Na terra da Convenção de Genebra, socorrista brasileiro-palestino é tratado como suspeito
- Lucas Siqueira

- há 7 horas
- 4 min de leitura
Ferido sete vezes por soldados israelenses — uma delas com um tiro no rosto — enquanto atuava como socorrista na Cisjordânia, Hamza Mahmoud Maali, de 31 anos, carrega no corpo e na memória as marcas da ocupação. Após arriscar a vida para salvar outras, o palestino filho de mãe brasileira, buscou refúgio na Europa. Mas, em vez de encontrar acolhimento, encontrou um novo tipo de violência: a discriminação.
Recentemente, em um trem na Suíça, Hamza foi submetido a abordagens agressivas por um fiscal do sistema estatal de transporte. Sem dominar o idioma local e sem compreender que precisava de um novo bilhete, acabou sendo tratado com hostilidade. Mais tarde, descobriu que o fiscal havia anotado em seu bilhete: “Origem: provavelmente Palestina (Hamas…)”. O caso repercutiu em veículos suíços e nas redes sociais, sendo denunciado pela fundação “Do Individual ao Coletivo (DIAC)” como um episódio de “estigmatização inaceitável”.
Hoje, Hamza vive em território suíço enquanto aguarda a resposta de seu pedido de refúgio — um direito assegurado pela Convenção de Genebra a profissionais humanitários feridos em zonas de conflito. Ironicamente, é justamente na Suíça — berço da Convenção que simboliza a proteção dos civis, prisioneiros e trabalhadores humanitários — que ele enfrenta a contradição viva desse ideal: discriminado e ignorado, o paramédico que arriscou a própria vida para salvar outras agora sobrevive à margem do mesmo humanitarismo que o mundo proclama defender.

Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Clandestino, Hamza fala sobre sua trajetória como socorrista sob ocupação militar, a dor de enfrentar o preconceito em um continente que se diz defensor dos direitos humanos e, a incerteza quanto ao seu próprio destino no país.
***
Lucas: Hamza, pode fazer uma apresentação? Conte-nos um pouco sobre você e como chegou à Suíça.
Hamza: Sou palestino, da Cisjordânia, mas minha mãe é brasileira. Trabalhei a vida toda como socorrista, trabalhando em ambulâncias. Saí da Palestina porque não existe segurança lá. Já fui baleado sete vezes. Uma vez, levei um tiro na cabeça, perto do olho, enquanto tentava resgatar feridos. Depois de passar pela Jordânia, vim para a Suíça porque é o país das Convenções de Genebra, onde pensei que encontraria segurança e respeito pelo meu trabalho.
Lucas: E o que você encontrou?
Hamza: Encontrei racismo. Um dia, peguei um trem e pela dificuldade de não falar outro idioma que não o árabe, acabei indo para um local diferente do que estava no meu bilhete. Fui multado, e na própria multa, os oficiais escreveram "Palestino, Hamas". Eu tenho essa multa comigo. É a prova da discriminação. Por causa disso, essa história saiu nos jornais e eu fiquei com medo, parei de sair nas ruas e de falar com as pessoas, pois não sei como isso poderia afetar minha condição no país.

Lucas: Como está a sua situação agora?
Hamza: Estou em um centro de refugiados. Eles me dão comida, roupa e um lugar para ficar. Também me dão 14 francos por dia [cerca de R$85], mas não posso trabalhar. É uma situação muito difícil. Entrei em contato com a Cruz Vermelha, mas disseram que enquanto meu processo legal não for concluído, não podem me empregar.
O Auxílio Mínimo em Espécie: Os 14 CHF diários (cerca de R$ 85) são um valor simbólico para cobrir despesas pessoais mínimas (higiene, comunicação, transporte local). É um valor que beira a insustentabilidade no país com um dos custos de vida mais altos do mundo. Hamza deve se manter com esse auxílio pois é impedido legalmente de trabalhar no país até que receba os documentos oficiais como cidadão ou refugiado.

Lucas: O que você pretende fazer daqui para frente? Vai continuar na Suíça?
Hamza: Eu não sei. Eu não conheço ninguém fora da Palestina. Não falo a língua daqui. Não tenho um currículo formal, só sei ser socorrista. Pensei que a Suíça seria o berço dos direitos humanos, da civilização. A única coisa que eu quero é poder me recolher em um lugar onde eu seja reconhecido e possa trabalhar na minha área, salvando vidas. É o que eu gosto de fazer, é o que eu quero continuar fazendo.
Lucas: Você tem alguma mensagem final para as pessoas no Brasil e no mundo?
Hamza: Quero que o mundo todo ouça. Que respeitem os bombeiros, os socorristas. Dêem extrema importância para esse trabalho. Em alguns lugares, até dão prêmios para pessoas que fazem o que nós fazemos, que é salvar vidas. Nós, na Palestina, passamos a vida toda tentando salvar vidas, colocando a nossa própria vida em perigo 24 horas por dia, durante o ano todo, uma vida toda. E ser tratado dessa maneira, em um local chamado Suíça... é muito difícil. Eu só quero um lugar seguro onde eu possa trabalhar.
A atual situação de Hamza, infelizmente, é algo comum a todos os filhos da diáspora palestina. Até o momento de nossa conversa, o brasileiro-palestino buscou ajuda de ONG´s no país, incluindo a Cruz Vermelha, mas foi informado de que, enquanto seu processo de refúgio não for concluído, não há possibilidade de emprego. A ironia é amarga: um socorrista experiente, impedido de trabalhar, vivendo com um "auxílio" em um dos países mais ricos do mundo.
Esta entrevista, concedida ao Jornal Clandestino, contou com interpretação árabe-português realizada por nossos parceiros do Visite Palestina. Para saber mais ou solicitar serviços de interpretação e tradução, clique aqui.




























































Comentários