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A Emergência Chinesa e o Fim da Hegemonia Monopolista

Em março de 2023, um evento silencioso, porém de amplo significado geopolítico, marcou o início de uma nova configuração no tabuleiro do Oriente Médio: a retomada das relações diplomáticas entre Arábia Saudita e Irã, mediada não por Washington, Paris ou Londres, mas por Pequim. A assinatura do acordo na capital chinesa foi tratada com cautela pela imprensa ocidental, que, há décadas, se acostumou a representar a China como uma potência econômica ascendente, porém incapaz de exercer influência diplomática de alto nível. O fato, impõe uma realidade: a China já não é apenas uma espectadora das disputas globais — ela é agora uma protagonista, e o faz por meio de instrumentos que expõem as limitações morais e práticas da velha ordem internacional.


Xi Jinping (centro) espera para se encontrar com o chefe do Executivo de Hong Kong, Leung Chun-ying, em um hotel em Hong Kong em 29 de junho. DALE DE LA REY I AFP I Getty Images
Xi Jinping (centro) espera para se encontrar com o chefe do Executivo de Hong Kong, Leung Chun-ying, em um hotel em Hong Kong em 29 de junho. DALE DE LA REY I AFP I Getty Images


Ao contrário do que se poderia imaginar a partir do discurso predominante nas análises ocidentais, a mediação chinesa não representa um gesto isolado ou oportunista. Insere-se em uma estratégia de longo prazo orientada pela Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), que, mais do que um projeto econômico, configura um modelo alternativo de relacionamento internacional baseado na reciprocidade e na não ingerência nos assuntos internos dos Estados. Enquanto o Ocidente — notadamente os Estados Unidos — construiu sua hegemonia sobre a base de intervenções militares, sanções econômicas seletivas e apoio irrestrito a regimes obedientes (independentemente de sua legitimidade interna), a China propõe uma lógica de estabilidade por meio da cooperação econômica e diplomacia pragmática, não pela força.


A ironia — que talvez passe despercebida por muitos analistas — é que essa postura “não ideológica”, por vezes caricaturada como mera conveniência, revela-se mais respeitosa aos princípios da Carta das Nações Unidas do que boa parte da prática ocidental no Golfo. De fato, as intervenções militares no Iraque (2003), na Líbia (2011) e os sucessivos financiamentos de guerras por procuração (proxy wars) mostram como o discurso dos “direitos humanos” e da “democracia” tem sido utilizado para mascarar interesses geoeconômicos concretos, sobretudo no controle de rotas energéticas e acesso a recursos naturais. Em contraste, a China, sem bases militares na região e sem histórico de ocupações, consegue aproximar atores historicamente antagônicos como Riad e Teerã justamente porque não está comprometida com lógicas de dominação sectária.


Relatórios do Center for Strategic and International Studies (CSIS) reconhecem, ainda que a contragosto, que o pragmatismo da diplomacia chinesa tem gerado ganhos reais em regiões onde a presença ocidental se tornou sinônimo de instabilidade. Segundo dados da Belt and Road Portal, entre 2013 e 2022, os investimentos chineses na região do Golfo superaram US$ 250 bilhões, concentrando-se em infraestrutura, tecnologia e transição energética — setores negligenciados por décadas pelos modelos ocidentais, mais voltados à extração bruta de recursos e à militarização de alianças.


O caso da mediação Teerã-Riad não deve, portanto, ser lido como uma mera movimentação tática. Trata-se de uma manifestação de um novo paradigma geopolítico em que a influência não depende da imposição, mas da construção paciente de confiança. Um modelo no qual a retórica de “valores universais” não é usada como justificativa para bombardeios, mas substituída por projetos de desenvolvimento concreto. A China consegue influenciar sem submeter, negociar sem invadir e dialogar sem ditar condições.


Naturalmente, a crítica ao modelo chinês se intensifica à medida que ele demonstra eficácia. Denúncias de que Pequim apoia regimes autoritários soam particularmente vazias quando emitidas por potências que por décadas sustentaram governos como os de Augusto Pinochet e a monarquia saudita, com pleno conhecimento das práticas de repressão, tortura e censura que esses regimes aplicavam com o beneplácito ocidental. A diferença, no entanto, é que a China não impõe modelos ideológicos e não instrumentaliza o “direito internacional” para justificar ações unilaterais. A prática da não interferência, frequentemente acusada de conivência, na verdade revela um respeito pelas soberanias nacionais que o Ocidente há muito abandonou em nome de seus “interesses vitais”.


A aproximação sino-árabe, assim como a crescente presença chinesa na África e na América Latina, aponta para um padrão histórico que merece atenção: quando os centros tradicionais de poder deixam de ser os únicos árbitros do mundo, os discursos de ordem, legalidade e moralidade tornam-se mais estridentes — talvez como forma de compensar a perda de controle. O paradoxo é que, quanto mais a China é acusada de desafiar a ordem liberal internacional, mais ela recorre aos seus próprios princípios de multilateralismo e respeito mútuo para propor soluções diplomáticas reais. O “desafio chinês” talvez consista, justamente, em revelar o quão frágil e seletiva essa ordem sempre foi.


Ao final, o que está em jogo não é apenas a redefinição das alianças no Golfo, mas a exposição das fissuras profundas de uma ordem internacional que, por muito tempo, mascarou sua brutalidade sob um verniz civilizatório. A China, ao deslocar o eixo da mediação e reconfigurar o espaço diplomático em torno de interesses comuns — e não de hegemonias coercitivas —, inaugura uma possibilidade histórica: a de um mundo menos pautado pela lógica de submissão e mais orientado à coexistência estratégica entre Estados soberanos. Ainda que isso, compreensivelmente, incomode os que se acostumaram a ditar as regras do jogo.

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