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A Disputa Cultural entre o Importado e o Nacional - Halloween versus Saci

Enquanto fantasias de Halloween invadem as lojas e festas temáticas multiplicam-se pelo Brasil, uma figura de uma perna só, dona de um gorro vermelho, parece escorregar pela memória coletiva do país. A celebração do Dia do Saci-Pererê, em 31 de outubro, instituída para valorizar o folclore nacional, trava uma batalha desigual contra a força avassaladora do Halloween. Esta disputa é muito mais do que uma simples escolha entre doces ou travessuras; é o sintoma de uma questão profunda na identidade brasileira: a dificuldade de cultuar o que é próprio em detrimento do que vem de fora.


Conforme registrou o folclorista Câmara Cascudo, o Saci-Pererê é a tradução viva da cultura afro-brasileira. Mais do que um simples diabrete, ele é o espírito da mata, um ser travesso que, com seu cachimbo e seu redemoinho, representa a malandragem, a liberdade e a irreverência. Pregar peças, trançar as crinas dos cavalos ou assustar viajantes são manifestações de uma energia que desafia a ordem, mas sem a carga de violência presente em muitos arquétipos estrangeiros. Sua lenda, que fala em 77 anos de vida antes de se transformar em um cogumelo, está profundamente enraizada na natureza e no imaginário nacional.


©Criação de Thiago Vaz - São Paulo
©Criação de Thiago Vaz - São Paulo

Em contraste, o Halloween chega como um produto cultural importado, embalado pela mídia global e pela indústria do entretenimento. Por trás da fachada de festa inocente, carrega simbologias problemáticas. A figura da bruxa, por exemplo, perpetua arquétipos misóginos ao dividir as mulheres entre as independentes e perigosas – as que riem e sabem demais – e as figuras "inocentes" e submissas, moldadas por um ideal de beleza inatingível. Esta representação é um eco moderno do medo histórico punido pela "Santa Inquisição", que sepultou a autonomia feminina na Idade Média – um temor que a violência machista ainda evoca nos dias de hoje.


A preferência pelo Halloween não é um acidente cultural. É o reflexo de um "complexo de vira-lata", termo cunhado por Nelson Rodrigues para descrever o sentimento de inferioridade que leva o brasileiro a valorizar mais o que é estrangeiro. Este complexo é herança de um projeto de nação que, desde a colônia, privilegiou a cultura europeia e, posteriormente, a norte-americana, em detrimento das raízes negras e indígenas que formam a base da nossa autenticidade. A cultura do Saci foi por séculos tratada como "coisa do interior", enquanto o que vinha de fora era sinal de status e civilização.


Essa disputa cultural pode ser lida também através da lente do sociólogo Reginaldo Prandi, que analisa o destino dos mitos nas sociedades modernas. Prandi explica que, ao migrarem do campo religioso para o profano, entidades outrora sagradas sofrem um processo de folclorização. O Saci, cujas origens remetem a complexas cosmovisões de matriz africana, foi transformado em uma figura meramente lúdica, um 'menino levado' de nossas histórias. Enquanto o Halloween, mesmo comercial, ainda carrega para sua cultura de origem um forte vínculo com o imaginário do sagrado e do sobrenatural (a morte, os espíritos), nós esvaziamos nosso próprio mito de seu significado mais profundo. Dessa forma, a batalha não é apenas contra um produto cultural estrangeiro, mas contra a nossa própria incapacidade de enxergar, no Saci, mais do que uma travessura infantil, e sim a resistência de uma narrativa que, mesmo folclorizada, guarda os segredos e a história de uma parcela fundamental do nosso povo.


A disputa, portanto, vai além de uma data no calendário. Enquanto o Saci vive 77 anos para se transformar em parte da mata, o Halloween se reinventa infinitamente no comércio. Valorizar o Saci não é uma nostalgia vazia; é um ato de reconhecimento da vitalidade de uma memória que insiste em não ser capturada. É escolher celebrar a astúcia contra a massificação, a alegria negra e mestiça contra o horror misógino, e a rica memória do folclore nacional contra o esquecimento imposto por uma globalização acrítica.


A disputa entre o Saci e o Halloween revela-se, portanto, muito mais que uma escolha cultural: é um termômetro da soberania nacional em um momento de crescentes tensões geopolíticas. Enquanto o fascismo contemporâneo se alimenta da uniformização cultural e do apagamento de identidades dissidentes, a resistência do folclore brasileiro assume um caráter profundamente político.


Em 2026, quando o Brasil voltar às urnas presidenciais, esta mesma batalha simbólica estará no centro do debate. De um lado, visões que miram no apagamento do diverso e na submissão a potências estrangeiras; de outro, a defesa de uma pluralidade que é nossa maior riqueza. Neste contexto, a posição soberana do atual governo (Lula) frente às pressões comerciais e taxações abusivas do imperialismo estadunidense, em declínio, espelha a necessária resistência cultural que o Saci representa.


A verdadeira democracia não se faz apenas nas urnas, mas na capacidade de um povo de narrar sua própria história, de celebrar seus próprios mitos e de garantir que figuras como o Saci-Pererê - com sua irreverência, sua raiz africana e sua insubmissão - continuem assoviando nos ouvidos do poder estabelecido.


Neste dia 31 de outubro de 2025, escolher entre o Saci e o Halloween é, no mínimo, escolher entre a afirmação de um Brasil soberano, mestiço e plural e não a submissão ao imperialismo e ao fascismo.

 
 
 

1 comentário


Zina Covesi
Zina Covesi
há 3 horas

O Brasil é de um colorido absurdo, de gingado delicioso, não precisa importar cultura. <3 Bora chegar com redemoinho, e fazer traquinagens como um Saci Pererê.

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