Europa, um continente democrático que fecha os olhos para corpos à deriva no Mediterrâneo
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Em 2024, a Comissão Europeia divulgou um relatório sobre o Estado de Direito na União Europeia, alertando para o “risco de erosão democrática” em países-membros como Hungria e Polônia. A constatação surge como diagnóstico tardio de um processo que já se consolidou com a normalização da extrema-direita nas instituições europeias e sua íntima relação com a gestão securitária da crise migratória. Enquanto Bruxelas publica relatórios em defesa de valores liberais, Estados-membros promovem políticas que violam frontalmente a Convenção de Genebra e os tratados de direitos humanos dos quais a própria UE é signatária.

A ascensão da extrema-direita institucional não pode ser dissociada do tratamento dispensado aos refugiados oriundos do Oriente Médio e da África. Após o auge da chamada “crise migratória” de 2015, quando cerca de 1 milhão de pessoas buscou abrigo na Europa, a resposta predominante não foi de solidariedade, mas de militarização das fronteiras. Agências como a Frontex viram seu orçamento multiplicar-se, ao mesmo tempo que denúncias de “pushbacks” ilegais no Mediterrâneo se acumularam em relatórios da ONU e da Human Rights Watch. O caso grego é um dos piores cenários: enquanto Atenas insiste em seu compromisso com os “valores europeus”, multiplicam-se as evidências de expulsões sumárias e naufrágios deliberadamente ignorados, revelando um padrão estrutural de exclusão que vai além de incidentes isolados.
O contraste entre discurso e prática torna-se ainda mais evidente quando se observa a seletividade do humanitarismo europeu. Em 2022, com a guerra na Ucrânia, fronteiras foram abertas com eficiência notável para milhões de refugiados europeus, enquanto solicitantes de asilo afegãos, sírios ou congoleses permaneciam retidos em campos insalubres na ilha de Lesbos (Grécia). O episódio expõe o que Hannah Arendt chamaria de hierarquia implícita na ideia de “direitos humanos”; eles existem de forma plena apenas para quem pertence à comunidade política reconhecida como legítima. A verdade é que a Europa defende valores universais enquanto mantém práticas de exclusão racializada, fenômeno visível desde a era colonial até os acordos contemporâneos com regimes autoritários para o controle migratório.

Do ponto de vista estrutural, o avanço da extrema-direita não se explica apenas por fatores internos, mas por uma convergência de interesses com os próprios centros de poder europeus. A retórica do medo do “outro” e do “invasor” funciona como instrumento político para justificar tanto a militarização de fronteiras quanto a transferência de recursos públicos para complexos de segurança e defesa. Nesse sentido, a ofensiva contra refugiados cumpre dupla função: reforça o capital político das forças de extrema-direita e mantém intactos os privilégios econômicos de uma Europa integrada à exploração global, cuja estabilidade depende da externalização de crises humanitárias para suas periferias.
O continente que exportou guerras e intervenções militares, agora criminaliza os fluxos migratórios que são, em larga medida, consequência direta dessas intervenções. O discurso de “defesa da civilização europeia” torna-se, assim, uma forma elegante de encobrir responsabilidades históricas. E, nesse jogo, a erosão democrática interna não é um efeito colateral, mas parte do mecanismo, da lógica, da exceção e do medo que se torna norma, preparando terreno para que forças autoritárias se apresentem como defensoras da ordem.
A União Europeia insiste em proclamar-se bastião dos direitos humanos, mas sua prática demonstra princípios invocados seletivamente, na medida em que não colidam com interesses estratégicos ou econômicos. O resultado é um continente que se autodeclara democrático enquanto fecha os olhos para corpos à deriva no Mediterrâneo — e para a corrosão silenciosa de seus próprios fundamentos institucionais.



































































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