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Israel, França e EUA; o tripé da guerra silenciosa no Sahel - Uma análise da militarização neocolonial no centro-norte africano

No dia 16 de setembro de 2023, o general Abdourahamane Tchiani, autoproclamado líder do Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria, anunciou a suspensão da cooperação militar do Níger com a França, encerrando décadas de presença ostensiva de tropas e equipamentos franceses em território nigerino. Embora oficialmente justificada em nome da "defesa da soberania nacional", a medida escancarou o desgaste do discurso ocidental sobre segurança, estabilidade e direitos humanos no Sahel — uma região onde as potências centrais, por meio de operações militares, contratos de mineração e programas de "ajuda humanitária", têm consolidado um controle altamente seletivo sobre recursos e governos. França, Estados Unidos e, mais recentemente, Israel, atuam neste cenário com motivações que ultrapassam qualquer preocupação altruísta com a paz regional. A análise detalhada de suas práticas revela um padrão sistemático de dominação que contradiz frontalmente os princípios que alegam defender.


Aigachatou e seus filhos tiveram que fugir de casa e agora vivem em uma barraca no Mali. ©TOGO MOISE I NRC
Aigachatou e seus filhos tiveram que fugir de casa e agora vivem em uma barraca no Mali. ©TOGO MOISE I NRC

A França, potência formalmente descolonizadora, mantém no Sahel uma presença que em nada se distingue de suas práticas imperiais anteriores. Desde a Operação Serval (2013) e, posteriormente, a Barkhane (2014), Paris tem operado com tropas estacionadas em bases permanentes em Gao (Mali), Niamey (Níger) e N'Djamena (Chade), sob o pretexto de combater insurgências jihadistas. Segundo relatório do Ministère des Armées, a França investiu mais de 600 milhões de euros anuais nestas operações, embora os grupos armados tenham se multiplicado nesse mesmo período, expandindo seu controle territorial. A contradição é evidente: quanto mais a presença francesa se intensifica, maior é a instabilidade na região. Seria de se esperar, em um cenário de racionalidade estratégica, que fracassos sucessivos levassem à reformulação das políticas adotadas. No entanto, o que se vê é a persistência do mesmo modelo, o que sugere que o objetivo real talvez não seja a segurança dos povos africanos, mas sim a perpetuação do acesso privilegiado aos recursos estratégicos — como o urânio nigerino, essencial para abastecer os reatores nucleares franceses, responsáveis por cerca de 70% da matriz energética do país europeu.


Os Estados Unidos, por sua vez, mantêm mais de 29 bases e postos avançados em território africano, segundo o United States Africa Command (AFRICOM). No caso específico do Níger, a base de Agadez — construída ao custo de 110 milhões de dólares — funciona como um hub de drones para operações em toda a região do Sahel e além. A narrativa oficial, ancorada na "guerra contra o terrorismo", justifica a presença militar como um elemento de estabilidade. No entanto, o índice de ataques jihadistas aumentou em 250% entre 2018 e 2022, de acordo com dados da Global Terrorism Index, minando a ideia de que a presença militar estrangeira gera segurança. Ao contrário, o desdobramento constante de forças militares tem alimentado ressentimentos locais, fortalecido grupos insurgentes e corroído a legitimidade de governos associados ao Ocidente. Trata-se de um padrão já verificado em outras geografias, como o Afeganistão, onde 20 anos de ocupação militar culminaram na restauração do Talibã ao poder — uma ironia histórica difícil de ignorar.


30.000 pessoas que fugiram da violência do Boko Haram na área da bacia do Lago Chade encontraram refúgio no local da Muna Garage para pessoas deslocadas na Nigéria. Crédito: Pablo Tosco / Oxfam
30.000 pessoas que fugiram da violência do Boko Haram na área da bacia do Lago Chade encontraram refúgio no local da Muna Garage para pessoas deslocadas na Nigéria. Crédito: Pablo Tosco / Oxfam


Israel, embora não possua a mesma visibilidade no Sahel que seus parceiros euro-estadunidenses, tem ampliado sua presença de maneira notável nos últimos anos, sobretudo por meio da exportação de tecnologia militar e de vigilância. Em 2021, o jornal Haaretz revelou que o sistema Pegasus, desenvolvido pela NSO Group, foi licenciado para governos africanos envolvidos em graves denúncias de repressão política, como Ruanda, Togo e Burkina Faso. A promessa, novamente, é a de "segurança nacional". No entanto, em vez de servir ao combate a insurgências ou ao crime organizado, os softwares de espionagem têm sido largamente utilizados para monitorar opositores políticos, jornalistas e ativistas, conforme relatórios da Amnesty International e do Citizen Lab. Não por coincidência, Israel também mantém acordos de cooperação em setores como agricultura de precisão e controle de fronteiras com regimes africanos de perfil autoritário, muitos dos quais têm sido criticados por violar sistematicamente os direitos humanos. A simbiose entre exportação de tecnologia repressiva e alinhamento diplomático revela uma lógica pragmática onde os princípios universais são moldados pelas conveniências estratégicas.


Esses três atores — França, EUA e Israel — operam de forma coordenada ou complementar na região, compartilhando informações de inteligência, estratégias militares e, sobretudo, interesses econômicos. O controle do subsolo africano, rico em minerais raros, urânio, ouro e petróleo, é o elemento estruturante desta presença. De acordo com a British Geological Survey, o Sahel abriga reservas estratégicas de lítio, manganês e coltan — componentes-chave na indústria eletrônica e energética global. Assim, a “guerra ao terror” parece coincidir demasiadamente com as zonas de maior potencial mineral, sugerindo que a retórica da segurança funciona, antes de tudo, como uma cortina de fumaça para práticas neocoloniais reatualizadas. O paralelo com a política estadunidense no Oriente Médio — onde a justificativa da “democratização” serviu para assegurar o controle do petróleo — é demasiado óbvio para ser ignorado.


Sahel, África. ©INTERNATIONAL RESCUR COMMITEE
Sahel, África. ©INTERNATIONAL RESCUR COMMITEE

A hipocrisia se revela de modo particularmente cínico quando se observa o contraste entre os discursos oficiais nos fóruns multilaterais e a prática concreta no continente africano. Em seu pronunciamento na Assembleia Geral da ONU de 2022, o presidente francês Emmanuel Macron declarou: “A França apoia a autodeterminação dos povos africanos e respeita sua soberania”. Um mês depois, as autoridades francesas rejeitavam a decisão do Mali de encerrar a parceria com a Barkhane, acusando o governo local de “ingratidão” e “irresponsabilidade estratégica”. Aparentemente, o conceito de soberania só se aplica quando os aliados africanos obedecem às diretrizes de Paris.


Este padrão de atuação — apoio a regimes autoritários, presença militar sob pretextos humanitários, controle seletivo de recursos — não é uma aberração nem uma exceção histórica, mas a norma recorrente das potências centrais na periferia do sistema global. As intervenções no Vietnã, no Chile, no Congo de Lumumba, no Iraque ou na Líbia seguem a mesma lógica estrutural: o discurso moral como instrumento de legitimação da dominação material. O caso do Sahel, portanto, não é um desvio, mas uma continuidade.


É necessário, enfim, reconhecer que a guerra silenciosa no centro-norte africano não se faz apenas com armas, mas com narrativas cuidadosamente moldadas para encobrir interesses concretos sob o véu do humanismo seletivo. A comunidade internacional — ou, mais precisamente, sua fração hegemônica — não opera segundo princípios universais, mas conforme imperativos geoestratégicos. A paz que se promete é, em última instância, a paz dos mercados — uma paz sem autodeterminação, sem justiça e sem voz para os povos do Sul global.


A crítica, como sempre, não basta por si só. Mas a denúncia meticulosa dos padrões, das contradições e das estruturas que sustentam o discurso oficial é o primeiro passo para desmontar os mecanismos de dominação disfarçada. Neste sentido, expor os elos entre Israel, França e EUA no Sahel não é apenas uma tarefa analítica, mas uma exigência moral de lucidez diante da propaganda global.

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