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A Cartografia do Caos: O protagonismo das potências ocidentais na fragmentação do Oriente Médio pós-Sykes-Picot

Em junho de 2014, diante das câmeras do mundo inteiro, militantes do então emergente Estado Islâmico destruíram um marco fronteiriço entre Síria e Iraque, declarando o fim do Acordo Sykes-Picot — tratado secreto firmado entre França e Reino Unido em 1916 para dividir o Império Otomano entre as potências europeias. A cena, foi interpretada como mais um ato simbólico de barbárie jihadista; no entanto, a crítica embutida no gesto ressoa ironicamente com uma verdade histórica que raramente é admitida nos círculos diplomáticos ocidentais: a cartografia do Oriente Médio moderno foi, desde sua origem, um instrumento de engenharia colonial.


Faixa de Gaza, 2025 - arquivo _hossam_shbat
Faixa de Gaza, 2025 - arquivo _hossam_shbat

O Acordo Sykes-Picot, formalizado em meio à Primeira Guerra Mundial, jamais foi submetido à consulta popular nos territórios afetados. Segundo os termos, a França obteria controle sobre a Síria e o Líbano, enquanto os britânicos dominariam áreas que hoje compõem o Iraque, Jordânia e Palestina. Essa reorganização artificial — construída a partir de linhas retas que atravessam desertos e ignoram identidades étnicas, tribais e religiosas — lançou as bases para conflitos que perduram até hoje. Mais de um século depois, é oportuno perguntar: a fragmentação atual do Oriente Médio é produto de desintegração interna ou resultado direto de intervenções estratégicas contínuas das potências ocidentais?


O discurso dominante insiste na explicação da “instabilidade endêmica” da região, muitas vezes atribuindo os conflitos à “irracionalidade tribal” ou ao “atraso cultural” de seus habitantes. Contudo, essa narrativa colapsa ao lembrar que o apoio ocidental ao golpe de 1953 no Irã — operação Ajax, conduzida pela CIA e pelo MI6 — destituiu o primeiro-ministro democraticamente eleito Mohammad Mossadegh, após sua tentativa de nacionalizar o petróleo iraniano. O resultado foi a instalação de uma monarquia absolutista sob o xá Reza Pahlavi, cujo regime de terror foi amplamente financiado por Washington e Londres — em nome, evidentemente, da estabilidade regional.


REVOLUÇÃO ISLÂMICA NO IRÃ. 12 DE FEVEREIRO DE 1979 ©KAVEH KAZEMI
REVOLUÇÃO ISLÂMICA NO IRÃ. 12 DE FEVEREIRO DE 1979 ©KAVEH KAZEMI

A retórica dos direitos humanos, propagada com fervor em fóruns internacionais, parece sofrer de miopia seletiva quando confrontada com aliados estratégicos. A Arábia Saudita, por exemplo, figura consistentemente entre os maiores clientes da indústria bélica dos EUA e do Reino Unido, mesmo sendo um dos regimes mais repressivos do mundo, conforme apontado em diversos relatórios da Anistia Internacional e da Human Rights Watch. A ironia se agrava quando consideramos que esse mesmo regime lidera uma coalizão militar que, segundo relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), contribuiu para uma catástrofe humanitária no Iêmen, com milhares de mortos civis e milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar.


A fragmentação do Líbano, a guerra civil síria, a invasão do Iraque em 2003 — fundamentada em acusações falsas sobre armas de destruição em massa, conforme admitido posteriormente por relatórios do próprio governo britânico (como o "Chilcot Report") — e a intervenção na Líbia em 2011, que mergulhou o país no caos e abriu espaço para milícias rivais, não são eventos isolados ou erros de cálculo. São manifestações reiteradas de uma lógica estrutural que instrumentaliza a fragmentação como tática de controle geopolítico. O modelo é recorrente: apoiar grupos insurgentes quando conveniente, denunciar violações de direitos humanos quando útil, e ignorar massacres quando cometidos por parceiros estratégicos.


O padrão se repete em outras latitudes. No Sudeste Asiático, os EUA apoiaram o regime genocida de Suharto na Indonésia, mesmo diante de denúncias documentadas de massacres em Timor-Leste. Na América Latina, a doutrina de segurança nacional justificou décadas de ditaduras apoiadas por Washington, em nome do combate ao comunismo. O fio condutor é a funcionalidade da fragmentação e da violência para os interesses estratégicos de manutenção de esferas de influência.


IÊMEN - ARQUIVO
IÊMEN - ARQUIVO

No caso do Oriente Médio, a política externa das potências ocidentais não visa a promoção da democracia ou a estabilidade — termos recorrentes em discursos presidenciais —, mas sim a contenção de forças que ameacem a ordem geoeconômica vigente, em particular o controle sobre os fluxos energéticos e as rotas comerciais. A fragmentação não é, portanto, um subproduto acidental da descolonização, mas uma tecnologia de governo, como diria Foucault, adaptada à escala transnacional.


Ao apagar as digitais coloniais e apresentar os conflitos como expressão de patologias locais, o discurso hegemônico naturaliza uma ordem geopolítica assimétrica. Desconecta causas de efeitos, oculta a continuidade entre o passado colonial e o presente imperial e, mais ainda, bloqueia qualquer possibilidade de reflexão crítica sobre alternativas.


Não é necessário especular teorias conspiratórias. Os documentos estão disponíveis. As intervenções foram públicas. Os resultados são empíricos. A única exigência é a disposição de olhar além das narrativas autocongratulatórias e reconhecer que, no caso do Oriente Médio, a história da fragmentação não é a história de um colapso espontâneo, mas de uma ordem construída — cuidadosamente desenhada com régua, bússola e interesses.


Fontes:

Sykes-Picot Agreement, 1916, British National Archives.

Chilcot Report (Iraq Inquiry Report), UK Government, 2016.

Anistia Internacional, World Report 2024 – Saudi Arabia.

Human Rights Watch, Yemen: Events of 2023.

United Nations OCHA, Yemen Humanitarian Overview 2023.

CIA Archives, Operation Ajax, 1953.

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População, 1978.

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