Corpos em Guerra: A Construção Histórica da Masculinidade e a Violência Sexual como Arma
- Zina Covesi

- 20 de mar.
- 3 min de leitura
Como a obra de Anne Carson ilumina as raízes patriarcais da dominação sobre o corpo feminino e sua expressão brutal em conflitos armados.
Por Zina Covesi, Jornal Clandestino (março 2025).

Anne Carson – escritora canadense de língua inglesa conhecida em maior medida pelos livros de poesia que escreveu e por suas traduções de literatura grega antiga. Primeira mulher a ganhar o TS Eliot Prize.
A poeta e classicista canadense, Anne Carson, em seus escritos afiados sobre gênero e poder, observa que a masculinidade se ergueu, ao longo da história, sobre um alicerce perverso:
A ideia de que o corpo da mulher é um território a ser conquistado, controlado e possuído.
Em ensaios como The Gender of Sound (1995) (O Gênero do Som) , Carson desvela como sociedades antigas — da Grécia a Roma — normalizaram a supressão da voz e da autonomia femininas, reduzindo a mulher a um objeto sonoro, cuja existência era regulada pelo desejo e pela lei masculina. Essa dinâmica, não é uma relíquia do passado, mas uma chave para entender por que a violência sexual persiste como arma de guerra em conflitos modernos, do Congo à Ucrânia.
A Posse como Linguagem do Poder
A dominação masculina não se limita à força física: é uma narrativa cultural inscrita em mitos, leis e tradições. Na Odisseia de Homero, por exemplo, Penélope – Proserpina na mitologia romana – é elogiada por seu silêncio, enquanto as vozes das mulheres que desafiam a ordem — como as sereias — são monstros a serem silenciados.
Na Atenas clássica, mulheres eram legalmente senhoras, sob tutela, de um homem e seu corpo visto como propriedade transferível (do pai para o marido). Ainda hoje em 2025 os casamentos religiosos cristãos tendem a perpetuar essa ideia, visto que o pai entrega a filha ao marido.
Essa "economia do corpo feminino", como define Carson, transformou a mulher em moeda de troca simbólica e literal, sustentando hierarquias de gênero que ecoam até hoje.

Da Casa para o Campo de Batalha: A Violência Sexual como Estratégia
Se o corpo da mulher foi historicamente um marcador de honra masculina, sua violação em guerras torna-se uma ferramenta para humilhar comunidades inteiras. Como observa a pesquisadora Carol Harrington,
Estupros em massa não são "danos colaterais", mas táticas calculadas para desintegrar laços sociais, aterrorizar populações e apagar identidades.
Atualmente (maio/24) temos 21 zonas de guerra, incluindo Palestina, Sudão, Ucrânia, Haiti, Mianmar e a República Democrática do Congo.
Na Bósnia (1992-1995), estima-se que 20 mil a 50 mil mulheres foram estupradas por tropas sérvias, muitas vezes em campos de detenção criados especificamente para esse fim.
Na RD Congo, onde o estupro é chamado de "o custo do minério", e que segundo a organização Médicos Sem Frontreira e confirmada pela ONU, em média 60 mulheres e meninas são estupradas diariamente; as milícias usam a violência sexual para controlar regiões ricas em recursos.
A desumanização como projeto ganha urgência: ao tratar corpos femininos como territórios a serem saqueados, a guerra atualiza o mito ancestral de que a mulher é um espaço vazio, disponível para ocupação.
Resistências
Embora a violência sexual em guerras tenha sido por séculos, ignorada ou tratada como inevitável, avanços legais recentes — como o reconhecimento do estupro como crime contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional — sugerem uma ruptura parcial com essa lógica.
Enquanto a masculinidade for construída na fantasia de posse, qualquer progresso será frágil, portanto, desmontar uma narrativa de milênios exige mais que leis, diz a autora. "Exige reimaginar quem tem direito a um corpo."
Para Além da Guerra
A ligação entre a dominação cotidiana e a violência extrema em guerras não é acidental: é sistêmica.
Quando um homem agride uma parceira, quando um Estado negligencia políticas de proteção, ou quando um soldado usa estupro como tática, todos operam através da mesma estrutura de que a mulher é um espaço vazio, disponível para ocupação.
Rompê-la exige sim punição aos agressores, e a desconstrução radical de como ensinamos meninos e meninas a habitar seus corpos e principalmente os corpos alheios.
“A guerra começa quando falhamos em ver o outro como um ser que respira. Respirar, aqui, é também resistir”. Anne Carson.
Referências:
CARSON, Anne. The Gender of Sound. 3. ed. São Paulo: A New Direction Book, 1995. ISBN 0-8112-1303-1.
FIGULA , Jadwiga . ONU verificou mais de 3,6 mil casos de violência sexual durante guerras em 2023. ONU News Perspectiva Global Reportagens Humanas, 2024. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2024/04/1830716. Acesso em: 17 mar. 2025.
MURAD, Nadia. Que eu seja a última: minha história de cárcere e luta contra o Estado Islâmico. 1. ed. São Paulo: Novo Século, 2019. ISBN 978-8542815672.


























































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