordo sem sua participação é ilusória. Mesmo que o Hamas cedesse, a Jihad Islâmica preencheria o vácuo, assumindo o papel de principal referência da resistência. Assim, longe de promover estabilidade, o projeto de Trump poderia apenas reorganizar o campo da insurgência.


Faixa de Gaza. 2025. ©mahmoudhamda
Faixa de Gaza. 2025. ©mahmoudhamda

Mas talvez o ponto mais sensível não esteja nas cláusulas militares, e sim na exclusão política. Nenhum palestino foi chamado a participar da elaboração do plano. O destino de um povo inteiro foi novamente desenhado em mesas estrangeiras. O que se vende como paz é, na verdade, uma gestão da ocupação, em que governos árabes e muçulmanos desempenham o papel de mediadores complacentes. Egito, Arábia Saudita, Turquia, Emirados e outros elogiaram o “comprometimento” de Trump, enquanto se calam diante do genocídio.


Como observou Hashemi, o plano é desprovido de qualquer referência ao direito internacional, à responsabilização por crimes de guerra ou ao reconhecimento do genocídio cometido por Israel. Em vez de justiça, oferece conveniência; em vez de soberania, dependência. É um acordo que busca silenciar a Palestina em nome de uma paz sem dignidade.


Talvez, no curto prazo, ele traga algum alívio: uma pausa nos bombardeios, a troca de prisioneiros, a entrada de ajuda humanitária. Mas nenhuma dessas medidas toca o centro da questão: o direito dos palestinos à autodeterminação. Um cessar-fogo sem justiça é apenas a pausa da violência.


Trump promete reconstruir Gaza, mas o que se propõe reconstruir é o controle — um projeto de normalização do apartheid, mascarado pela linguagem da estabilidade e do progresso econômico. Como tantas vezes na história, a palavra “paz” volta a ser usada para legitimar o silêncio dos oprimidos.


Enquanto os palestinos continuarem ausentes das mesas de decisão, nenhuma iniciativa — por mais pomposamente estruturada, por mais assinaturas que acumule — poderá produzir aquilo que mais falta em Gaza: justiça. A verdadeira paz não se impõe, conquista-se com liberdade, dignidade e voz.

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