Do negacionismo à reconstrução: a luta dos povos originários contra a devastação bolsonarista
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Povos Originários e Quilombolas na Linha de Frente: Continuidade e Ruptura entre os Governos Bolsonaro e Lula
Em abril de 2024, a demarcação do território indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, ocupou manchetes nacionais após anos de paralisia. A ação simbolizou a retomada institucional dos direitos indígenas no Brasil, após um período de evidente regressão sob o governo Bolsonaro. O episódio permite observar as inflexões políticas, discursivas e institucionais que marcam a transição entre duas concepções de Estado diametralmente opostas: uma baseada na desregulamentação e no negacionismo ambiental, outra comprometida com a reconstrução de marcos normativos voltados à proteção dos povos tradicionais.

Durante o governo Bolsonaro (2019–2022), os dados falam por si. Segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), nenhuma terra indígena foi homologada durante os quatro anos de gestão. Ao mesmo tempo, o desmonte sistemático de órgãos como a Funai e o Ibama, a militarização da política indigenista e o incentivo retórico à invasão de territórios — expressos em frases como “índio quer terra para plantar soja” — promoveram uma institucionalização da violência. Relatórios do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apontam que, entre 2019 e 2022, os casos de invasão de terras indígenas mais que dobraram, e os assassinatos cresceram 41% em relação ao período anterior.
A lógica dominante nesse período era de um Estado que deveria funcionar como instrumento de facilitação do capital fundiário e mineral, neutralizando os “entraves burocráticos” à expansão do agronegócio. A retórica da modernização foi convertida em justificativa para o ataque direto a comunidades historicamente marginalizadas. O discurso da “integração produtiva” operava como cortina de fumaça para legitimar grilagem, mineração ilegal e a captura de terras públicas por grupos privados — frequentemente armados e protegidos por redes políticas locais.
Sob o governo Lula (2023–2025), observa-se uma mudança de orientação, ainda que inserida nas contradições inerentes à estrutura do Estado brasileiro. A criação do Ministério dos Povos Indígenas, sob o comando de Sonia Guajajara, representa não apenas um gesto simbólico, mas um realinhamento institucional com a Constituição de 1988. Até 2024, segundo dados do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), o governo Lula homologou 10 novas terras indígenas — um número modesto diante da demanda histórica, mas expressivo quando comparado à política de terra arrasada anterior.

A política quilombola também avança timidamente. Em 2023, o governo federal retomou os processos de titulação de territórios, paralisados desde 2018. Conforme dados da Fundação Cultural Palmares, mais de 2.000 comunidades quilombolas possuem certidão de autorreconhecimento, mas apenas cerca de 200 territórios foram titulados. O governo Lula, apesar das limitações impostas pelo Congresso e pela pressão do agronegócio, ampliou os recursos destinados ao Programa Brasil Quilombola, que havia sido praticamente extinto na gestão anterior.
Esses avanços, no entanto, convivem com limites evidentes. A coalizão heterogênea que sustenta o governo — marcada por acordos com setores do agronegócio e partidos conservadores — impõe freios à agenda socioambiental. Em 2023, o Congresso aprovou o marco temporal das terras indígenas, contrariando decisão anterior do STF, num movimento que revela a persistência de forças estruturais hostis aos direitos dos povos tradicionais, mesmo sob uma presidência de perfil progressista. A reação do governo, embora contrária ao marco temporal, foi moderada e institucional, contrastando com a radicalização antidemocrática do período Bolsonaro.
No plano internacional, o governo Lula busca reposicionar o Brasil como liderança climática e defensora dos direitos dos povos tradicionais. A participação ativa na COP28, os compromissos de desmatamento zero até 2030 e os acordos multilaterais com Alemanha e Noruega para o Fundo Amazônia reforçam essa imagem. No entanto, a coexistência dessa diplomacia com a manutenção de incentivos ao agronegócio exportador revela tensões não resolvidas entre sustentabilidade e dependência econômica do setor primário. O modelo de desenvolvimento, ainda baseado na exportação de commodities, continua a pressionar os territórios tradicionais, ainda que agora sob uma retórica mais civilizada.

Em comparação ao governo Bolsonaro, o governo Lula representa um avanço institucional significativo na proteção dos povos originários e quilombolas. Porém, esse avanço está condicionado por uma estrutura de poder que, historicamente, marginaliza esses grupos e privilegia grandes interesses econômicos. A política indigenista e quilombola do governo atual é, ao mesmo tempo, um esforço de reconstrução do Estado de Direito e um campo de disputa entre projetos antagônicos de sociedade.
A lição, portanto, não é apenas sobre governos, mas sobre estruturas. Enquanto o modelo econômico brasileiro permanecer ancorado na extração de valor de territórios ocupados por populações tradicionais, a tensão entre desenvolvimento e direitos será constante. O governo Lula rompe com a brutalidade negacionista de Bolsonaro, mas ainda opera sob a lógica de compatibilizar interesses incompatíveis — um malabarismo político que, cedo ou tarde, exigirá definições mais claras.



































































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