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Investigação: Quem são e como operam as milícias armadas que Israel usa para redesenhar o poder em Gaza e aniquilar o Hamas

Israel é acusado de apoiar milícia rival do Hamas em Gaza, revela investigação da Sky News; Por Ben van der Merwe e Sam Doak — Unidade de Dados e Forense da Sky News; Publicado originalmente em 4 de outubro de 2025. Versão adaptada e traduzida por Lucas Siqueira - Clandestino.



As guerras nunca acabam quando elas acabam. Se há algo que a história nos ensinou, com amargura e repetição, é que após todo grande conflito — depois do aparente silêncio, quando a poeira começa a assentar — uma nova disputa nasce nas sombras. Trata-se de uma luta pelo poder interno, uma guerra por procuração travada em intensidade menor, porém não menos letal. Dela emergem novas lideranças, novas alianças e, sobretudo, novas regras impostas a uma população já exaurida, marginalizada e ferida pelas consequências do conflito anterior.


Isso já aconteceu inúmeras vezes: na Síria, após o colapso do poder central e o surgimento de facções rivais apoiadas por potências estrangeiras; no Iraque, quando a invasão de 2003 abriu espaço para o caos sectário e para o surgimento do Estado Islâmico; no Afeganistão, após a retirada soviética e o nascimento do Talibã em meio ao vácuo de poder deixado por anos de guerra. Em todos esses casos, o fim formal da guerra não significou o início da paz — apenas a metamorfose do conflito em algo mais difuso, subterrâneo e devastador.


Hamas ©RFI
Hamas ©RFI

Na Palestina, o ciclo se repete. O próprio Hamas surgiu em contexto semelhante, durante a Primeira Intifada, em 1987, quando o cansaço popular e a ausência de uma liderança palestina unificada abriram espaço para uma nova força política e militar. À época, o grupo foi visto como uma alternativa à OLP, com raízes religiosas e forte apoio comunitário, mas que mais tarde se consolidaria como o principal ator de resistência armada contra a ocupação israelense. Ironicamente, há registros de que, em seus primórdios, Israel tolerou — e até incentivou — o crescimento do Hamas, enxergando nele um contrapeso à influência da OLP, liderada por Yasser Arafat. Essa política de “dividir para governar” voltaria a se repetir sob novas formas.


É justamente por isso que a investigação conduzida por Ben van der Merwe e Sam Doak, publicada pela Sky News, se mostra tão urgente e necessária. Não é apenas supor sobre uma nova fase desse jogo de manipulação política e militar, mas revelar ao público como a estratégia de fomentar divisões internas continua sendo utilizada para fragmentar a resistência palestina e perpetuar o controle israelense sobre Gaza.


Conforme o relatório da Sky News, novos indícios e provas surgem de que Israel estaria fornecendo apoio direto a uma milícia palestina rival do Hamas, conhecida como Forças Populares, atualmente liderada por Yasser Abu Shabab — ex-chefe de uma gangue de saqueadores que agora se apresenta como uma alternativa de poder na Faixa de Gaza. Segundo a apuração, o grupo recebe ajuda humanitária, recursos financeiros, veículos e armamentos por meio de canais oficiais e informais, com o conhecimento e a anuência de autoridades israelenses. Documentos, entrevistas exclusivas e imagens de satélite analisadas pela Unidade de Dados e Forense da agência apontam que Israel não apenas tem permitido, mas em alguns casos facilitado o contrabando de mercadorias, dinheiro e armas destinadas aos combatentes sob comando de Abu Shabab — um movimento que, sob a fachada da “assistência humanitária”, reconfigura o tabuleiro político da Faixa de Gaza.



Milícia emergente em Gaza

Enquanto líderes internacionais discutem o futuro político de Gaza após o conflito, Israel estaria moldando silenciosamente uma nova configuração de poder na região. Nos últimos meses, diversas milícias tribais locais declararam lealdade a Yasser Abu Shabab, que tenta consolidar sua autoridade e se apresentar como o sucessor natural ao vácuo político deixado pelo Hamas.


Yasser Abu Shabab - líder de uma das milícias rivais do Hamas em Gaza
Yasser Abu Shabab - líder de uma das milícias rivais do Hamas em Gaza

A investigação mostra que a base das Forças Populares, situada nos arredores de Rafah, foi gradualmente transformada em um pequeno enclave autônomo. Ali, há infraestrutura médica, escola, mesquita e amplo acesso a alimentos e bens de consumo, contrastando com a escassez enfrentada pelo restante da população de Gaza.


Vídeos publicados nas redes sociais mostram milicianos ostentando grandes quantidades de dinheiro, cigarros importados e motocicletas novas, o que levanta questionamentos sobre as fontes desses recursos.


Ajuda humanitária desviada

A Fundação Humanitária de Gaza (GHF), uma organização de ajuda apoiada por recursos estadunidenses e que afirma atuar de forma neutra, foi citada na investigação por fornecer alimentos e suprimentos diretamente às Forças Populares. Fontes internas e registros de vídeo obtidos pela Sky News mostram paletes de alimentos da GHF armazenados em acampamentos militares do grupo, alguns ainda com suas embalagens originais intactas.


Um dos comandantes de Abu Shabab confirmou que parte dos alimentos é retida para consumo próprio da milícia, enquanto o restante é distribuído a moradores de Rafah — o que, segundo especialistas, viola frontalmente os princípios humanitários internacionais.


O diretor da UNRWA, Sam Rose, classificou essa prática como “uma violação completa dos princípios humanitários”, ressaltando que a ajuda deve ser distribuída exclusivamente conforme a necessidade, e jamais servir a objetivos políticos ou militares.


Contrabando e aliança tática

Entrevistas concedidas à Sky News revelam que o apoio israelense à milícia é mediado por uma rede de coordenação que envolve tribos beduínas de Israel, Egito e Jordânia. Esses grupos, com fortes laços familiares com Abu Shabab, seriam responsáveis por contrabandear dinheiro, cigarros, veículos e armas através da passagem de Kerem Shalom, uma das principais rotas de entrada de ajuda humanitária em Gaza.


Um relatório interno da ONU, datado de novembro de 2024, identificou o grupo de Abu Shabab como o principal responsável pelo saque sistemático de comboios de ajuda e pelo contrabando de cigarros, um produto proibido oficialmente de entrar em Gaza. O preço de um único cigarro, segundo o documento, chegou a US$ 20 em determinados períodos.


A Sky News obteve ainda o testemunho de “Sami”, um soldado beduíno da Unidade 585 das Forças de "Defesa" de Israel (IDF), estacionado perto da fronteira com Gaza. Ele confirmou que Israel tem facilitado a entrega de alimentos e dinheiro ao grupo armado, afirmando que “a cooperação ocorre por meio do Shin Bet ou de algum mecanismo oficial do Estado”. Sami declarou: “Israel o ajuda, dá-lhe granadas, dinheiro, veículos, comida — de tudo um pouco”.



Veículos israelenses em Gaza

Uma equipe forense rastreou diversos veículos de luxo que foram adquiridos por Abu Shabab e seus combatentes nos últimos meses, muitos deles com placas israelenses. Em um vídeo de julho de 2025, um Toyota Land Cruiser 2025 aparece circulando em território israelense com placa registrada; poucos dias depois, o mesmo carro é fotografado no acampamento das Forças Populares em Gaza, com a placa removida.


Hassan Abu Shabab, um dos principais comandantes do grupo, confirmou que os carros são contrabandeados por intermediários israelenses que atuam em coordenação com o chamado “escritório de coordenação”, estrutura informal responsável por articular o transporte de mercadorias e armas através da fronteira.



Relações com outras forças e acusações de terrorismo

Issam Nabahin posa em cima de um veículo da ONU em uma foto compartilhada pela primeira vez em 11 de março. Foto: TikTok
Issam Nabahin posa em cima de um veículo da ONU em uma foto compartilhada pela primeira vez em 11 de março. Foto: TikTok

O braço militar das Forças Populares, conhecido como Serviço de Contraterrorismo (CTS), é comandado por Ghassan Al Duhine e possui um logotipo idêntico ao de uma força paramilitar criada no Iêmen com apoio dos Emirados Árabes Unidos em 2024.


Outro membro de destaque, Issam Nabahin, foi apontado em 2015 pelo Hamas e pela inteligência egípcia como militante do Estado Islâmico, sendo acusado de envolvimento em atentados e explosões em Gaza. Após romper com o grupo, Nabahin se uniu às Forças Populares, o que reforçou as suspeitas sobre o caráter híbrido e oportunista dessa nova milícia.




Relatos e imagens analisadas pela Sky News também sugerem coordenação entre as Forças Populares e a Força Aérea de Israel em pelo menos duas operações de combate contra o Hamas — um indício de colaboração militar indireta.

Issam Nabahin anunciou seu retorno ao campo das Forças Populares com uma selfie em 17 de agosto de 2025. Foto: TikTok
Issam Nabahin anunciou seu retorno ao campo das Forças Populares com uma selfie em 17 de agosto de 2025. Foto: TikTok

‘Dividir e conquistar’: o cálculo estratégico

Especialistas consultados pela Sky News consideram que o apoio de Israel às Forças Populares segue uma lógica antiga de “dividir para conquistar”. Segundo o analista Amjad Iraqi, do International Crisis Group,


“quanto mais Israel fragmenta o poder entre facções rivais, mais difícil se torna para a sociedade palestina organizar uma resistência coesa contra a ocupação”.

Para o professor Neve Gordon, da Queen Mary University of London, a estratégia busca transformar Gaza em “um território controlado por senhores da guerra”, eliminando qualquer possibilidade de unidade política.


“Vemos o que acontece com países fragmentados por chefes de milícia — surgem disputas internas que podem durar décadas”, afirma Gordon.

O futuro incerto de Gaza

Enquanto as negociações internacionais sobre o futuro político de Gaza seguem estagnadas, Israel parece atuar de forma paralela para consolidar aliados locais e garantir influência permanente no território. Em declarações recentes, Hassan Abu Shabab afirmou que o grupo pretende assumir a administração civil de Gaza, reformar o currículo escolar e até promover um referendo sobre a normalização das relações com Israel.


“Gostaríamos de administrar tudo”, disse ele à Sky News.

Israel, que se apresenta ao mundo como vítima de uma ameaça existencial, repete silenciosamente o mesmo roteiro de sempre — fomentando divisões internas, alimentando facções rivais e transformando a dor de um povo em laboratório de engenharia política. A guerra, nesse contexto, não é um estado excepcional, mas a própria condição permanente de dominação.A cumplicidade internacional diante desse quadro é tão ensurdecedora quanto as bombas que ainda caem sobre Gaza, mesmo sob "cessar-fogo".


Quando alimentos, veículos e armas circulam sob a chancela da caridade, a linha entre a política e o crime se dissolve, e o sofrimento humano se torna apenas mais um ativo nas negociações geopolíticas. A ONU, as potências ocidentais e as agências de cooperação humanitária sabem — e, ao silenciarem, tornam-se cúmplices da perpetuação do genocídio e apartheid.


A verdade é que não há reconstrução possível enquanto a lógica da fragmentação for mantida. Nenhum cessar-fogo, nenhuma conferência de paz, nenhuma “nova liderança” conseguirá devolver dignidade a Gaza se o próprio tecido político palestino continuar sendo manipulado como marionete de interesses externos. A paz não nascerá de milícias financiadas, nem de tratados impostos pela força — mas do reconhecimento pleno da soberania palestina e do fim do colonialismo que a sufoca desde 1948. Enquanto isso não acontecer, as guerras continuarão — mesmo quando disserem que elas acabaram.

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